segunda-feira, 30 de julho de 2012

"BATA-ME PELO AMOR DE DEUS" (de Bosco Silva)





A CONFRARIA

“O pênis é a menor distância entre duas almas”
Marquês de Sade


Havíamos criado uma confraria, uma irmandade, a Confraria dos Poetas Libertinos. Que abrigava alguns dos mais pervertidos de nossa época. Dedicávamos incessantemente a essa grande arte, já quase esquecida, minada pelos problemas econômicos e religiosos, mas que a tanto custo se mantinha viva, embora houvesse perdido muito em qualidade ao longo de tanto tempo: a grande arte da foda.

Fazíamos jus a cada gota de esperma, a cada estocada bem metida, a cada gota de suor expelida, como havia nos ensinado o grande Marquês de Sade. Nossa irmandade se encontrava uma vez ao mês para botar não apenas a grande arte em prática, nos melhores e piores puteros que conhecíamos, como para contar as mais libertinas e devassas histórias, embaladas ao mais doce vinho. Um verdadeiro culto à Baco, a esse Deus tão jovial e ao mesmo tempo tão esquecido, perdido entre as coisas consideradas antigas.

A libertinagem naqueles tempos era levada a sério, como nos saudosos tempos bíblicos. Lá se encontravam Petrúquio, o “sagaz”; Martinho, o “libertino”; Márcio, o “espirituoso”, e assim, como tantos outros, modelos que fazem tanta falta aos dias de hoje.

Uma noite no bordel...

- Ao sabor deste maravilhoso vinho, neste templo sagrado à luxúria, após uma maravilhosa orgia, companheiros, contem-nos suas aventuras, suas histórias mais pecaminosas, que poucos mortais contariam com orgulho – disse-lhes Petrúquio, já bastante embriagado pelo doce sabor do vinho.
- E tu Petrúquio, não terias uma boa história a nos contar? – disse Edgar.
- Como todo bom e velho libertino, mas não antes de abastecermos nossas mesas novamente com este maravilhoso vinho.

Taverneira, não vedes que temos sede, não apenas de vida, mas também de vinho? Então, sirva-nos sua maldita – gritou Petrúquio.

Após alguns goles, e enxugando as gotas de vinho que lhe escorria pela barba com a manga da camisa, pôs-se a relatar sua história:

- Havia alguns anos que não encontrava um velho amigo, exímio apostador e um grande libertino. E por acaso, encontrei-o numa noite na rua.
Convidou- me, então, para tomar alguns goles de vinho. E como um bom jogador, após relembrarmos algumas aventuras, pôs-se logo a fazer mais uma das famosas apostas suas.
Disse-me: “Aposto que não és mais capaz, oh! Petrúquio, das nossas velhas aventuras. Tens ainda coragem de entrar num puteiro, ludibriar, e fazer com que a puta não lhe cobre?”
Confesso que há muito tempo tinha perdido a prática em tal ato, mas não pude, de modo algum esmorecer. Disse-lhe, então: - Vamos, escolha o bordel e a puta.
O bordel escolhido foi de Madame Nise, antiga cafetina, mulher avarenta e extremamente rígida, como uma madre superiora. A escolha não podia ser pior.
Todavia, o que a princípio parecia ser péssimo, piorou, ainda mais, quando também ela foi a escolhida.
Nise, mulher elegante, de finos modos, mas que aparentava ser fria, como aquelas putas que fornicam com o olho no relógio.
Levei-a, então, para o quarto... Parecia que tinha esquecido a muito o prazer em sua memória.
Tratei-a ora como uma verdadeira dama, ora como a mais devassa das putas, pois, como sabêis, na arte do amor, deve-se tratar uma puta como uma dama, e uma dama como uma puta. Eis um segredo infalível!
Pois bem. Chupei com avidez seu clitóris..., masturbei-a incessantemente..., beijei-a até mesmo onde a luz do sol não a clareia..., mas nada parecia ser o bastante. Penetrava-lhe, então, com ardor..., mas ela continuava fria, como uma morta. Tentei de tudo que a uma boa ou má mulher excitaria, pois, lembrei-me que mesmo uma puta haveria de ter seus caprichos. E que agradando-a, talvez, me recompensaria com uma noite gratuita.
Em um dado momento, já desesperado por nenhuma resposta, dei-lhe pequenas tapas, como forma de desabafo, que estalavam em seu rosto gorduchinho. Ela, para minha surpresa e felicidade, sorrindo, imediatamente, começou a implorar-me:
- Bata-me... bata-me... pelo amor de Deus, bata-me...
- Ah! Safada - exclamei pensativo.
E enquanto mais me pedia, mais eu intercalava com a ausência de tapas, o que me dava um prazer enorme em provocá-la, e ver lhe suplicar-me. O que, por outro lado, certamente, mais lhe excitava, implorando por tapas cada vez mais fortes.
- Mais... mais... mais... – então, dizia.
As tapas, os sorrisos, seu corpo na fúria louca do desejo, iam num crescendo que parecia não terem fim...
E, enfim, realizando seus desejos, acabei por desmaiá-la, em um misto excitante de prazer e dor, por meio de tantas tapas.
E saindo de lá como entrei, com os bolsos sem nenhum níquel, não apenas ganhei a aposta, como a lembrança de uma de minhas melhores memórias.

Petrúquio, em seguida, em meio a tantos risos, levantando-se da mesa, pôs-se a declamar o Soneto de todas as Putas de Bocage, tendo na mão, levantada, uma grande taça de vinho:

Não lamentes, oh Nise, o teu estado;
Puta tem sido muita gente boa;
Putíssimas fidalgas tem Lisboa,
Milhões de vezes putas têm reinado:
Dido foi puta, e puta d’um soldado;
Cleópatra por puta alcança a coroa;
Tu, Lucrécia, com toda a tua proa,
O teu cono não passa por honrado:
Essa da Rússia imperatriz famosa,
Que inda há pouco morreu (diz a Gazeta)
Entre mil porras expirou vaidosa:
Todas no mundo dão a sua greta:
Não fiques pois, oh Nise, duvidosa
Que isso de virgo e honra é tudo peta.

- Ah! Bocage que seria dos poetas sem as putas – exclamou Petrúquio.
- E nada seriam das putas sem os libertinos! – completou Márcio.
- Um viva, pois, a estas verdadeiras discípulas de Vênus, a estes seres tão desprezados, outrora tão cultuados, e que, ao contrário das hipócritas virtuosas, fazem tanto bem à sociedade, pois quantos estupros não têm evitado!

Após o imenso murmúrio que se seguiu às palavras de Petrúquio, com os convivas ora aplaudindo, ora gritando: viva as putas, viva as putas... disse-lhe Márcio:

- Então Nise era uma masoquista?
- Quanto a isso não há a menor dúvida.
- Assim como não há a menor duvida que és um sádico – completou Márcio.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

DOIS HOMENS, DUAS MORTES E UMA TERRÍVEL OBSESSÃO (de Bosco Silva)

By James Ensor

...tudo no mundo perde o sentido, quando seu corpo tornar-se azul e os seus olhos perderem o brilho.
Pedro Don Bosco (retirado de seu livro: Poesias Para O Final dos Tempos, de 1904).

13 DE SETEMBRO DE 1874. Um dia que uniria duas vidas trágicas, uma fadada ao sucesso, outra ao mais absoluto esquecimento, mas todas ligadas por uma estranha obsessão.

Em Viena, Áustria, nasce Arnold Schoenberg (1874 – 1951), famoso compositor, um dos responsáveis pela moderna música erudita, com sua biografia obrigatoriamente estampada em enciclopédias ou em livros sobre história da música. E no mesmo momento, no Brasil, nasce Pedro Don Bosco (1874 – 1904), o obscuro poeta das amarguras, poeta de coração e mente apenas lembrado por minha falecida avó, sua única neta.

DUAS VIDAS, UM SÓ DESTINO

SCHOENBERG

Filho de judeus, Schoenberg desde cedo se sentiu atraído pela música. Com oito anos de idade passou a compor suas primeiras músicas, estimulado por um tio. Foi também nessa época que Arnold começou sentir-se atraído por um estranho fascínio pelos números. Este fascínio acompanhou-o por toda a vida, e enquanto crescia passou acreditar que por meio dos números era capaz de adivinhar o próprio destino.

Schoenberg acreditava que nos números estava a chave de seu futuro, principalmente o dia de sua morte. E como este havia nascido em um dia 13, passou a cismar que este número estava terrivelmente ligado ao dia de sua morte. Então passou a combinar todos os números menores de dez que somados daria 13. E assim algo lhe levou misteriosamente a achar que morreria aos 76 (7+6=13) anos de vida.

Foi com extrema angustia que Arnold via se aproximar a cada ano o ano que faria 76 anos. E quando o fatídico ano chegou, Schoenberg estremeceu a cada dia treze daquele ano; porém um lhe foi especial, e lhe encheu de horror, ao ver no calendário que o dia 13 de junho cairia numa sexta-feira. Isto lhe deixou horrorizado por vários dias; e quando finalmente o dia começou, Schoenberg, relutou em sair da cama, queria evitar algo imprevisto, não daria nenhuma chance para a morte. E assim passou aquelas malditas horas. Contudo, quando faltavam poucos minutos para o término do dia, sua mulher, que não acreditava em suas teimosias, foi-lhe avisar de seu erro; encontrou-o ainda deitado. Arnold Schoenberg abriu os olhos, disse-lhe apenas “harmonia” e faleceu misteriosamente em silêncio. Ao olhar para o relógio do quarto, sua mulher verificou que era ainda 11:47, faltavam 13 minutos para a meia-noite. E assim morreu Schoenberg no dia 13 de junho, aos 76 anos, em uma sexta-feira 13.

FONTE: Wikipédia

PEDRO DON BOSCO

Pedro Don Bosco nasceu em uma pequena cidade afastada de Belém, pelas mãos de uma velha parteira, como mais tarde se referiria o poeta ao seu nascimento:

Nasci numa noite escura, sob luz de velas, nas mãos de uma velha parteira, de olhos abertos à procura da luz.

E enquanto, na Europa, Schoenberg se dedicava a suas primeiras composições, e crescia impressionado com o poder dos números, em Belém, Pará, o poeta iniciava-se em seus primeiros rudimentos de escrita; e com prodigioso talento já imprimia no papel belas frases oriundas de seu “pequeno coração atormentado e aflito”.

O poeta bem sabia de seu destino: nascera com o estranho desejo de luz e conhecimento. E assim como Schoenberg, crescia-lhe também o sentimento trágico da vida. Sua mãe havia morrido ao dar-lhe a luz, o que lhe causava um imenso sentimento de culpa. Culpa que lhe acompanharia por toda vida e que aumentaria quando este, ainda jovem, foi imprevistamente substituído, na última hora, por um amigo em uma viagem de navio, que lhe causou enorme angústia quando soube que o navio naufragara e que todos haviam morrido, incluído tão amado amigo. Havia naquilo algo de misterioso, que o poeta tentava a todo custo desvendar: era como se duas pessoas houvessem morrido para que o poeta se mantivesse vivo e compusesse suas tristes odes; que se alimentavam de cada lágrima caída. Pedro Don Bosco era poeta por maldição, bem sabia ele.

Numa noite, após casar-se, o poeta, acompanhado de sua querida esposa, havia ido a um maravilhoso baile. Os casais dançavam, rodopiavam, alegremente, pelo enorme salão, iluminado por um imenso lustre de prata. E ao término de mais uma série de músicas, um homem subiu ao palco, anunciou uma nova atração, madame Fifi, a maravilhosa vidente, vinda diretamente de Paris. Todos enfileiraram-se para terem suas mãos lidas por tão famosa vidente. Porém, Bosco se mantinha impassível, não acreditava em tais tolices. E após todos terem suas mãos lidas, o poeta foi estimulado pelos amigos a por suas crenças à prova, foi levado então por aqueles a estender sua mão à vidente. Ela tomou-a entre as mãos; olhou atenciosamente suas linhas, e com certo espanto no rosto disse-lhe, firmemente: “Devolverás o que não lhe pertence. E com água devolverás a vida”. Aquelas palavras afetaram-lhe grandemente, e fez-lhe vir à mente memórias indesejadas: pensou então em sua mãe e em seu amigo, e nas vidas que havia roubado destes, antes que assustado puxasse sua mão à força. Sua mulher não compreendeu tão brusco ato, e disse-lhe em tom de gracejo: “sabia que és no fundo um supersticioso, Pedro Don?”.

Durante anos a voz da vidente se repetiria em sua mente: “Devolverás o que não lhe pertence. E com água devolverás a vida”. Tanto que durante meses havia tido pesadelos com tal frase, finalizados com terríveis naufrágios.

Temendo que o sonho torna-se realidade, e por fim acabasse afogado, evitou a todo custo rios e mares. E como sua mãe havia lhe dado a vida em um dia treze, imaginou também que em um dia treze perderia a vida. Porém um dia foi avisado que sua mulher havia entrado em trabalho de parto e que precisava com urgência de um médico. Desorientado, buscou um, e foi lhe indicado partir a barco. Ao que relutou. E após mandar o médico a barco, partiu de volta à cavalo. Cavalgou durante horas a fio, sob a mais espessa chuva, tendo apenas como companhia o cavalo, nem mesmo a lua e as estrelas serviam-lhe de companhia. Porém ao amanhecer ainda não havia chegado. Passaram as horas até que finalmente seu corpo foi encontrado, caído, de bruços, com o rosto sobre uma poça d’água que havia se formado sob as patas do cavalo. O poeta havia incrivelmente morrido afogado em tão pequeno lago, no dia 13 de maio de 1904. Deixando maravilhosas páginas amareladas pelo tempo.

Duas vidas dedicadas a arte e a uma terrível obsessão ao número 13.

Dedicado à memória de minha tataravó Catarina Don Bosco, que também nasceu de olhos abertos, naquela fatídica noite, à espreita da luz, mas isso é outra história...
   

A LÉSBICA (de Bosco Silva)

by Sam Haskins


(UM CONTO AO MODO DO MARQUÊS DE SADE)



O rico e libertino Senhor de Mirvel, como a maioria dos homens, se orgulhava muitíssimo de sua virilidade, de sua imensa pica e de gozar feito um cavalo. Gabava-se também de ter passado noites inteiras fornicando com dezenas de mulheres, nos lugares mais inacreditáveis possíveis: estábulos, cemitérios, asilos, hospitais, hospícios e, claro, igrejas. Havia nisso, certamente, um gosto pelo perigo; e para ele, o perigo e o diferente, eram poderosos afrodisíacos.
Dizia-se ter fornicado com todos os tipos de mulheres, todas as formas modelares de vaginas e bundas. Porém, de todas as mulheres, uma parecia não ligar para seus encantos. Era a bela lésbica Juliette, que se trajava feito um homem.
Juliette era uma mulher de espírito independente, incapaz de trair seus desejos por valores sórdidos, econômicos ou mesquinhos. O que, certamente, mais o provocava, pois mesmo sua imensa riqueza não tinha nenhum poder sobre ela.
Com o passar do tempo, Juliette, tornou-se uma espécie de desafio, não apenas para ele, mas também para outros homens, o que, certamente, mais os excitavam ao vê-la passar pelas estreitas ruas de Paris; onde muitos homens ao ver sua beleza feminina sob trajes masculinos, ao passar, comentavam, com a mão em seus órgãos genitais, que isso se devia ao fato desta nunca ter sido penetrada por uma verdadeira pica, como as que estes supostamente possuíam; e entre eles estava o Sr. de Mirvel, que duvidava de tanta feminilidade, pois imaginava-a como um homem com um rosto e corpo femininos, que possuiria um pequeníssimo membro, como aqueles homens afeminados, que ele tanto odiava, que abundavam nos bordéis da cidade.
Curioso para saber como era o corpo de tal moça, seguiu-a inúmeras vezes, pelas redondezas que cercavam a cidade, em busca de um momento propício para desvendar tal mistério; porém, sem nunca conseguir. Até que, casualmente, ao passar de cavalo à beira de um rio, em meio a densas folhagens de árvores que abundavam em tal lugar, avistou, o que para ele era a mulher com o corpo mais belo que tinha visto, com as mais belas pernas, cintura, bunda e vagina que jamais havia visto em outra mulher. E esta ao virar, percebeu, então, ele, que era Juliette, despida de toda sua indumentária masculina.
Isto foi o bastante para que sua simples curiosidade tornar-se em obsessão. E, imediatamente, pôs-se a arquitetar um plano, para usufruir de tão belo corpo. Contratou, então, três homens para agarrá-la, encapuzá-la e despi-la, enquanto o poderoso Senhor de Mirvel pode-se estuprá-la.
Contudo, quando tudo estava pronto, com os homens prontos a agarrá-la, em mais um banho na doce água do rio, eis que nosso personagem, motivado por pensamentos que não devem ser tão constantes em víboras como estas, que inundam a humanidade com maldades sem fim, desiste de pensamentos tão atrozes; surpreendendo seus homens com socos e pontapés, expulsando-os aos gritos do lugar.
Sem sabermos se isto deveu-se a pensamentos premeditados ou a uma explosão de ira por ato de justiça momentânea, que o teria atacado, o certo é que Juliette agradeceu aquele que supostamente a teria salvo de tão humilhante ato, com abraços com seu corpo ainda nu. E ao apalpá-la e sentir seus seios nus sobre seu corpo, Mirvel pôde sentir o corpo que tanto desejava de um modo que jamais havia obtido com outra mulher: com sinceridade, carinho e gratidão. O que o fez mudar imediatamente seus interesses para com ela. Mirvel passou a olhá-la com outros olhos, não mais apenas com os olhos do desejo, mas com um misto de sentimentos que jamais havia sentido, não apenas por uma mulher, mas por qualquer outro ser: Mirvel passou a amá-la.
Juliette, por seu lado, passou também a tratá-lo de modo diferente, não mais com a indiferença de antes, mas com a gratidão de quem lhe devesse algo.
Mirvel passou a tentar ajudá-la, não apenas de forma econômica, que Juliette rejeitava, mas também de forma moral, defendendo-a perante aos que a criticavam; tanto, que muitos passaram a desconfiar de tão repentina demonstração de carinho; correndo o boato que Mirvel estava a amá-la.
Juliette, como prova de carinho, retribuiu-lhe os favores que tanto se acumulavam, entregando-se como amante, como alguém que lhe paga uma dívida.
Mirvel passou a não ser mais o mesmo, deixou de freqüentar os bordéis da cidade; de se encontrar com mulheres em seus encontros notívagos em seu quarto, ou nos cantos mais inconvenientes possíveis, que ele tanto se orgulhava.
Boatos se alastraram pela cidade, sobre sua nova amante; ao mesmo tempo que estranhos pensamentos passaram atormentá-lo: duvidou de sua própria masculinidade, pois o que o teria atraído em Juliette: sua impetuosa personalidade, ou sua imagem em trajes masculinos? Questões que se juntaram à impossibilidade de Juliette torna-se uma verdadeira amante, pois esta sempre lhe veria como um homem.
E disposto a resolver isso tudo, num ato súbito, apanhou um facão e pôs-se a mutilar-se, cortando seu pênis sob um terrível ataque de fúria; e, como um Van Gogh castrado, ofertou-o a sua amante...
E desde esse dia passaram a viver juntos, ela sob suas costumeiras roupas masculinas, e ele confortavelmente em seus belos trajes femininos.

PARA LER ESTÓRIAS BIZARRAS E DIFERENTES, ACESSE: www.cerebrau.com.br

JOGOS MENTAIS (de Haroldo Brandão)


by Grzegorz kmin

Sartre e a existência, Marx e a luta de classes: Harold continua perdido em qualquer espaço, meu movimento rotineiro é igual a de um robô-cyborg esperando virar ser humano, um personagem borgiano que só consegue sentir-se vivo na viagem literária proporcionada pela literatura. Bons tempos em que correr atrás da bola e andar sem medo nas ruas da cidade eram exercícios diários de saúde e alegria, formular um sentido para a vida é apegar-se em construções ilusórias mas que doem e muito na alma, cada mentira é um exercício de auto-engano e os paraísos artificiais estão cada vez menos eficazes, sigo em frente, para trás e para os lados dependendo do ponto de vista, eu nunca paro mesmo quando estou no mesmo lugar, seguirei fazendo os jogos mentais para sempre com quem encontrar, com quem estiver a fim. Até a morte!

quarta-feira, 18 de julho de 2012

A MENINA SEM ESTRELA (de Nelson Rodrigues)





Volto aos meus quatro anos. E, de repente, os cegos apare­ceram. Ou por outra: — antes dos cegos, vi uma menina, de pé no chão. A menina corre, atravessa a rua e vai beijar a mão de um padre. Durante toda a minha infância, na rua Alegre, ha­via sempre um padre e sempre uma menina para lhe beijar a mão. Mas como ia dizendo: — a pequena, dos seus sete anos, voltou para a calçada de cá. A batina continuou e sumiu, lá adian­te, na primeira esquina.
A menina sumiu também, como se jamais tivesse existido. Anos depois, mudamos para a Tijuca, rua Antônio dos Santos (depois seria Clóvis Bevilacqua). Perto de nós, morava o juiz Eurico Cruz e, ao lado, o senador Benjamin Barroso. Eis o que quero dizer: — nos dois ou três anos de Tijuca, não vi um úni­co e escasso padre. Havia uma igreja — e ainda há — na esqui­na de Barão de Mesquita com Major Ávila. Lembro-me da igre­ja, dos santos e não dos padres.
Fiz o parêntese e volto à rua Alegre. Depois que o padre dobrou a esquina, os cegos apareceram. Eram quatro e um guia. Estavam de chapéu, roupa escura, colarinho, gravata, colete, bo­tinas. Juntaram-se na esquina da farmácia e tocaram violino. Não acordeão, não sanfona, mas violino. Saí da janela, fiz a volta e fui ver, de perto, os ceguinhos. Eram portugueses. E o curioso e que, por muitos anos, só conheci cegos portugueses. Brasilei­ro, nenhum.
Fiquei ali, na esquina, em adoração. E os cegos — todos de chapéu — tocaram uns vinte minutos. Lembro-me bem: — um deles tinha, atravessando o colete de um bolso a outro bol­so, uma corrente de ouro. No fim o guia passou o pires. Cada um pingou seu níquel. E, então, voltei correndo para casa. Não falei com ninguém, meti-me na cama. Minha vontade era mor­rer. Fechei os olhos, entrelacei as mãos, juntei os pés. Morrer. Minha mãe entrou no quarto; pousou a mão na minha testa: — “O que é que você comeu?”. Comecei a chorar, perdido, per­dido.
E, de repente, uma certeza se cravou em mim: — eu ia fi­car cego. Deus queria que eu ficasse cego. Era vontade de Deus. Mas falei em quatro anos. Engano, engano. Eu tinha seis anos e não quatro. Nasci em 1912 e isso aconteceu em 1918, na es­panhola e antes da espanhola. Tenho certeza: — seis anos. Nunca mais me esqueci dos cegos e posso repetir, sem medo da ênfa­se: — nunca mais. Mas por que, meu Deus, por que pensava neles, dia e noite? Pode parecer uma fantasia de menino triste. E se disser que, já adulto, homem feito, a obsessão continuava intacta? Obsessões, sempre as tive. Mas essa nunca me abando­nou. Aos trinta anos, 35, quarenta, eu sonhava com os cegos; e os via escorrendo do alto da treva.
Quando minha família já ia sair de Aldeia Campista para a Tijuca, aconteceu o seguinte: — um menino, que brincava muito comigo, apanhou um canário e picou com o alfinete os olhos do passarinho. Eu me senti, eu, aquele canário de olhos fura­dos. E me imaginei cego, em casa, vagando por entre mesas e cadeiras. Meninas, senhoras, visitas teriam pena de mim, amor por mim. Na rua, diriam: — “Naquela casa, mora um menino cego”.
Mas quando mudamos para a Tijuca, já não estava tão cer­to se seria mesmo eu o cego. Podia ser minha mãe, ou um dos meus irmãos. Talvez Roberto. Milton, não, nem Mário. Sempre imaginei que meu pai, jornalista de fúrias tremendas, morresse, um dia, assassinado. Já minha mãe tinha um problema de visão. Mas fosse eu, minha mãe, meu irmão, alguém ficaria cego, al­guém. Eis a verdade: — ano após ano, me convencia de que os cegos do violino insinuavam um vaticínio. Meu Deus, não fora por acaso que, um dia, quatro cegos tocaram embaixo de minha janela, ou pertinho de minha janela. Tocavam para mim, não para os outros, não para ninguém, tocavam para um meni­no de seis anos.
Até os dez anos, doze, não tive medo da treva. Houve um momento em que teria a vaidade de ser o único menino cego da rua Mas o tempo foi passando. E o pavor veio com a idade. Adulto, eu não fazia mistério: — “Se eu ficar cego, meto uma bala na cabeça”. Não “uma bala na cabeça”; daria um tiro no peito como Getúlio. Ah, Getúlio estourou o coração mas pre­servou sabiamente a cara para a História e para a lenda. Pelo vidro do caixão, o povo espiou o rosto, o perfil intactos. Kennedy, não. A bala arrancou-lhe o queixo forte, crispado, vital. Tiveram que fechar o caixão. O povo precisa ver o seu líder morto. Nada, nem medalha, nem estátua, nem cédula, nem se­lo substitui o último rosto, o rosto morto.
Muitos anos depois, conheci Lúcia. Lembro-me de que, nu­ma de nossas conversas, falei-lhe assim: — “Desde criança, te­nho medo de ficar cego. Mas se isso acontecesse, eu...”. Fiz a pausa e completei: — “...eu meteria uma bala na cabeça”. Isso era e não era uma agressão sentimental, uma espécie de terro­rismo. Afinal, o amoroso é sincero até quando mente. No fun­do, no fundo, as minhas palavras queriam dizer outra coisa, ou seja: — “Mesmo cego, eu viveria se você me amasse”. Por ou­tro lado, sei que não é normal essa fixação numa fantasia infan­til. Mas não tenho medo de confessar a minha morbidez, nem ela me envergonha. Eu a compreendo e a recebo como uma gra­ça de Deus.
Mas estas notas não estariam completas, se eu não lhes acres­centasse uma explicação. Quero dizer que o medo de uma cegueira utópica, apenas sonhada, me tornou humanamente melhor. Ou, se não me tornou melhor, me deu a vontade obsessiva de ser bom. Mas, como ia dizendo, continuou o meu romance com Lúcia. Pouco a pouco, fui dizendo as coisas que são tudo para mim: — “Todo amor é eterno e, se acaba, não era amor”. E dizia: — “Quem nunca desejou morrer com o ser amado não amou, nem sabe o que é amar”. As nossas conver­sas eram tristes, porque o amor nada tem a ver com a alegria e nada tem a ver com a felicidade. Quando nos casamos, eu lhe disse: — “Nem a morte é a separação”. Ela concordou que na­da é a separação.
Depois, a gravidez. Ah, quando eu soube que ela só podia ter filho com cesariana. Não me falem em fio de navalha. O fio da navalha é um título de romance ou de filme. Mil vezes mais frio, e diáfano, e macio, e ímpio, é o fio do bisturi da cesariana. O marido, cuja mulher só pode ter filho com cesariana, terá de amá-la até a última lágrima.
 “Se for menina, o nome é Daniela”, disse Lúcia. Achei um nome doce e triste (gosto dos nomes tristes) de personagem de Emily Brontë. Uma noite, Lúcia foi internada, às pressas, na Ca­sa de Saúde São José. Parto prematuro. Minha mulher chega com dr. Cruz Lima e d. Lidinha. Dr. Marcelo Garcia e dr. Silva já es­tavam lá. Foi uma correria de médicos, enfermeiras, irmãs. Dr. Waldyr Tostes ia fazer o parto.
Naquela noite, pensei muito no staretz Zózimo. Sim, na sua bondade absurda, senil e terrível do personagem dostoievskiano. Há um momento em que somos o staretz Zózimo. Dr. Mar­celo Garcia era o staretz, e o dr. Silva Borges, e o dr. Waldyr Tostes. Dr. Cruz Lima também era o staretz Zózimo. Tudo acon­teceu numa progressão implacável. Daniela nasceu e não que­ria respirar. Dr. Marcelo Garcia fazia tudo para salvar aquele so­pro de vida. De manhã, quase, quase a perdemos. A irmã, de­sesperada, batizou minha filha no próprio berçário. Dr. Cruz Li­ma, dr. Marcelo, Silva Borges lutaram corpo a corpo com a mor­te. Mudaram o sangue da garotinha. E ela sobreviveu.
Lúcia quis ver a filha no dia seguinte. E veio numa cadeira de rodas, empurrada por d. Lidinha. Voltou chorando, e dila­cerada de felicidade. Também fui espiar Daniela pelo vidro do berçário. Uma enfermeira aparece e me pergunta, risonhamente: — “O senhor é o avô?”. Respondi, vermelhíssimo: — “Mais ou menos”. Mais uma semana, Lúcia e Daniela vinham para ca­sa. Tão miudinha a garota, meu Deus, que cabia numa caixa de sapatos.
Dois meses depois, dr. Abreu Fialho passa na minha casa. Viu minha filha, fez todos os exames. Meia hora depois, desce­mos juntos. Ele estava de carro e eu ia para a tv Rio; ofereceu-se para levar-me ao posto 6. No caminho, foi muito delicado, teve muito tato. Sua compaixão era quase imperceptível. Mas disse tudo. Minha filha era cega.

terça-feira, 17 de julho de 2012

SOBRE O CONCEITO DE MALDADE





 
No dia 24 de maio, o então ator pornô Eric Clinton Kirk Newman, conhecido pelo nome artístico de Luka Rocco Magnotta, matou e esquartejou seu amante, um estudante chinês em Montreal, Canadá. O assassinato, bem como o esquartejamento, foi filmado e publicado na internet pelo próprio assassino. Nele podemos ver Magnotta cortando o cadáver, sodomizando o corpo mutilado, enfiando o gargalo de uma garrafa no ânus do mesmo, e até mesmo pondo um filhote de cão para lamber os ferimentos do corpo. Magnotta chega ao cúmulo de, munido de garfo e faca, cortar uma pequena parte das nádegas e, com a ajuda do garfo, supostamente comê-lo. Magnotta ainda enviou pelo correio partes do corpo para uma escola e um partido político no Canadá.
No mesmo mês de maio, Elize Matsunaga matou e esquartejou seu marido, o empresário Marcos Matsunaga, após uma discussão conjugal por conta de uma infidelidade que teria sido descoberta por ela. Elize despachou o corpo dividindo-o em três malas. Exames posteriores indicaram que Elize decapitou o marido enquanto este ainda estava vivo.
Em Barcarena, município do estado do Pará, a adolescente Daiane do Carmo Macedo, de 14 anos, foi encontrada seminua, em avançado estado de decomposição, amarrada em uma árvore, morta à terçadadas por seu padrasto e por um vizinho. Supõe-se que o crime tenha sido incentivado por motivos sexuais.
Ao ouvirmos comentários sobre casos de extrema violência como estes é comum que logo surja alguém (jornalistas, policiais ou populares) que - motivado pelo crescente movimento de patologização de criminosos, estimulado nos últimos anos, certamente, pela enorme popularidade de filmes policiais, que popularizaram a figura do serial killer (e consequentemente a do psicopata), e por uma imprensa que se dedica muito mais a julgar (na maioria das vezes de modo errado) do que ao seu papel fundamental, que é informar - tente explicar tamanha maldade recorrendo a ideia de doença ou distúrbios mentais, como psicopatia ou pedofilia, antes mesmo que especialistas se pronunciem sobre o tema; como se, pela gravidade dos casos, somente tivessem esta forma de explicação. Assim, ao ouvirmos o caso de Elize Matsunaga, é comum que ouçamos logo um “só pode ser uma doente psicopata para ser tão má”. Ou se um homem estupra uma criança é logo taxado de pedófilo, como se a extrema maldade só pudesse ser explicada por meio de distúrbios mentais.
O que acontece é que ao vermos casos extremos de violência temos dificuldade em aceitar que possa existir a maldade pela maldade, que um ser humano possa ser capaz de ato tão vil, optando por ser mau, e assim recorremos a explicações exteriores a vontade humana como forma de explicação. Porém, ouso dizer-lhes, independente das possíveis explicações para cada caso em si, claro: A EXTREMA MALDADE EXISTE INDEPENDENTE DE QUALQUER IDEIA DE DOENÇA. O SER HUMANO NORMAL É PERFEITAMENTE CAPAZ DAS PIORES ATROCIDADES. E vou além: não apenas a imediata associação entre doença mental e maldade é apressada e superficial, quanto sem sentido. Isto não quer dizer que um doente mental não possa prejudicar uma pessoa, muitos fazem, mas sim que ele não pode ser taxado de mau, pois o conceito de maldade é incompatível com o conceito de doença mental, já que exige capacidades que um doente mental não as possui, pelo menos no ponto mais alto de sua doença, como:
1º. PLENO CONHECIMENTO DE SEUS ATOS: Para que possamos denominar alguém de “mau” torna-se necessário que este alguém tenha pleno conhecimento de seus atos e de sua maldade. Em outras palavras, que tenha pleno conhecimento de estar fazendo mal a alguém. Por isso não se pode chamar de maldade os atos violentos que por ventura um doente mental possa causar durante um surto de loucura, ou danos físicos ou psicológicos causados não intencionalmente a outro.
2º. LIBERDADE DE ESCOLHA: A pessoa para quem possamos chamar de “mau” tem que ser capaz de se decidir entre a bondade e a maldade, já que não podemos culpar alguém que fez o mal por falta de opção. Por isso, também não se pode chamar de mau a alguém que cometeu um ato mau forçadamente ou por ignorância; que não teve a liberdade de optar entre os valores de bondade e maldade, para que sua maldade possa ter sido intencional. Como o caso de alguém que usou de violência para manter-se vivo.
E finalmente:
3º. VALORES MORAIS: O conceito de maldade exige que a pessoa denominada de “mau”, seja portadora de sentimentos humanitários, haja visto que optamos entre a maldade e a bondade com base em tais sentimentos.
Por isso apenas o ser humano pode ser considerado mau: outro animal quando mata, esquarteja, devora outro de sua espécie não faz por opção, mas pelo poder irresistível de seus instintos; e isto apenas em último caso: quando coagido pela fome ou pela continuidade de sua descendência. Mas no homem isto pode ser uma questão de opção, isto é, um homem pode preferir estuprar e/ou matar crianças pelo simples fato de serem mais indefesas do que adultos, ou mais fáceis de serem ludibriadas. O que explica porque nunca vemos serial killers de lutadores de vale-tudo, por exemplo.
 Em suma, o conceito de maldade é um conceito filosófico e jurídico, NÃO PSIQUIÁTRICO, que serve para definir tanto a culpabilidade de alguém quanto atos criminosos, como o assassinato; e quando seus pré-requisitos não podem ser aplicados a alguém, este alguém é tido pela lei como inimputável, isto é, é incapaz de ser responsável por seus atos. O que pode abrir um precedente perigoso nesses tempos em que todo comportamento que fuja da ética, da moral ou dos chamados “bons costumes” é imediatamente associado a uma doença, levando muitos criminosos a se aproveitarem disso. E sendo um conceito mal interpretado causa tanto erros populares - que vê as doenças e distúrbios mentais como as únicas explicações para tanta maldade, não deixando perceber que alguém pode ser mau simplesmente por querer ser mau, por tirar vantagem disso, por ser um grande escroto filho-da-puta - quanto erros de especialistas, como o da psiquiatra Ana Beatriz Barbosa, que em seu livro Mentes Perigosas – o perigo mora ao lado, chega, erroneamente, a denominar a psicopatia como “doença da maldade”.
Seria ela mais uma partidária da patologização desenfreada da maldade ou estaria na verdade se aproveitando disso, com a crescente venda de seu livro?