quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Anorexa, Tu! - 4ª Parte (de Marcos Salvatore)




O TELÉGRAFO
Um brinde esnobe. Olho em torno. Sinto-me estranhamente protegido por esses personagens tão desconhecidos quanto dessemelhantes. Que lugar! O que eu fazia ali? O que fizemos lá? Para onde? Vinte e uma horas e a cidade está vazia... assim como eu. Minto. Eis a verdade: a alegria otimiza menos a fome: além do leite vem a energia. A luz da cidade apaga as estrelas com seu despudor, sua depravação. E depois de algum tempo sem ser notado, você passa a não notar mais ninguém. Boa noite, dependência.
Duas quadras depois, exaustos de tanto correr (aqueles tamancos não ajudavam), dobram na passagem Brasília e se deparam com um beco sem saída.
Quinze anos de experiência investigativa diária dera a Wanderley uma espécie de pragmatismo emotivo, uma lucidez passional ao mesmo tempo derivada e original. Era uma pessoa que a tudo compreendia com um sorriso sincero e pleno. Era da opinião de que existia um motivo para tudo. Nunca deixara nenhum caso sem solução. Conhecia a cidade em que estava como a palma da mão e tinha informantes nos lugares mais inóspitos e perigosos.
- Meus caros, chega a hora de estabelecermos as prioridades: estamos sem carro, estamos em seis, vestidos de mulher e sendo perseguidos por um bairro inteiro. O que sugerem?
- Temos uma arma... – Castro diz isso levantando a saia e mostrando o revolver preso à sua cinta liga: - Ainda restam quatro balas no pente.
Vila, que ficou calado durante toda a perseguição, arranca sua peruca e a joga no chão; tira os cílios postiços e nota que lhe falta alguma coisa:
- Preciso de um cigarro. Um cigarro, por favor. Pra pensar preciso dar um trago, um trago só.
- Só tenho um – diz Sávio, contemplativo: - vamos rachar, só quero um vinte.
Estavam sob a luminária falha de um velho poste, em frente a uma venda de açaí. Fumam em silêncio até que a misteriosa garota da boate se levanta languidamente e pergunta para Sávio, numa espécie de angústia (...) mas antes dela falar, preciso dizer que ela era linda! Linda! Uma Panicat do michê, com melhores modos, porém (Paquita, não!):
- Então... você não foi lá por minha causa?
- Sinto muito, não me lembro de você, não me lembro de nada. Estou sob custódia da polícia, provavelmente até o final da noite estarei preso por assassinato ou pior: morto... e nem ao menos sei o porquê. Me desculpe.
- Mas, como aconteceu?
- O que eu prometi a você? Qual o seu nome?
- Se você não se lembra, não importa mais.
Aloísio explica, em poucas palavras, tudo que acontecera desde que o flagraram fugindo do local do crime.
- Nos encontramos outra noite. Umas semanas atrás. Na verdade não foi bem um encontro. Não tive clientes e no final da noite ele apareceu. Ficamos juntos e eu gostei dele. Parecia tão sincero e foi tudo tão... verdadeiro. A pessoa mais amorosa, mais carinhosa... foi a primeira vez que alguém me tratou como uma mulher.
Castro se aproxima e pergunta sobre o que conversaram. Quem sabe alguma informação poderia esclarecer a presença do rapaz numa cena de homicídio.
- Contei a ele do meu sonho mais profundo, mais secreto. Ele prometeu que voltaria um dia e me levaria para ver o mar. O mar.
- Está nos dizendo que alguém que você jamais vira, promete lhe levar numa praia? E uma puta acreditou nisso?
- E porque não? A vida é tão curta, não é? Ou não é? (...) Esperei por ele todas essas noites e quando o reencontro me aparecesse com policiais e sendo perseguido.
Wanderley, impressionado, delibera: - “Puta, não: Meretriz. Meretriz! Mas isso é outra história, Professor Castro. Todos são inocentes até que se prove o contrário. Não sabemos quem você era ou foi. Tudo que sabemos é que temos um corpo estirado numa cama, num quarto motel vagabundo e que o Sávio aqui, é a única pessoa que sabe da verdade”.
- Com essas roupas não vamos longe – diz Aloísio para Wanderley: - Ô, Mano, você não conhece algum lugar pra tirarmos estas roupas e pegarmos um carro?
- A Seccional do Telégrafo, mas é o primeiro lugar que vão cercar. Não temos passagem.
- Eu tenho uma idéia: O Cacareco.
- O que é isso?
- É um bloco de Carnaval.
- Mas não estamos no Carnaval.
- Eu sei. Mas hoje tem festa Dark por lá. Entramos por trás, tem os banheiros, pelos quintais da passagem União e roubamos as roupas de alguém. Estão procurando por travestidos.
- Então vamos lá.
O CACARECO

Saindo da Brasília, vêem uma senhora na janela, pequenina, moreninha. Pedem um pouco d’água. Ela entra, anda com ajuda de uma muletinha. Trás a garrafa e um copo que é dividido por todos. Olha para suas roupas, maquiagem e sorrí como uma mãe para todos: - “Guenta! Tem doido pra tudo. Desconjuro!”.
Caminham pela curta passagem União tentando fazer todo possível para não chamar a atenção. Wanderley sabia que batalhas de gangues aconteciam muito por ali, por isso o deserto e o silêncio da rua. Porém, já era tarde. Na esquina da passagem Santa Cruz um grupo de pelo menos dez suspeitos os esperavam.
- E agora? Não dá mais pra voltar.
- Vamos passar por eles, então.
- Por mim tudo bem. Quatro balas resolvem.
- Também estão armados.
- Eu não tô nem lá. Cansei de passear. Tá na hora da diversão.
Se aproximam e o líder a gangue dá um passo à frente e diz:
- Vocês devem ser aquele bando de bichas que fugiram do NAIPE, não é? Não quero problemas com vocês. Só queremos esses dois, aí – aponta para Sávio e a garota. Eles valem mais vivos do que mortos. E somos oito contra seis.
Wanderley se aproxima do líder e faz uma proposta irrecusável:
- Tenho uma idéia melhor. Vamos brigar apenas nós dois e quem ficar de pé se manda com tudo, inclusive as armas. Cada um pega o seu rumo.
- Por quê se eu posso erguer a mão e matar todos vocês de uma vez?
- Porque um líder de gangue que recusa um desafio não é considerado. E eu te desafio na frente de todos os teus. Aqui e agora. Como é? É covarde?
- Velhote! Eu vou te surrar tanto que vão dizer que eu te bati com uma tábua.
Wanderley entrega seus pertences para Sávio: - Segura garoto, que faz tempo que eu não pego um palhaço desses.
Todos abrem espaço e a briga começa. Wanderley leva os três primeiros socos apenas para medir a força do oponente. Cai no chão uma, duas, três, quatro vezes. Por entre risadas seu rosto sangra enquanto todos se contém a seu pedido. A cada soco Wanderley ri cada vez mais e mais alto. Sua idéia era chegar perto o bastante para dar um único golpe.
- Para de rir! Para de rir!
É nesse momento que seu adversário se aproxima o suficiente pra levar um quebra-perna de Wanderley, caindo em seguida aos berros.
Wanderley o segura pela camiseta e o arrasta até a vala mais próxima; diz:
- Meu rapaz. Posso quebrar a outra perna ou te fazer beber água da vala. Qual vai ser?
- Vai te foder!
- Boa escolha. Você é quem sabe. Vai comer merda agora.
Com destreza, enfia a cara do bandido na vala várias vezes, quase o afogando. Chega perto de Sávio e se lembra: - Porra, esse vestido até que é do caralho.
Depois de pegar a rua sem maiores problemas, atravessam os quintais de terrenos baldios e chegam finalmente na entrada de trás do Cacareco. O Pink Floyd Cover fazia um dos seus melhores shows.
- Parece um velório em preto e branco.
- Pelo menos não é um show de aparelhagem.
- Merda! O jogo já deve estar no segundo tempo.
Roubaram as roupas de quem apareceu pra mijar.
- Vamos tomar pelo menos uma antes de ir embora. Só pra ver se cola.
Enquanto tomavam seu drink, não sabiam que uma figura de óculos escuros e aparente interesse em todos se aproximava.
O OBSERVADOR

- Boa noite, senhores. Vejo que trocaram de roupa. Essa está melhor.
- Quem é você? – pergunta Castro, segurando de leve em sua arma.
- Sou um Observador. Chancei, ao seu dispor. Estou aqui para ajudar e trazer notícias dos outros.
- Que outros?
- Do delegado e do advogado. Eles chegaram bem e estão interrogando o padre nesse momento. Estão na Igreja das Novenas. O garoto já lembrou?
- Não. Ainda não.
- Já sei o que houve na Santa Cruz. Foi uma boa briga. Boa briga.
- Precisamos de um carro pra sair daqui.
- Daqui à pouco passa o último Icoaraci. Perto do Curro Velho. Se o pegarem podem descer na Praça do relógio em pouco tempo.
- E você?
- Eu não vou. Eu fico. Não tenho nada com isso. – vira-se para o garoto e diz: - E lembrem-se: talvez a chave de tudo não seja o garoto afinal. Posso distrair quem estiver esperando por vocês lá fora enquanto todos correm. Nos vemos depois da festa.
Quando saem, percebem que o lugar realmente está repleto de figuras mal encaradas.
- No meu sinal vocês correm em direção da Pedro Álvares.
Chancei então puxa duas armas e começa atirar em todas as luminárias dos postes, depois os pneus dos carros. Dá o sinal e todos correm para o semáforo. Acontece que na encruzilhada outros raptores os esperavam para uma armadilha. Pularam um muro que dava pra uma casa fechada. Casa esquisita, sem fachada, nem janelas, apenas vitrôs. Entram todos pela cozinha e bloqueiam a entrada com a geladeira e o fogão. Sobem uma escada giratória estreitíssima até um minúsculo terraço de onde puderam ver o tamanho da encrenca em que se meteram: de todos os lados da Arthur Bernardes e da Pedro Álvares Cabral, armas apontavam para cima. Começa então um tiroteio que acaba com toda a munição.
- Estou vendo o ônibus. Está chegando perto.
- Então vamos ter que pular.
Preciso falar um pouco do sargento Vila: era um homem sem medos, porém nada o assustava ou confundia mais do que grandes alturas. Por vezes, da janela do seu apartamento (janelas com grades) olhava para baixo e pensava: - “E se eu pulasse e saísse voando? Não cairia nunca. Nunca!”. Estou exagerando, desculpem, mas quem não se pergunta isso? O certo é que seu território sempre fora o chão. Então aquela situação parecia decisiva: pular ou não pular para ele lhe tirava o fôlego só em pensar. Mesmo assim, antes da hipótese suicida de pular surgir, pensou: - “Um pôr-do-sol daqui deve ser do caralho!”.
- Ele parou! Parou! Se corrermos e nos jogarmos no teto do ônibus estaremos salvos.
Aloysio toma distância e se joga, caindo em seguida com segurança em cima do teto do ônibus que estava bem perto deles. Wanderley, Sávio e a garota o seguem sem problemas. Ao perceber a jogada, os bandidos embaixo começam a atirar. Castro vira para Vila sôfrego;
- Pula, porra!
- Não posso, não consigo!
- Então ficamos aqui, os dois. Não vou te deixar aqui pra morrer, seu cagão!
Vila fecha os olhos, toma distância e antes de se jogar tropeça e fica preso pela jaqueta entre o ônibus e um ferro solto no vitrô, do segundo andar.
- Espere não se mexa, só mais um pouco. Ainda tenho dois tiros. Prometi usar todas essas balas hoje.
Castro então mira com sua Magnum 44 e atira, soltando o amigo. Pula em seguida, pouco antes do motorista, desesperado pisar fundo, quase jogando-os de cima do ônibus.
- Estão todos bem? Todos bem?
- Não, acho que vamos ter que dar uma parada.
- O que houve?
Sávio sorri nervoso antes de virar para todos e mostrar o sangue no peito.
- Puta merda.
Aloisio passa a mão pela cabeça. Todos se entreolham enquanto o rapaz é agarrado pela garota em prantos. Dois carros os perseguem.
- Ele está sangrando muito!
Ônibus em disparada já estava indo para a garagem depois da última volta. Castro se arrasta até abertura da porta superior e consegue entrar. Aproxima-se do motorista e grita:
- Pare esse veículo que eu vou descer. Essa merda já foi longe demais. Longe demais.
- O que ele vai fazer?
Castro desce e o ônibus segue. Espera pelo melhor momento e dá um tiro certeiro que faz um carro capotar por cima do outro. Um dos bandidos se arrasta atirando e acerta Castro na perna, outro também se recupera e se levanta, aponta a arma para Castro que, indefeso, balbucia: - “Então, é isso!!”. Não vê o ônibus dirigido por Aloisio na contramão, a toda velocidade se aproximando.
O impacto da batida foi tão grande que o bandido foi parar a metros de distância.
- Carona, filhão?
- hehe! Tu sabes.


Na Igreja, depois de ouvir a confissão do padre, o telefone de Seu Iraque, digo, Eráclito, recebe uma chamada a cobrar:
- Que foi, porra? Telefone público? Por que estão demorando tanto? (...) Sei, dois feridos. E o motorista do ônibus? Ok, em segurança. (...) Precisam descer na Dona Roxita pra fazer curativos. É puta velha, vai resolver tudo. (...) Minha mulher já me ligou escroteando. (...) Porra, Wanderley, na minha ausência o comando é teu, cacete. Quero vocês aqui antes do final do jogo. (...) Tá 2X2. Caso sério. O Bocage já tá virando do avesso. E o garoto? (...) Escuta.. escuta... só me ouve. Tem uma garota com vocês, não tem? Isso mesmo. O nome dela é Lucrécia. Lucrécia, ouviu? O padre confessou tudo. Ela é a culpada, Wanderley, a culpada pela amnésia do garoto.

CONTINUA...

Anorexa, Tu! - 3ª Parte (de Marcos Salvatore)


by Helmut Newton



Eu matei. Sim, talvez eu tenha: eu, assassino do que sinto falta. Surpreendo-me com a naturalidade com que me deixo esquecer. Fecho os olhos e ainda vejo, distante, brilhante sobre um fundo preto, o rosto de uma mulher. Lembro-me de amar quando amado, de odiar quando odiado. E cada minuto tem uma profundidade imprevisível, irresponsável. Sou um engodo inusitado, uma isca do mirante do Forte até aqui. Só esqueço de perguntar pelo seu nome, o nome dela.

DEMÉTRIO: O POODLE Nº 0

Os carros pararam em esquinas distantes: Vila, Castro, Aloísio e Sávio. Aguinaldo e Wanderley já estavam a caminho. Seu Iraque, digo, Eráclito; Bocage e dona Aldenora no banco de trás na maior farra riam até de sinal fechado:
- Minha pombinha, dá uma emboladinha aqui, isso devagar com os dentes senão eu não me concentro na materialidade da ocorrência. Cuidado que esse caso é de grande jurisprudência.
- Ai, só gosto de homem que fala difícil. Homens de substância.
Era verdade. Dona Aldenora sentia um atração inominável, desde pequena, menina que subia de saia sem calcinha no açaizeiro, por homens que falavam alto, mais velhos, desembaraçados. Bocage a conheceu durante uma de suas palestras: lá estava ela com seu caderninho de anotações e a cada termo jurídico Bocage percebia que aquela morena de peitos fartos e quadris de “aluna em recuperação” se torcia e retorcia em mil e uma danações. Depois de muitos “datavenias” e “deveras”, soube que tinha encontrado a assistente perfeita para as horas extras.
- Seus imorais. (...) Se a dica do garoto estiver certa, nosso elemento deve estar até o pescoço envolvido com o corpo estirado lá naquela cama – “Oito horas: já vi que vou dormir de novo no sofá”.
- Se Vossa Senhoria me permite, chegando lá, peçamos uma garrafa do melhor whisky e um balde de Red Bull que as Plocs vão “cair matando”.
Entram disfarçados numa boate aparentemente normal, não fosse por um corredor estreito com um poodle minúsculo de guarda.
Aloísio com seu chapéu dos intocáveis (versão em preto e branco) tenta fazer festinha no canino, mas o mutante fica em duas pernas e se transforma num gremlin feroz, botando todos pra pular uns por cima dos outros. Bocage, vestido de motorista de caminhão, acha uma graça infinita e chama dona Aldenora, que estava vestida de mulher que finge que é homem, que finge que é travesti, que finge que é Violeta Parra, para apaziguar a fera.
- Vem cá, bonitinho, não liga pra esses mauzinhos.
Passam todos: Vila de sandálias havaianas, bermudão e camiseta do Iron Maiden e Castro de hare krishna Prêt-à-porter, que antes de entrar dá um chutão no Nº 0: - Por quê essa pavulagem com cachorro? Está quase dando de mamar pra esse pulguento.
O delegado que estava vestido de ator pornô dos anos 70, olha por cima dos óculos ray ban e pergunta para Bocage:
- Ô Bocage, tu ainda tem desconto nesse antro?
- Mas é claro, camarada: cinquenta por cento. Quer ver só? – para o “leão-de-chácara” da entrada: - Nossa amizade, eu sou amigo do fulano de tal, que é dono daqui e gostaria de um abatimento nas entradas, meu nome é Doutor Bocage, mas pode dizer que aqui é o Sabá.
- Por quê Sabá? – pergunta Aloísio, coçando o cavanhaque – Puta nome tosco, anárquico-carnavalesco.
- Ganhei esse apelido quando frequentava o “Nas Coxas”. Só ia no sábado, nada demais. Minha reputação me precede.
O funcionário entra e volta no mesmo instante com uma voz nasalada que deu o que pensar:
- O patrão falou que fiado só amanhã.
Depois de muita conversa vencida há uma coleta e todos entram. Castro ainda pergunta se aceitam Meia Entrada, mas leva um puxão de braço de Vila que a tudo desconfiava no lugar.
E que lugar: padres, freiras, pastores, rabinos, bicheiros, reitores, funcionários públicos, políticos de todas as raças negociando o amor de meninas e meninos de no máximo 17 anos. O maior circo de parafilias nervosas (e influentes) já visto. Puro Ensino Médio em flor, das melhores famílias e escolas da cidade. A surpresa de todos foi tanta, que Seu Iraque, digo, Eráclito, conclui severo: - “Essa é a verdadeira “Corda do Círio”, o resto é piada. O verdadeiro significado das ações... é o significado das ações”.
Desconcertado, Vila pensa: - “Será que vai dar tempo de pegar o segundo tempo do jogo? Aposto que a idéia do plebiscito saiu de um buraco como esse”.
Bocage, lúdico: - “E pensar que é assim que se constrói um país. É por isso que o perdão custa caro: pra financiar o pecado”.
Castro faz as contas e resume para todos: - “Se esse é o Nível Médio, como será o Superior?”.
- Provavelmente mais caro – diz Aloysio que até desliga o celular para ver e ouvir melhor aquela cena grotesca de puro Satyricon. Satyricon não: Sallon Kitty. Dona Aldenora começa a sentir uma coisa, uma coisa.

DZI BIGODES

- Vamos nos espalhar – diz Seu Iraque, digo, Eráclito, cauteloso. Já sabem a quem procuramos. Agora, só tem uma coisa, hein? Se eu pegar alguém de relaxação, vai pro xilindró. Vila, cuida do garoto. Vê se ele lembra de mais alguma coisa.
- Sávio, o que você fazia aqui?
- Procurava por alguém, eu acho.
- Acha? É melhor ter logo certeza de algo, senão, eu acho que vou te largar uns cascudos. Lugarzinho estranho esse, não é? Cadê o sujeito? Cadê o velho que levou a menina?
Um pastor, desses de gelatina milagrosa, brincava de cavalinho com uma ninfetinha de no máximo quinze aninhos, que o chicoteava nas nádegas, dizia: “Opera, minha filha, opera”.
Bocage, aproveitando a oportunidade de tantas autoridades juntas sai distribuindo seus cartões, enxerga de longe o procurado. No palco, o caçado: um padre - ou seria abade? - dançava chupando um picolé de taperebá, agarrado a um índio de vestido cor de rosa e tênis futsal.
É impressionante como a concorrência para catequização de pagãos ainda está na moda. Todos os caminhos levam a Roma, não é “vero”?
- Isso, isso, isso! Vai lá, Pai.
Aloísio tranca a porta, enquanto Castro saca sua Magnum 44 e dá dois tiros numa caixa de som – “Porra, de tecnobrega!”.
- Epa, epa! Que é isso? Que é isso?
O delegado sobe numa mesa e comunica:
- Seus depravados! “Vamo” acabar com essa cornada, porra! (...) Calma, minha senhora, pode continuar com o seu boquete. Nosso assunto é com um único “pó de broca”: aquele ali. Queira se apresentar, por favor. (...) A sua “bença” padre, sabe que o senhor é mais simpático ao vivo que na TV?
O eclesiástico toca de leve os dedos do delegado e diz, afetadíssimo: - “Barazer, Abatezza Zibody. Hoje é beu dia de folda”.
- Ih, mais essa, agora: o velho é tatibitate, “homem-rapaz”! Que marmota é essa? Vamos precisar de tradutor. Tenho uma missa pro senhor rezar. (...) Vila, tá na hora do confessor se confessar. Pode levar. (...) Porra, Castro, eu disse pra não trazer arma nenhuma, cacete!
- Tá aqui no cu deles que eu vinha pra cá desarmado.
Um brutamontes da segurança pega no ombro de Vila e diz:
- Perdeu, perdeu!
Vila calmamente olha para aquela mão em seu ombro e nota que sua camiseta do IRON MAIDEN amassou um pouco:
- Eu perdi e tu achou. Toma o do Natal!
Vila dá um murro que quebra o nariz do segurança e a porrada geral começa bem na hora que Aguinaldo e Wanderley aparecem segurando o poodle nº 0. Wanderley, vestido de Cowboy Fora da Lei, dá o comando: - “Pega Demétrio, pega”!
A gremlin avança em todas as bundas. Aguinaldo, que estava vestido de punk, derruba logo uns três, virando uma mesa cheia de pênis e xoxotas de plástico, sopa de merda e suco de mijo e vômito, pro banho romano – verdadeiro bufê parafilítico.
Como muita gente ali estava amarrada por gostar de bondage, acabaram levando umas lambadas também. Meninas (Duca! Duca!) que vestiam seus uniformes (com os pais presentes), na pressa de correr do flagrante, esqueciam seus cadernos e carteirinhas de meia-passagem.
Peço aos leitores para imaginarem, em câmera lenta, o caso de amor à primeira vista entre o investigador Wanderley e o sistema de som dolby sunrround do recinto que foi possuído por ele ali mesmo, na frente de todos.
No meio de tudo, além do som das cadeiras e mesas se quebrando, além dos latidos assassinos do cachorro, era possível ouvir claramente a risada de Bocage e dona Aldenora dando umazinha atrás da cortina. Todo mundo aproveitando pra tirar umas casquinhas. Putaria, sacanagem e violência. A moçada do “arroz com mel” (enemas) tentava inutilmente correr com aquela coisa enfiada na bunda.
Quando tentaram sair, outros seguranças aparecem no corredor. A porta é trancada e eles ficam sem saída. É quando Sávio puxa o delegado e dá a solução:
- Tem uma porta atrás daquele quarto que vai dar num outro quarto que vai dar nos camarins da boate.
- No, no. Então é isso mesmo. Por aqui, todo mundo.
Antes de sair pela fuga, Castro ainda volta pra chamar todo mundo de bunda mole:
- Seus “gala seca”, bando de frouxos. Agora eu me invoquei, chega todo mundo que eu meto é bala!
É puxado pela camisa por Aloísio e Vila enquanto Wanderley calmamente termina o seu drink, curtindo um som do Uriah Heep que acabara de colocar no volume máximo.
- “Bora”, porra, que a gente roubou umas garrafas de whisky tantos anos.
- A “Abadessa”, protestava: - “Calba, calba! Bor vavor, zim, Bem? Dão be gombrometa. Bor vavor, Negron!”.
- Essa égua tá falando que nem apresentador de telejornal empolgado. Arrasta!
No camarim a única saída era pelo palco e o único jeito de saírem sem ser reconhecidos era o de se travestir e sair dançando (o padre gostou).
E foi isso, quando “Relance”, da Gal Costa começou a tocar, aquelas figuras andróginas deram um show tão bacana que duas mocinhas chamadas Ivone e Marta, invadiram o palco enlouquecidas para agarrar os dançarinos. O jeito foi leva-las com eles.
Antes de correrem para os carros, Sávio teve a impressão de ter visto alguém. Alguém que não poderia estar vivo. É repentinamente tocado no ombro por uma mulher, alguém que parecia reconhecê-lo:
- Veio cumprir seu juramento?
- O quê?
- Não se lembra mais de mim? (...) Talvez disso você lembre.
Agarra-o pelos cabelos e lhe dá um beijo apaixonado, sem fim; depois morde seu lábio inferior até sair sangue. Diz sorrindo, com uma tristeza terna, doce:
- Me leva com você.
- Então vem.
Aloísio acha muito louco, e puxa os dois pra dentro do carro, para junto dos outros. O carro não pega e o jeito é descer todo mundo para empurrar correndo (e vestidos de mulher) ladeira abaixo. Chegando no declive o plano dá errado e Wanderley perde o freio e o controle do carro que está prestes a cair no canal da Ponte do Galo. Os seguranças da boate atirando enquanto o carro de Bocage e Aguinaldo, levando as meninas, diminui a velocidade para que o padre e o delegado entrem pela janela. Wanderley se joga do carro, antes que este mergulhe das margens barrentas, salvando-se. O som do carro, que estava no máximo, ainda tocava os últimos acordes do maior sucesso do Alice in Chains.
Dentro do outro carro, enquanto dirige, Aguinaldo pergunta preocupado, para o delegado:
- Pra onde, Chefe?
- No, no. Só tem um lugar pra levar essa santa: para a igreja das Novenas. Não se preocupe com os outros. Eles chegam até lá de alguma forma e antes do final do jogo.
Bocage ainda teve cabeça para organizar uma porrinha com o whisky roubado e embebedar de vez as meninas. Ivone e Marta já estavam na quinta rodada.
O grupo se divide ao atravessar a ponte: Vila, Castro, Aloísio, Wanderley, Sávio e a garota tem que atravessar, do Telégrafo até a Cidade Velha a pé, destino igreja das Novenas.
Os seguranças retornam. Mas isso não vai ficar assim.
Do lado de fora da boate, num cartaz com a foto da mulher mais estupidamente gostosa que vocês puderem imaginar, estava escrito:

DESSE NAIPE VOCÊ SÓ PEGA AQUI!

CONTINUA...