ENTREVISTA COM O AUTOR DO ROMANCE GÓTICO “APÓS A CHUVA DA TARDE”
Como foi a pesquisa para o romance?
Foi por meio de teses de mestrado de historiadores e estudos sobre lendas, publicadas na internet. Aproveitei também as histórias contadas por meus familiares e conhecidos, sobre visagens, encantados e portais mágicos da encantaria marajoara; histórias que estão desaparecendo.
Encantados? Assim como fadas e duendes?
Assim como o boto encantado, em sua lenda. Mas não deixam de ter certas semelhanças com fadas e duendes. E o nome encantado ou encantaria, é como são chamadas as entidades da Pajelança. São criaturas vindas da floresta ou das águas, como a Princesa de Mayandeua, que está no livro, que é um encantado que faz crianças chorarem no ventre de suas mães, anunciando que estas foram destinadas a se tornarem pajés e terem o dom da clarividência e da cura, passando a se comunicarem com elas e levando-as para o reino dos encantados, por meio dos portais mágicos. Para essa tradição algumas pessoas não morrem mas se tornam encantados, e passam a viver entre nosso mundo e o mundo de lá. São entidades que também possuem a função de proteger os rios e as florestas.
Samaúmas São Árvores Sagradas e Portais Mágicos para Indígenas Amazônicos |
Com tantos incêndios e devastação na Amazônia, pelo visto, estão perdendo a luta.
Quando criança, ao visitar a casa de meus avós, no interior, éramos alertados de que havia horas que não devíamos frequentar os rios e igarapés, pois era a hora da Mãe d’água, uma entidade protetora dos rios. Hoje vejo isso não como fruto de superstição, de gente ignorante, como podem pensar aqueles que são de cidade grande, mas uma forma de sabedoria, de respeito à natureza, um modo de nos mostrar que nossa ação sobre a natureza deve ter um limite. É isso que falta hoje.
O “Após a Chuva da Tarde” é o primeiro romance histórico vampiresco?
Não conheço nenhum outro livro de vampiro que seja um romance histórico. É comum que histórias de vampiro aconteça no passado, como no caso de “Entrevista com o Vampiro”, de Anne Rice, mas o simples fato de se passar no passado, não o faz um romance histórico; é preciso que a história aconteça em um momento histórico real e que tenha influência em sua trama e em seus personagens. Nesse sentido, só conheço realmente o “Após a Chuva da Tarde”, como um romance histórico vampiresco, que acontece durante o importante período amazônico do Ciclo da Borracha, em que fazendeiros das principais cidades da Amazônia enriqueceram devido a exportação do látex extraído das seringueiras.
Houve dificuldade para adaptar um romance gótico à Amazônia?
Não, aproveitei o clima gótico de alguns lugares de Belém: o Cemitério da Soledade e os palacetes, são bons exemplos que me inspiraram. E todas as principais características da estética gótica estão presentes no romance: o clima soturno dos casarões, o passado assombrando o presente, o elemento sobrenatural, a transgressão social e o clima tenso. Talvez o elemento mais difícil de adaptação tenha sido o clima tenso, já que tive que adaptá-lo aos costumes de nosso povo, que são bastante festivos e alegres, para isso busquei inspiração no clima fantasmagórico de nossas lendas urbanas, em nossas histórias de visagens.
Jazigo do Cemitério da Soledade, Belém. |
Qual o foco do romance “Após a Chuva da Tarde”?
Além de oferecer divertimento e entretenimento, o romance tem também a função de despertar nos leitores curiosidade e interesse pela história de Belém, e mostrar que, ao contrário do que a maioria dos brasileiros pensam, Belém não é uma cidade perdida, “no meio do mato”, com jacarés desfilando pelas ruas. Mas uma cidade que desde cedo foi bastante desenvolvida: uma das primeiras cidades do Brasil a ter condução pública, a ter um dos mais modernos jornais e sistema de processamento de lixo da América Latina, e que tinha mais conexão com a Europa do que com a própria capital do país, na época, Rio de Janeiro. Talvez a leitura do romance ajude as novas gerações a ver a cidade com menos desdém, já que ao reconhecerem os ambientes em que se passa a trama, se sintam como fazendo parte da história, e consequentemente, como parte da história de nossa cidade.
O romance também explora algo que é visto com preconceito pelos próprios brasileiros que, alimentados pelo enorme complexo de vira-lata, que nos foi ensinado, preferem importar lendas estrangeiras do que ver em nossas lendas o enorme potencial que elas possuem. Por isso as lendas amazônicas são o grande foco do romance: de como elas surgem, como se tornam populares e duradouras. É sabido que as lendas surgem de algum acontecimento que impressionou um grupo de pessoas, uma cidade, uma região, e que populares passam a construírem narrativas com elementos mágicos sobre o evento de origem. De modo que, toda lenda tem sempre um fundo de verdade. E para demonstrar isso, o romance se utiliza da lenda de Camille Monfort, a cantora lírica que impressionou a população da cidade de Belém, no ano de 1896, em que se dizia que ela, por meio de sua beleza e voz, era capaz de comandar os desejos e pensamentos dos que a ouviam. O romance, então, leva o leitor, por meio das diferentes narrativas dos personagens, a se decidir sobre o que é real em tal lenda.
Por que então vampiros? E houve dificuldade em misturar a lenda dos vampiros com lendas amazônicas?
Os vampiros são seres fascinantes e extremamente humanos, pois possuem duas características essencialmente humanas, que talvez explique o sucesso de sua figura na cultura e nas artes: a forte energia sexual e o desejo latente de imortalidade. Seriam então os personagens ideais para interagir com nossas lendas e chamar atenção para estas, e mostrar como as lendas possuem tanto em comum, mesmo as europeias e amazônicas.
Então, inicialmente, eu queria fazer uma história de vampiro contada de forma bastante realista, em que o sobrenatural se manifestasse por meio do real. O que me levou a incorporar na história acontecimentos históricos. Depois pensei em como seria uma história de vampiro passada na Amazônia, em um lugar tão distante dos cenários comuns de suas histórias. Então pensei em misturá-la com lendas urbanas da cidade de Belém e lendas folclóricas amazônicas. E aí veio a surpresa. Quando eu li “Cosmologias da Encantaria do Marajó-Pa.”, da pesquisadora Dione do Socorro de Souza Leão, eu li relatos de moradores da cidade de Breves, na ilha de Marajó, que, para proteger suas famílias e afugentar o boto encantado, amassavam dentes de alho em cuias e jogavam nos rios, assim como botavam alho e desenhavam cruzes nas portas de suas casas para o boto encantado não entrar. O texto também dizia que botos eram atraídos pelo sangue de mulheres menstruadas que estivessem nos barcos, e que vinham com intenção de virá-los para possuí-las. Com espanto, percebi que os mesmos procedimentos usados para afugentar vampiros, eram os mesmos usados para afugentar os botos encantados da Amazônia. Assim descobri que os botos encantados são seres vampirescos. Surpreendentemente, a distância entre a lenda do boto encantado e a lenda dos vampiros europeus diminuiu muitíssimo.
Como aconteceu a viralização do texto “Camille Monfort: a Vampira da Amazônia”?
Durante o término da última revisão do livro, eu descontente com tanto trabalho pra algo que dificilmente chamaria a atenção das pessoas, devido a tão poucos leitores, tinha dito para uma amiga, a fim de mostrar a imensa dificuldade de encontrar leitores: “Só mesmo se algo sobrenatural acontecer para chamar atenção para o livro”. Passou-se alguns meses. Então visitando um site de que sou frequentador assíduo, o Mundo Gump, vi uma foto antiga de uma bela mulher que ilustrava um dos textos do site, que me chamou bastante atenção. Imediatamente, entrei em sintonia com a imagem daquela mulher; vi nela todas as características que via em Camille Monfort, então tomei a liberdade de tomá-la emprestado e postei junto com outras fotos de lugares antigos da cidade de Belém como ilustrações de um pequeno resumo do livro para divulgação no Facebook. E qual não foi minha surpresa, quando vi que em questão de minutos, começaram os inúmeros compartilhamentos e as curtidas, com postagens tendo milhares de curtidas e comentários --- a postagem mais recente que vi no Facebook tinha 45 mil curtidas, 3600 comentários e 6600 compartilhamentos. E logo o texto passou a ser replicado em outras redes sociais, e em outros países, com textos e vídeos em várias línguas estrangeiras --- inglês, francês, italiano, espanhol, alemão ---, no tik tok e no youtube. Do nada, do nada, havia surgido algo que passou a chamar atenção para o livro (risos).
Embora seja comum a viralização de vídeos no facebook, a viralização de um “textão”, como são chamados de forma depreciativo textos com mais de 100 palavras, não é nem um pouco comum, é de chamar mesmo atenção. Talvez aí esteja a ocorrência do sobrenatural que você havia falado para sua amiga (risos).
Sim, sim, talvez esteja aí o sobrenatural que eu tanto esperava acontecer, pois, em todos esses anos que uso internet, nunca vi um "textão" viralizar tanto, muito menos um feito para divulgar um livro. Talvez seja obra dos poderes de Camille Monfort (risos), ou de Josephina Conte, já que ela é considerada uma santa popular milagreira, e que está presente no livro, que me viu pedir tanto por um auxílio. E para você ver o quanto a divulgação na literatura é algo difícil e muitas vezes injusto: se em vez de texto fosse uma música, eu estaria rico agora, devido a projeção internacional.
E o que você acredita ter sido o fator principal para o texto viralizar?
Ah, nunca se sabe a fórmula, né. Eu ainda hoje tento entender como um texto simples, sem nenhuma novidade chamou tanta atenção; chegou a ser assunto de motoristas de uber --- aí é quando você nota que rompeu a bolha (risos). Mas se eu tentasse arriscar uma explicação, diria que foi a perfeita harmonia entre a foto antiga da bela jovem e o texto cheio de informações históricas que a acompanhava, intencionalmente feito para provocar curiosidade e mistério em quem o lesse, e fazer surgir nos leitores de Belém a ideia: “Égua, tudo isso aconteceu, aqui, tão perto de mim, e eu não sabia!”. Porém, o efeito foi muito mais abrangente, mexendo com a curiosidade de pessoas de outras cidades e países. Não posso também esquecer da postura natural e desafiadora de Camille Monfort perante aos hábitos da sociedade de sua época, que encontrou uma ótima acolhida entre as leitoras do texto.
Houve certa discussão sobre a suposta foto de Camille Monfort. Alguns disseram que a mulher da imagem não poderia ser daquela época, já que possuía traços modernos, como o traçado das sobrancelhas; outros, que a pessoa da foto havia vivido no começo do século XX, e que a foto era de um estúdio londrino, explodido durante a guerra. Afinal, quem é a mulher da foto antiga?
A moça da foto nunca existiu, é uma imagem feita por inteligência artificial. O que, para mim, que soube depois, tornou o fato ainda mais misterioso, pois como pode algo feito por uma máquina impressionar tanto a gente, ao ponto de achar que aquela é a imagem de alguém que possuía vida, com seu olhar a nos relatar tanto sobre si mesma, ao ponto de me ter impressionado tanto e ter visto nela todas as características de uma personagem. O que me fez lembrar da tese do ”Fantasma na Máquina”, daquelas supostas gravações de áudio de manifestações de vozes de espíritos em fitas gravadas por meio de gravadores ligados em casas mal assombradas, ou imagens de pessoas falecidas capturadas em gravações de TV fora de sintonia. Se isso ocorria com rádios e TVs, por que não podemos imaginar que possa também ocorrer com as novas tecnologias, como as IA (inteligência artificial), criadora de imagens e textos?
Perguntas elaboradas por Elle Andrade para o autor Bosco Chancen.
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