segunda-feira, 11 de novembro de 2024

O DESEJO DE LILITH (RESENHA)





O DESEJO DE LILITH (RESENHA)


O que me levou a ler o livro O Desejo de Lilith (2009), de Ademir Pascale, confesso, foi a devastadora resenha denominada Zé do Caixão Descobre Dan Brown (2010), do crítico Antonio Luiz, que se iniciava já com a devastadora frase: “Um dos piores livros que já me caíram nas mãos”. Fiquei então bastante curioso para saber até que ponto a tal crítica tinha razão de ser tão dura. E, após finalmente ler o livro, posso discorrer sobre ela.  


Sinopse

O Desejo de Lilith tem a forma de diário, onde é contado a investigação do detetive Rafael Monte Cerquillo sobre o suicídio do autor de uma novela, cujas páginas são publicadas em um jornal da cidade de Hortolândia (SP), que assina com o nome de Mr. Sheol. O nome do autor da novela leva o detetive a contactar especialistas na Bíblia para desvendar seu significado. E após seu encontro com um segundo especialista em São Paulo, este termina por se suicidar dias depois, aumentando ainda mais o mistério. Ao obter os papéis da pesquisa do especialista suicida, o detetive descobre um mistério bíblico que percorre toda a história da humanidade, afetando os mais importantes artistas da humanidade até os dias de hoje, e que o levará travar uma luta entre o bem e o mal.




“A Primeira Parte, na qual um Policial Investiga um Suicídio (…), Mostra Muita Falta de Verossimilhança e de Conhecimento dos Temas Relevantes para o Enredo” ~ Antonio Luiz


A trama do livro começa com o autor forçando a barra com a palavra hebraica “Sheol” por meio do nome do autor da misteriosa novela Death of the Soul, Mr. Sheol, palavra que causa espanto aos pesquisadores bíblicos consultados pelo investigador, como se a palavra hebraica “Sheol” --- também escrita na forma “Seol” --- trouxesse em si um grande segredo. Mas a palavra “Sheol”, que significa cova, sepultura, morte, é uma palavra comum na Bíblia, que jamais despertaria em um pesquisador bíblico qualquer espanto. Mas o autor de O Desejo de Lilith, sempre forçando a barra, dá a entender ao leitor que a palavra carrega um terrível mistério, fazendo com que os especialistas se assustem só de ouvi-la:


“Só quando Evandro pronunciou a palavra “Seol” ele passou a prestar atenção e como um relâmpago, Benedito deixou os livros e cadernos caírem no chão, arregalou os olhos e, branco como um cadáver, nos perguntou em voz baixa: ‘Vocês também sabem do seol? Vocês também sabem?”


Quando o ex policial passa a investigar o segundo suicídio, aí, como bem a pontou a resenha de Antonio Luiz, o autor erra em não pesquisar os “temas relevantes para o enredo” do livro. O autor afirma que policiais federais investigam o suicídio, o que é um erro, uma vez que a polícia federal só investiga crimes que lesam o país. Há também o erro da história se passar em 1977 na cidade de Hortolândia. Porém a cidade só seria fundada em 1991. Mas o que mais me incomodou foi a ideia de um ex policial viver como um sem teto na cidade de São Paulo, após ser desligado da polícia, sem dinheiro e sem ter adquirido benefício algum com sua profissão, apesar da história se passar em 1977, no auge da ditadura militar, quando policiais e ex policiais gozavam de privilégios. Há a cena em que, por falta de dinheiro, o ex policial é espancado por um taxista. Isso jamais aconteceria, principalmente naquela época, bastando apenas que ele mostrasse sua carteira. O que demonstra, lamentavelmente, que o autor não se dedicou à pesquisa sobre o momento histórico em que se passa sua história.


Sempre pesquise sobre os elementos de sua trama, principalmente sobre as circunstâncias em que acontecem sua história.


O autor também afirma fatos importantes para a trama do livro sem se preocupar em convencer o leitor com argumentos a favor, como na passagem em que, sem qualquer argumentação, afirma que a palavra “Sheol” foi a palavra escolhida pelos autores bíblicos para denominar o demônio Qayin:


“Estes formadores de opinião, possuidores de grande conhecimento, escreveram cartas registrando tais fatos através de metáforas, pois sabiam que escrevessem explicitamente sobre o poderoso demônio Qayin, o escrito poderia ser apagado no futuro. Então trocaram o nome Qayin pelo habraico She’óhl que, na tradução de João Ferreira de Almeida, passou para Seol e suas conotações.”


O autor não explica o porquê do nome Qayin poder ser apagado no futuro nos escritos bíblicos, já que há vários nomes de opositores de Deus nos textos bíblicos que não foram apagados. Mas o leitor tem que aceitar, e seguir adiante na leitura.


Jim Morrison

A mesma falta de argumentação acontece quando o autor cita famosos artistas que teriam sido possuídos ou influenciados pelo demônio Qayin, muitas vezes recorrendo a preconceitos, como neste caso a demonização da cultura indígena. Assim o autor afirma que Jim Morrison, da banda The Doors, teria sido possuído por Qayin, simplesmente porque Jim Morrison teria dito que o espírito de um velho pajé indígena teria possuído sua alma, quando o velho pajé faleceu à beira da estrada na hora que Jim passava de carro quando criança.


“Índio, Xamã ou Qayin? (...). Teria Morrison confundido a feição de Qayin com um índio?”


Quando é a vez da escritora inglesa Mary Shelley, o autor recorre a outro tipo de preconceito, ao machismo, quando dá a entender que o verdadeiro criador da obra mais famosa da escritora, Frankenstein, teria sido escrita pelo esposo, Percy Shelley sob a influência do demônio Qayin; preconceito típico da época de Mary Shelley, que afirmava que mulheres seriam incapazes criar boas obras; que obrigou as irmãs Brontë a mudarem seus nomes, para não serem desvalorizadas como autoras mulheres.


“A obra foi publicada em 1º de janeiro de 1818 (...) não trazia o nome do autor. O prefácio foi redigido pelo próprio Percy Bysshe Shelley. Não seria Percy Bysshe Shelley o verdadeiro pai da criatura?”


Quanto ao marido Percy Shelley, o autor encontra no ateísmo deste a razão para que tenha sido influenciado pelo demônio Qayin; mais uma vez recorre ao preconceito, desta vez ao preconceito contra os ateus. 

   

“A Segunda Parte, na qual Ele [o Protagonista] se Transforma em Imortal (…), é Absolutamente Ridícula e Pedestre” ~ Antonio Luiz


Sim, quando o detetive Rafael Monte Cerquilho, protagonista da trama, torna-se um imortal após receber o toque de Qayin --- sim, é o Caim bíblico, o primeiro assassino da história, que matou o irmão Abel ---, que no livro é interpretado como um poderosíssimo demônio, filho dos demônios Lilith e Samael. Aqui, o livro assume a forma de uma redação de um aluno da quinta série, que gosta de bandas de rock, carros e motos possantes e adora fazer compras:


“É incrível, mesmo sendo imortal, tenho prazer em fazer compras” (pág. 105).


O livro incorpora um tom cômico involuntário. É quando o protagonista passa a curtir sua nova condição, amparado por uma organização milenar, os Black Angels, composta por anjos caídos, com visual de roqueiro, pilotando seus Lincoln Mark v ou belas motos Harley-Davidson, que protegem os humanos dos demônios comandados por Qayin; a organização lhe fornece uma pensão volumosa, com direito a um magnífico carro e a tanque cheio, sempre que quiser, e hospedagem em um luxuoso hotel:


“Estou hospedado em um hotel luxuoso, digno de reis, situado na região dos jardins, próximo  à Avenida Paulista… Yesalel me encaminhou ao setor financeiro da Black Angel… Na presença de outros dois anjos caídos, pediu que me auxiliassem… à abertura de uma conta corrente em um banco, pois me seria fornecido um salário mensal equivalente a 30 vezes o que recebia anteriormente, quando era um simples detetive de polícia. Preenchi outros papéis e, dos que me lembro, um era para a aquisição de um Lincoln Continental Mark v da cor vermelha, outro para encher o tanque quando bem entendesse e outro para o luxuoso hotel onde estou hospedado” .

   

Lincoln Continental Mark V


A instituição Black Angel possui vários setores, administrados por diferentes anjos caídos. Há até o setor que se dedica a cuidar do visual dos anjos caídos:


“Yeialel me encaminhou para o setor do anjo caído Mebahiah. Era um setor diferente dos outros que tinha visto dentro da organização, cheio de manequins, espelhos, revistas de moda, estilistas, manicures, cabeleireiros e roupas de todos os estilos e cores possíveis… Mebahiah bem que tentou cortar meus cabelos compridos, mas não deixei. Então, depois de muita insistência, deixei que fizesse relaxamento e depois escova, e até que ficou bom. Agora, as roupas que ele queria que eu usasse, simplesmente odiei. Odeio roupas coloridas e alegres, e preferi as cores de sempre: cinza, vermelha e preta”. 


Ah, não podemos esquecer que a organização dos anjos caídos, também tem um setor encarregado de dar cursos aos imortais:


“Fui levado ao setor do anjo Reyel, que me inscreveu em alguns cursos internos da organização, iniciando com aulas de inglês, português, literatura, etiqueta, culinária nacional e estrangeira, yoga e tai chi chuan.”


Como dito, o protagonista parece ter esquecido sua investigação, ficando deslumbrado com a nova vida de luxo, como se o próprio autor do livro procurasse por meio de seu personagem realizar seus sonhos de consumismo.


O poderosíssimo demônio Qayin, que a todo custo tenta destruir a humanidade, parece com aqueles demônios da Igreja Universal, que em vez de possuir a mente de grandes líderes políticos mundiais e iniciar uma guerra atômica, prefere apenas possuir a mente de pobres e desvalidos do poder. 


É hilário quando o poderoso e malévolo demônio Quayin, ao se encontrar com nosso protagonista, e ouvir dele um duro sermão, se revela um bebê chorão devido ao seu relacionamento tóxico com sua mãe Lilith:


“‘O que você sabe sobre Deus? Um demônio pode falar bem de Deus? Sabe algo sobre compaixão ou caridade? E quem disse que você é o primeiro homem nascido na terra? Para mim você não é um homem, é um monstro odioso que jamais será visto como nós, e não é filho de uma mulher, e sim de um tétrico demônio em forma de mulher.’ Pela primeira vez vi um demônio chorar. Ele tentou disfarçar de todas as maneiras, ora colocando as mãos sobre os olhos, ora virando o rosto para os lados ou disfarçando com um falso sorriso.”


Mas nada supera a cena em que nosso protagonista tenta resolver as coisas convidando o poderoso e malévolo demônio Quayin para tomar um café. E é hilário quando ficamos a saber que o todo-poderoso demônio Quayin não tem dinheiro pra pagar três cafezinhos:


“Você paga a conta? Pois esse pobre cavalo que estou possuindo não tem nem uma moeda.”


Ah, não se pode esquecer também quando um dos milenares anjos caídos vai ao show do Nirvana e cai no rock ao som de Smells Like Teen Spirit: 


“Delirei quando kurt iniciou a canção Smell Like Teen Spiri. A plateia, completamente extasiada, dava saltos, uns caíam sobre os outros e, por incrível que pareça, Ieialel, um anjo caído que conheceu nosso Criador e o Senhor das Trevas, fazia o mesmo e ainda me puxava para acompanhá-lo.” 


Kurt Cobain

Mas toda a empolgação acaba, quando o protagonista nota o olhar sinistro de Kurt Cobain, revelando estar possuído por Qayin. Estaria aí a explicação para seu suicídio tempos depois?


E o que dizer, da afirmação que toma ares de fofoca, quando o autor afirma o verdadeiro motivo da separação de Lilith e Samael:


“Samael, o mestre do inferno, segue suas próprias regras e jamais quebrou o acordo que selou com Deus, mas sua própria ex-amante e esposa o leva à loucura, semelhante a algumas mortais. Fontes disseram a Ieialel que Samael não mantém relações conjugais há quase dois milênios, depois que flagrou Lilith de conversas e carícias com um tal Bar Abbas”.


Novamente, vemos aqui certo tom de machismo, quando o autor afirma que mesmo o demônio Samael é um ser de palavra, que preza por seus acordos e relacionamentos, enquanto o demônio feminino Lilith, “semelhante a algumas mortais” é frívola, não respeitando seu relacionamento conjugal.


“Se Woody Allen tentasse criar uma sátira sobre um incompetente tentando imitar Dan Brown, faria com mais estilo, mas não seria mais hilário.” ~ Antonio Luiz.


Se O Desejo de Lilith tivesse sido escrito para ser uma versão cômica de O Código da Vinci (2003), teria alcançado seu objetivo, porém não foi essa a intenção do autor, que aproveitou o estrondoso sucesso do romance de Dan Brown, com sua temática envolvendo segredos bíblicos milenares e sociedades secretas, para embarcar na mesma onda. Mas ele embarcou em uma barca furada, cheia de argumentos rasos e banais que transformaram seu livro em uma história cômica involuntária, e naufragou com ela.

terça-feira, 5 de novembro de 2024

O REAL E O MARAVILHOSO DA AMAZÔNIA NO ROMANCE “APÓS A CHUVA DA TARDE”





O REAL E O MARAVILHOSO DA AMAZÔNIA NO ROMANCE “APÓS A CHUVA DA TARDE”


O romance Após a Chuva da Tarde - A Lenda de Camille Monfort, A Vampira da Amazônia, do paraense Bosco Chancen, conseguiu um feito extraordinário: fez viralizar mundialmente uma de suas personagens, a misteriosa cantora francesa Camille Monfort. Também teve a ousadia de adaptar a estética gótica, associada ao clima europeu, com suas névoas, frio e casas soturnas, ao impiedoso sol amazônico, aos palacetes e à chuva da tarde de Belém do Pará.


A Tradicional Chuva da Tarde de Belém do Pará

Embora o livro tenha seu foco principal na história da vinda da lendária cantora lírica Camille Monfort à conservadora Belém, de fins do século XIX, para concertos, e o alvoroço que causou na sociedade com sua beleza e seus famosos banhos de chuva, seminua, pelas ruas da cidade, gerando lendas e boatos, o romance também possui outros personagens tão misteriosos e fantásticos quanto, mostrando que a cidade de Belém é a terra das lendas, onde o real e o mágico se misturam de forma indistinguível, com a população convivendo com entidades lendárias e fantásticas, tal qual Josephina Conte, a Moça do Táxi, que mesmo após a morte, no dia de seu aniversário, costuma passear de táxi pelas ruas de Belém, a comentar as mudanças da cidade; hábito adquirido quando viva. 


Palacete Bolonha

Há também o fantasmagórico cão negro que, à noite, toma forma e vigia o belo Palacete Bolonha --- um dos cenários do romance ---; palacete que parece possuir vida própria e comandar a vida de seus moradores; há a misteriosa Maria da Glória, conhecida pela população como a “Bela da Janela”; jovem presa a seu quarto desde que nascera, cujo pai a mantém trancada para que nunca se apaixonasse por alguém além daquele que ele escolhera para ser seu marido. A população crê que a moça aprendeu a desprender a alma do corpo para dar seus famosos passeios noturnos pela cidade. E há ainda todo um mundo mágico de seres encantados da pajelança, que se revela por meio de portais mágicos, abertos com o auxílio da ayahuasca, o “chá dos mortos”; e muito, muito, mais. 


Josephina Conte


É impressionante como o romance Após a Chuva da Tarde trata de inúmeros assuntos importantes sobre a Amazônia sem perder o foco no mistério. Há o aspecto das lendas: de como surge uma lenda e sua relação com a realidade, sendo tratado por meio do encontro entre a lenda europeia dos vampiros com lendas urbanas da cidade de Belém e amazônicas, trazendo um novo sopro de vida às histórias tão batidas de vampiros. Há a camada histórica, cultural e social das cidades da Amazônia e de seus povos, que trata questões raciais e da exploração de humanos e da natureza, chamando atenção para a história das “polacas”, jovens da Europa que eram enganadas e forçadas a se prostituir na Amazônia. Em suma, o romance aborda uma região bastante falada hoje em dia, devido aos problemas trazidos com a destruição das florestas, mas pouca conhecida. 




O romance Após a Chuva da Tarde também trata de como mulheres com talentos artísticos e comportamentos não exigidos para  a época, eram tratadas pela conservadora sociedade de fins do século XIX, que ora as demonizavam ou as viam como objetos sexuais ou as tratavam como perigosos elementos à manutenção da ordem moral da sociedade.  


Naquela época, mulheres tinham seus talentos desestimulados por suas famílias, e educadas apenas para serem boas esposas e viverem sempre à sombra de seus maridos. E quando uma menina nascia com talentos musicais excepcionais, ao contrários dos meninos, que eram exibidos como prodígios musicais, mulheres tinham seus talentos associados ao diabo, e, não raramente, eram levadas por suas famílias ao padre da cidade para serem benzidas e seus talentos desestimulados por rígidas normas impostas à elas para que desistissem de seus talentos e se concentrassem apenas em ser boa esposa. 

 



Daí o choque que a talentosa e enigmática cantora lírica Camille Monfort causou na conservadora sociedade da Belém de fins de século XIX, com seu espírito livre, que ousava quebrar as barreiras sociais de sua época, com seu simples desejo de se refrescar nas vias públicas durante as chuvas da tarde de Belém do Pará e compartilhar sua arte com as camadas mais pobres da população, causando o pavor nos mais ricos de terem de dividir os espaços culturais com filhos de suas empregadas domésticas, o que, junto com sua beleza e dons musicais, foram suficientes para demonizá-la criando-se boatos, lendas e diferentes visões sobre quem era aquela bela cantora. Para os mais esclarecidos, Camille Monfort fora uma mulher à frente de seu tempo; para os mais europeizados, fora uma vampira que, por meio de sua beleza e seu canto, possuía o poder de cativar a alma de seus ouvintes, tornando-os escravos de sua vontade e alimentando-se deles; já para a população local, que a via em seus misteriosos passeios noturnos a beira do rio Guajará, criou-se a crença de que ela tinha o poder de se transformar em um animal noturno, perdendo-se na noite, ao que logo a associaram ao que conheciam de mais próximo, concebendo-a como uma entidade folclórica local, uma matinta perera, uma criatura com o poder de se transformar em animais noturnos e prisioneira de uma maldição familiar.


Após a Chuva da Tarde - A Lenda de Camille Monfort é um romance imperdível, um modo mágico e divertido de conhecer a Amazônia --- região tão falada mas pouco conhecida.




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