quinta-feira, 31 de maio de 2012

A DAMA DO TÚMULO


A LENDA DA MULHER DO TÁXI
Dedicado à Memória de Josefina Conty, a Mulher do Táxi. Que sua alma descanse em paz...
Em vida, durante seu aniversário, seu pai lhe dava como presente uma corrida de táxi pela cidade de Belém, por seus pontos turísticos. Tal costume, como testemunha a lenda popular, perdurou mesmo após a vida, pois toda a noite de seu aniversário ela costuma ainda, à meia-noite, pegar táxi e vagar pelas ruas de Belém.
 Conta a lenda que tudo começou numa noite de seu aniversário, em que um taxista avistou uma moça bela, morena, vestida de branco, enfrente ao cemitério. Parou o carro e permitiu que a passageira embarcasse. Após rodar pelas ruas da cidade a moça pediu para que a deixasse em sua casa, na avenida Gentil Bitencourt. Ao descer do carro, a moça gentilmente pediu ao motorista se este não podia vir em outro dia, em sua casa, em busca de seu pagamento. Este concordou e, ela ao entrar na casa, o motorista partiu. No outro dia o motorista foi à casa; ao chegar lá, uma velha senhora lhe atendeu; ele lhe disse que estava ali para receber por uma corrida que uma moça tinha lhe pedido para buscar outro dia. A senhora lhe respondeu que a única mulher que morava na casa era ela, à anos. Disse ele que não podia ser, pois tinha visto a mulher entrar na casa. Após tentar várias vezes convencer a senhora, eis que o vento abre a porta de um cômodo que dava para a sala, expondo um retrato na parede. O motorista imediatamente observou: veja, foi aquela moça. A senhora imediatamente lhe respondeu: mas esta é minha filha já morta alguns anos...
O CONTO: A DAMA DO TÚMULO
 Este conto é dedicado a todos os fantasmas; a essas
criaturas tristes e solitárias, que alegram minhas madrugadas.
  - TUDO COMEÇOU NAQUELE DIA, QUANDO CHEGUEI ATRASADO AO ENTERRO...
O enterro estava marcado para às quatro horas da tarde; porém, cheguei às seis da tarde ao cemitério. Não havia mais quase ninguém naquela velha cidade da morte. Aproveitei então para dar um pequeno passeio pelas redondezas, por aquelas últimas moradas. E após andar por alguns minutos, por entre aquele imenso labirinto da morte, encostei-me, casualmente, em um velho túmulo para fumar um cigarro. E enquanto fumava, pus-me a examinar o local. Olhei então para o túmulo que estava em minha frente. Vi sobre a lápide uma foto de mulher, de uma bela mulher que aparentava estar na flor da idade, vestida em seu belo vestido. Vestido que deve ter lhe acompanhado em alguns momentos mais felizes de sua vida, mas que agora jazia sob o frio daquela pequena construção de mármore.
O túmulo aparentava ter sido abandonado por seus familiares, há algum tempo. E, em alguns lugares, o mato crescia, como o terrível símbolo do esquecimento que inevitavelmente causa a morte. Olhei ao redor, todos os túmulos ostentavam flores, menos o dela. E, ao olhar, vi uma pequena árvore, que embora pequena, transbordava de flores. Apanhei algumas e pus sobre seu túmulo, dizendo: “Que a uma dama jamais se negue flores!”.
A tarde já se esvaia em um maravilhoso tom vermelho, como as últimas gotas de sangue de uma lenta, e pálida hemorragia, quando me despedi daquele túmulo, caminhando, cruzando o cemitério, em direção de sua saída. E por mais que andasse por aquelas avenidas lúgubres, não conseguia pôr-me em direção a saída. Olhava o céu agora já em um tom azul marinho, que aos poucos tornava-se escuro. As luzes do cemitério se acendiam, e mal clareavam o caminho. Foi quando me senti preso em um labirinto. Em um labirinto de pequenos cubículos, que eu sabia que não estavam vazios. A sensação de não estar sozinho evadia minha alma, que ao cruzar pela terceira vez a mesma avenida, me desesperava... Olhei e senti algo familiar naquela avenida; era a avenida que abrigava aquele velho túmulo. Dirigi-me então para o mesmo. Observei que as flores já não estavam mais sobre ele. E que havia naquele rosto, da foto, detalhes que não havia antes visto, como um leve sorriso, que agora despontava daquele belo rosto. Pude ler então seu nome: Josefina. Imediatamente, pus novamente as flores no lugar e segui o meu caminho...
O cemitério estava agora totalmente vazio; nem uma voz se ouvia, somente o vento por entre aquelas construções sem vida. E ao cruzar pela quarta vez por aquela, agora, familiar avenida, percebi que estava andando em círculos. Decidi então cruzar pelo velho túmulo e seguir em linha reta, adiante, sempre adiante, tentando lembrar o caminho seguido antes. E ao passar novamente pelo túmulo, reparei que as flores não estavam novamente lá. Pensei no vento, e na possibilidade deste as ter derrubado; e pus novamente elas no lugar. Foi quando, curiosamente, olhei novamente para a foto. Além do leve sorriso, pude ver agora um suave olhar para mim. As luzes pareciam terem feito seu semblante mudar, acrescentavam agora um delicado piscar. E, de repente, pude ouvir, então, uma ofegante respiração, por entre os túmulos, aumentando... aumentando... aumentando... Até que, uma mão pôs-se sobre meu ombro. Um imenso arrepio percorreu por todo o meu corpo; virei-me então para olhar... Era um velho coveiro, que dizia-me:
- O Senhor está perdido? Estamos na hora de fechar.
- Sim, sim. Vejo que perdi a hora – disse eu a este secretário dos mortos.
- Então, favor, siga-me.
E assim, segui-lo. E pude, finalmente, encontrar a saída, tão almejada.
*  *  *
À noite, mal pude dormir, pensava no meu amigo, na sua morte, na falta que me faria, e em não ter podido, dele, me despedir. E, nas poucas vezes que conseguia dormir, sonhos evadiam minha mente. O mesmo sonho recorrente. Sonhava com a mulher do túmulo, vestida em seu belo vestido branco, rodopiando em um grande salão antigo, com grandes janelas e cortinas de veludo vermelho e, no teto, um grande lustre cor de prata, clareava o ambiente, que explodia em alegria. Ela dançava com alguém, em meio à dezenas de casais que dançavam com leveza e graça. E ao rodopiar ao lado de um imenso espelho, pude ver que o cavalheiro, com quem ela dançava, era eu, vestido em trajes antigos, também. Espantado, soltava suas mãos e tentava fugir do salão. Porém, os casais, rodopiando ao redor do mesmo, não me deixavam sair. Ela olhava-me, chamando-me com suas mãos estendidas. Os casais ao redor, ao passarem ao meu lado, diziam-me: “Vamos Bosco, dance com Josefina Conty”.
Naquela noite acordei assustado; minha alma transbordava o negrume da morte, pois algumas pessoas que tinha visto no sonho já tinham a muito morrido; eram parentes e amigos. Lembrei-me de ter visto também entre eles Raimundo, o amigo recentemente falecido.
Passei todo o dia pensativo. Liguei para a mãe de Raimundo, e me desculpei por não ter chegado a tempo ao seu enterro. Pedi seu último endereço e prometi visitá-lo, imediatamente.
À tarde, como prometido, voltei novamente ao cemitério, desta vez para visitar o túmulo de meu amigo. Levava comigo algumas garrafas de vinho, flores e o mapa do cemitério, que peguei com a portaria. Desta vez não me perderia...
Após visitar o túmulo do amigo, e depositar em seu túmulo flores e uma garrafa de vinho, em nome das noites de boêmia, fui compelido, por uma curiosidade mórbida, ao visitar o túmulo da bela dama morta.
Ao chegar, surpreendeu-me verificar que as flores não estavam murchas, mas organizadas e umedecidas em um vazo sobre seu túmulo. Lembrei-me então do sonho; e curioso verifiquei seu nome. Percebi então que seu nome se deteriorara, permanecendo apenas o nome Josefina. Depositei novas flores; observei sua foto por alguns minutos, e, em seguida, voltei para casa.
*  *  *
À noite, novos sonhos me assombraram. Sonhava novamente com a dama morta. Esta vinha à minha cama agradecer-me pelas rosas depositadas. Chamava-me por meu nome: “Bosco... Bosco... Bosco... obrigado pelas flores... Venha querido... Venha comigo”. Levantei-me da cama, e, de mãos dadas, pus-me a caminhar ao seu lado. Ela, levou-me para um outro quarto, de mobílias antigas e cama de colunas de carvalho. Um quarto que não pertencia a minha casa. Beijava-me a boca, e lentamente tirava o seu belo vestido; surpreendendo-me com um lindo corpo lívido, que me extasiava, absorvido em um misto de delírio e prazeres contínuos.
Na manhã seguinte, acordei-me nu e fraco, totalmente exaurido. Manchas de suor cobriam ainda o leito, tantas vezes nele dormido. Lembrei-me dos sonhos eróticos de minha infância. Porém, neste havia um sabor que nenhum outro tinha: um misto de prazer e terror, que eu jamais tinha visto.
O dia transcorreu sob uma angústia inquietante. Vozes e pensamentos me torturavam. Um sentimento estranho de saudade me abalava. Tornava-me um ser com indisposições estranhas e inexplicáveis.
Na noite seguinte, após logo deitar-me e fechar os olhos, senti a sensação de parte do colchão afundar, pouco a pouco, como se alguém cuidadosamente se deitasse ao meu lado, não querendo me acordar. E ao sentir isso, virei a cabeça para verificar, e ao olhar, verifiquei que não havia ninguém ao lado! Nesse momento, o medo e o espanto apoderam-se de mim, e me perseguiram durante outras noites. O medo que da próxima vez se repetisse e que a visão fosse terrível...
*  *  *
Seu túmulo não saia de minha mente. Todos os dias, algo me compelia a visitá-lo. Uma obsessão tomou conta de mim: um misto de prazer e agonia em observá-lo.
Sonhos evadiam minha mente. Sonhava com ela, todas as noites. Sonhos lúbricos, e lascivos, parecia nutrirem-se de mim. E quanto mais fraco eu tornava, mais forte os sonhos ficavam; ao ponto de não mais saber se eram sonhos ou realidade.
 Os floristas já me conheciam. Olhavam-me como alguém que teria perdido um ente querido; do qual, da saudade, não conseguia se desvencilhar.
*  *  *
Os dias transcorriam em estranha normalidade. Porém, numa noite, enquanto estava no banho, ouvi pequenos sons de pisadas pela casa. Pareciam com sons de passos femininos, que pisavam com suavidade. Imediatamente sai do banho, para verificar de onde vinham. Nada vi, exceto um vulto branco que cruzou-me próximo ao quarto. Estranhamente minhas roupas não estavam onde eu as tinha deixado. Procurei, por elas, por todos os lados. Por fim, encontrei-as no cabide, bem no escuro do quarto. Então, ao apanhá-las, um imenso calafrio invadiu minha alma, e tombei ao chão desmaiado... Ao acordar, tudo estava escuro. Porém, ao acender a luz, meu amigo, lá estava ela, ao olhar-me com aqueles belos olhos! Sim, era ela Josefina, que me espreitava. O susto, em seguida, deu lugar a volúpia, como os de corpos que se tocam, com cumplicidade. Tudo parecia real, seu corpo, seu toque, seu hálito. Porém, ao abraçá-la, um estranho frio de seu corpo emanava...
Ao acordar, tudo parecia ter sido apenas sonho, mas algo havia naquilo que me fazia discordar. A dúvida evadia minha alma: teria tudo sido apenas sonho? Estava eu vivendo uma alucinação, daquelas que atormentavam tanto a alma? Foi quando a resposta me veio à tona...
Ao visitar mais uma vez o cemitério, procurei as origens daquele túmulo que tanto me fazia pensar. E ao pegar um velho livro de registro, pude, finalmente, comprovar, que ali jazia Josefina Conty, morta em 1931, em plena flor da idade, em seus belos vinte anos. A verdade tinha vindo à tona, do modo mais pungente. Sim, seu nome correspondia ao sonho que eu tivera anteriormente, aquele que sonhara com um grande salão de baile.
Cheguei em casa, nesse dia, embriagado. Ao abrir a porta de casa, senti um suave perfume de flores. Perfume que exalava por toda a casa. Fui para o banheiro, lavar o rosto. Olhei-me no espelho enquanto me banhava. Vi um pequeno pente ao meu lado, sobre a pia. E ao olhar para o meu reflexo no espelho, vi o pente, por trás de mim, levantar-se, à minha altura; olhei para trás... Você não vai acreditar!, lá estava ela, novamente, desta vez em carne e osso, se penteando, com aqueles belos olhos verdes à espreitar-me. Olhei para o espelho, novamente, não via nada. Ela agarrou-me, beijou-me a boca; senti como se a vida se esvaí-se de mim, pouco a pouco. Ah!, aquela boca me tragava a vida...
- É! É uma história e tanto! – disse-me o amigo esboçando dúvida, mas acima de tudo curiosidade. E continuou a interrogar-me:
– E como se desenrolou essa história?
- Ah! Ela levou-me para o quarto. E quanto mais me beijava, com seu belo corpo nu, mas sentia-me fraco... fraco... fraco... E após esse dia, todas as vezes que voltava para casa, lá estava ela à esperar-me, com seu belo corpo, que a cada dia mais me extasiava, num contínuo mundo de prazeres sem fim. E à olhos vistos, meu amigo, cada vez mais me degradava... Ela tornou-se, para mim, como um vício, que embora tornava a vida prazerosa, viver em sua companhia, cada vez mais algo de mim tirava...
Porém, uma noite, ao chegar em casa, feliz em poder desfrutar mais uma vez de sua companhia, notei que ela não estava. Chamei-a, e, por mais que a chama-se, ela não vinha. Fui então para o cemitério, em plena madrugada, dormi sobre sua lápide fria, fria como seu belo corpo. Acordei-me com ela me olhando. Acariciou-me os cabelos, e disse-me, que se continuasse me mataria. Ah, meu amigo, cai em pranto, e de joelhos, e lhe supliquei que continuasse. Que nada me importava, nem mesmo a vida, sem sua companhia...
- Bem, parece-me ser a primeira vez que ouço uma história de fantasma que parece ser agradável. Era ela, então, um belo fantasma?
- Sim, sim, do tipo de mulher que qualquer homem desejaria. Era maravilhoso viver em sua companhia. Todo dia não via a hora de chegar em casa. Porém, nem tudo é perfeito!, meu amigo.
- Por quê?
- Porque descobri que Josefina me sugava a vida, como um vampiro.
- Como um vampiro?
- Sim, sim. E o que mais me entristece é que a cada dia menos vida eu tenho para lhe dar...

quinta-feira, 17 de maio de 2012

A BENDITA CACHAÇA DO PADRE FERDINANDO (de Bosco Silva)



Conheci o padre Ferdinando em um boteco. Isso mesmo, não em uma igreja, ou em uma catedral, ou mesmo em um encontro de jovens da paróquia em um dia de domingo, mas em um boteco, o boteco “Fé em Deus”. O lugar era um lugar como tantos outros, digo quanto a sua estrutura, pois aquele era um boteco diferente, possuía um padre como freguês.
Era um tipo incomum, um homem verdadeiramente pitoresco, um verdadeiro sábio, que conhecia a bíblia de cor. Citava cada passagem com enorme erudição e firmeza; e tinha um costume inusitado, pelo menos para um padre, um servo do bom Deus, de beber cachaça aos domingos após a missa. Sentava-se em um pequeno tamborete alto, ajeitava o saiote da batina e ficava lá acariciando sua proeminente barriga de frente para a rua, bem perto à porta da pequena venda. Quando lhe perguntavam por que cachaça e não vinho, padre Ferdinando lhes dizia que se vinho representava o sangue de Cristo, a cachaça, para ele, representava as lágrimas de Cristo. E antes de tomar seu primeiro gole benzia o copo, e, em seguida, tomava o líquido de uma lapada só. Quando alguém o olhava com olhar recriminatório ficava a explicar para os que estavam ao seu redor que beber não é pecado. Dizia também não entender os evangélicos, estes irmãos em Cristo, que proibiam tal ato; dizia que ao proibirem tal ato recriminavam o próprio Cristo, pois se tal fato fosse pecado, Cristo, nosso salvador, não teria, em uma festa de casamento, transformado água em vinho, e em um bom vinho, fazia questão de frisar o sábio homem, dando ênfase a sua frase apontando o dedo indicador da sua mão direita para cima. “E apenas”, continuava ele, “um grande conhecedor da matéria poderia criar um vinho tão bom como aquele”. Quando alguém o questionou de como poderia saber disso, sem ter provado o tal vinho. Padre Ferdinando disse: “E alguma vez, meu bom homem, Deus fez algo imperfeito? Pois este vinho teria que ser o melhor!”. Chegou mesmo, certamente, já tomado pelo efeito do límpido líquido, a argumentar que Cristo era um bom bebedor de vinhos, pois não foi à toa que escolheu tal bebida para representar seu sofrimento, já que sabia que ela, assim como Ele, não apenas foi sofrimento sob os pés de quem o pisou e lhe esmagou, afim de obter o precioso líquido, como também, ressuscitado em outra forma,  é festejo e alegria.
E lá pelas tantas, chegou a afirmar em tom de pilhéria, claro, que o cristianismo nascera mesmo no seio de grandes beberrões de vinho, e que estes foram seus primeiros seguidores, pois não seriam estes, verdadeiramente, perguntava o bom padre dando boas risadas, os primeiros a seguirem alguém que tivesse o maravilhoso dom de transformar água em vinho? Como prova citava que, como uma exigência feita por estes, o milagre do vinho foi o primeiro milagre feito por Cristo. E ninguém se atrevia a discordar dele, pois lá estava um homem que sabia muito bem do que dizia.
Ah, como era instrutivo e ao mesmo tempo delicioso ver aquele velho homem despojado, por alguns minutos, de toda sua autoridade a se entregar a tecer comentários sobre os mais intricados e variados assuntos da igreja.
A bendita cachaça do padre Ferdinando parecia cada vez mais levá-lo a questionar a si próprio, a suas crenças. Poder-se-ia mesmo dizer que ele possuía dois públicos, um composto pelas senhoras e senhores que frequentavam suas missas pela manhã e o pequeno público do boteco que atentamente ouvia seus comentários.
E após alguns goles a mais daquele bendito líquido, o padre Ferdinando, como um bom servo de Deus, usufruindo deste maravilhoso dom que Deus deu ao homem, a liberdade, botava-se a questionar cada vez mais suas crenças. Era um espetáculo que todos os homens deveriam ver. Ferdinando questionava que um homem branco, loiro, de olhos azuis, pudesse ter nascido em um povo tão moreno quanto os judeus daquele tempo. Ele argumentava que aquela não poderia ser a verdadeira imagem de Cristo; dizia ser um artifício do homem europeu através da imagem loira de Cristo, de impor uma falsa pureza e superioridade dos brancos europeus a outros povos morenos e negros.  Ferdinando chegava mesmo a argumentar, já um tanto tomado pelo doce efeito da bebida, em um tom irônico, se não seria a imagem daquele homem loiro e bonito um motivo a mais de atrair mulheres para a igreja, como hoje já se sucede com os padres cantores. “Chego mesmo, que Deus me perdoe”, dizia o padre, unindo as mãos para cima, e beijando o crucifixo, trocando, em seguida, sua seriedade por novamente gargalhadas, “a pensar, por um momento, ser um culto de maricas, quando vejo aqueles pais de famílias, sérios, com seus bigodões, beijando a imagem daquele belo homem de cabelos loiros”.   
Ah!, nosso bom padre, segurando a barriga, ria bastante com seu próprio pensamento, e dizia, em seguida: “que povo tolo!”.
Quando via os devotos vindos da igreja, padre Ferdinando comentava: “todos querem ir pro céu, mas o engraçado é que ninguém quer morrer. Fogem da morte como o Diabo da cruz!”, dizia dando risadas.
E aos devotos, padre Ferdinando comentava: “Veja dona Clotilde, coitada, nunca vi mulher tão carola, vive sempre ao redor de minha batina ou rezando a Cristo ou dando esmolas aos pobres, pedindo por sua salvação. Bajula a todos: Cristo, eu e os santos. Será que Deus precisa de tantos bajuladores como estes para fazer o bem? Chego a pensar serem os ateus os únicos que merecem a salvação, pois, se fazem o bem, fazem espontaneamente, sem visarem sua salvação”.
* * *
Aos poucos, padre Ferdinando ia se ajeitando sobre o balcão atrás da porta e, calmamente, dormia com os braços e a cabeça sobre o mesmo. E durante seu sono podia-se ouvi-lo pronunciar um nome bem baixinho, era um nome de mulher: “Catarina... Catarina...”. Seria o doce nome de sua mãe ou o nome de uma doce mulher que este amou um dia?
Ah, durma meu bom velho, durma e sonhe com os belos momentos de sua vida, com um beijo amoroso dado na mulher amada, ou com os momentos mais sublimes de sua juventude.
Continuava a dormir o bom padre embriagado pelos verdadeiros valores da vida.


segunda-feira, 7 de maio de 2012

A FILOSOFIA DO ORGASMO - Parte #1



RESUMO: O presente trabalho tem como finalidade demonstrar as terríveis consequências religiosas, morais, psicológicas e, principalmente, sexuais da mudança de mentalidade de um mundo calcado na ideia de IMANÊNCIA, para a mentalidade de um mundo moderno, baseado na noção religiosa de TRANSCENDÊNCIA, por meio da sexualidade humana.
INTRODUÇÃO
Houve uma época em que o homem era tido como uma parte da natureza, mantendo uma profunda e insolúvel harmonia com esta, fazendo tanto parte desta quanto os leões, os carvalhos, ou mesmo os minerais. Era uma época que ainda não se tinha inventado o pecado, e que o sexo não era visto como algo pecaminoso, mas divino, um dom da natureza ou um caminho que levava aos deuses: um meio de conhecimento e iluminação pessoal, capaz de mostrar ao homem uma parte então desconhecida de si próprio: sua identidade profunda com a natureza, com suas forças fundamentais. Foi a época das grandes religiões panteístas que concebiam Deus, não como um ser agindo fora do mundo, mas de dentro do mesmo, um ser imanente ao mundo, à natureza. Foi também a época dos grandes cultos a Afrodite, com suas sacerdotisas que em seus templos copulavam com os devotos da grande deusa; das bacantes, que por meio do vinho, e em nome do deus Baco, embriagavam os homens e os levavam a serem absorvidos por seus instintos sexuais, copulando com estes durante o culto de seu deus nos campos, bosques e prados; e do deus Príapo com seu grande falo, o deus da fertilidade, responsável pela fertilização dos animais e vegetais. Enfim, era uma época em que o sexo era tão sagrado quanto as religiões, e em que o sagrado feminino dominava o mundo e onde não se rejeitava nossa animalidade, nem nossos instintos.
Mas hoje tudo isso parece ser apenas uma velha história perdida em algum livro amarelado pelo tempo. Pois o homem passou a se sentir um ser superior e independente da natureza; um ser feito, erroneamente, à imagem de um deus, que assim como este, transcenderia a natureza, e a qual esta existiria apenas para lhe servir.
E assim, logo nos vimos divididos entre dois mundos, um natural e material, governado pelas leis naturais do corpo, e o outro, sobrenatural, comandado por leis superiores, imateriais, que não pertenceriam ao nosso mundo, nos levando a renegar nossa origem animal, como algo inferior e impróprio do homem, um arcabouço de sentimentos bestiais e bárbaros - mas devemos lembrar que os mais baixos sentimentos humanos não pertencem aos animais. Disso surgiram a moral e as proibições religiosas ao sexo, e a ideia de que devemos privilegiar nosso lado transcendente, tido como superior, em detrimento de nosso lado animal. Não admira, portanto, que o sexo como aquilo que mais uniria os homens aos outros animais tenha sofrido tanto com esta forma de pensar, transformando-se em algo indigno do homem. E assim criaram novas formas de conduta, passaram a nos ensinar a termos vergonha de nossos corpos, a odiarmos o que nós próprios somos, a termos vergonha de nossa própria natureza. Nossa moral e religião passaram a nos ensinar a associar rigor sexual à dignidade e liberdade, a não acatarmos os desejos do corpo, a mortificá-lo para não sermos escravos do mesmo, de seus apetites e desejos; o homem soberano, para esta forma de pensar, passou a não se deixar levar por seus impulsos e instintos.
Porém tal mudança não deixou de ter consequências terríveis para a humanidade, já que por trás de tal concepção se escondia uma luta ferrenha e doentia entre cada indivíduo consigo próprio: uma luta entre os impulsos mais naturais do homem e o desejo inútil de abafá-los, de calá-los; gerando assim sentimentos de culpa desnecessários ou, no mais das vezes, gerando o efeito contrário, já que tudo que é proibido tende a ser muito mais procurado, estimulando, assim, o que justamente tentam limitar. E sendo a transgressão e o sadismo elementos inerentes à sexualidade humana, o proibido tende não apenas a estimulá-los como distorcer o sexo, gerando por meio do sadismo e da transgressão comportamentos sexuais destrutíveis - como os modernos adeptos do bareback, que buscam, movidos pelo prazer da transgressão, serem contaminados pelo vírus da AIDS, em suas relações desprotegidas. Originando também as mais terríveis perseguições religiosas ao sexo e tornando as mulheres suas principais vítimas, como na Inquisição católica, em que mulheres que demonstrassem seus desejos e sua independência em relação a estes eram tidas como possuídas por um espírito demoníaco e como tal eram mortas.
E assim, a mesma mulher que provocou a expulsão do homem do paraíso ainda era uma ameaça presente, com sua natureza diferente, com seu sexo que atraia a natureza reprimida dos homens “santos”. Transformando a Inquisição na conclusão perfeita da longa história de preconceitos, de repressão, de intolerância, a mulher e ao sexo.
Por meio disso, dá para imaginar o grande choque que acometeu os portugueses ao descobrirem que em novas terras havia pessoas que viviam de outra forma: nus, e que não viam no sexo um sinal de pecado.
Todavia, para tais colonizadores, educados sob a visão de que a nudez devia ser ocultada pelo pecado, a culpa fazia parte de seu imaginário, sendo o corpo considerado como templo do diabo; e uma vez que as índias nuas eram objeto de extrema beleza e sedução para os brancos colonizadores. Havia apenas uma solução: vesti-las e impô-las sua falsa moralidade, calcada no terrível e degradante sentimento de culpa.
Porém onde há culpa, há também castigo e logo tal moralidade foi lhes imposta com total severidade.
Não admira, por isso, que as igrejas estejam abarrotadas de pessoas obcecadas com os sentimentos de culpa e de pecado, já que aprendem desde que nascem a identificarem em todas as coisas naturais expressões de pensamentos pecaminosos.
O afastamento do homem da natureza trouxe-lhe também doses desnecessárias de sofrimento psicológico, já que sendo o homem uma parte da natureza - e como a parte só tem sentido quando vista em seu todo - o afastamento do homem da natureza, não o deixaria se ver como parte de um grande todo, de um grande “plano”, gerando-lhe sensação de abandono e incompletude. Não admira, por isso, que após afastarem o homem da natureza, muitos religiosos digam que lhes falta algo, como um deus ou algo parecido.
Todavia, por meio da FILOSOFIA DO ORGASMO demonstraremos, nos próximos artigos, que, ao contrário do que nos é imposto, o homem verdadeiramente livre é aquele que segue a natureza, que não luta consigo próprio, contra sua própria natureza; não é alguém dividido entre o que se é e o desejo de negar a si próprio; enfim, ser livre jamais implica em renúncias, mas ao contrário, o verdadeiro escravo é aquele que ao reprimir seus impulsos naturais torna-se carrasco de si mesmo. Em suma, o presente trabalho, tenta, como no passado, harmonizar o homem à natureza por meio de sua sexualidade, tida como um meio de autoconhecimento, e ao harmonizar o homem com a natureza, harmonizará também consigo próprio, com que verdadeiramente somos. Demonstrando, enfim, que um maior grau de harmonia entre o homem e sua própria natureza é proporcional também a um maior grau de felicidade.