Conheci o padre Ferdinando em um boteco. Isso
mesmo, não em uma igreja, ou em uma catedral, ou mesmo em um encontro de jovens
da paróquia em um dia de domingo, mas em um boteco, o boteco “Fé em Deus”. O lugar
era um lugar como tantos outros, digo quanto a sua estrutura, pois aquele era
um boteco diferente, possuía um padre como freguês.
Era um tipo incomum, um homem
verdadeiramente pitoresco, um verdadeiro sábio, que conhecia a bíblia de cor. Citava
cada passagem com enorme erudição e firmeza; e tinha um costume inusitado, pelo
menos para um padre, um servo do bom Deus, de beber cachaça aos domingos após a
missa. Sentava-se em um pequeno tamborete alto, ajeitava o saiote da batina e
ficava lá acariciando sua proeminente barriga de frente para a rua, bem perto à
porta da pequena venda. Quando lhe perguntavam por que cachaça e não vinho, padre
Ferdinando lhes dizia que se vinho representava o sangue de Cristo, a cachaça,
para ele, representava as lágrimas de Cristo. E antes de tomar seu primeiro
gole benzia o copo, e, em seguida, tomava o líquido de uma lapada só. Quando
alguém o olhava com olhar recriminatório ficava a explicar para os que estavam
ao seu redor que beber não é pecado. Dizia também não entender os evangélicos,
estes irmãos em Cristo, que proibiam tal ato; dizia que ao proibirem tal ato
recriminavam o próprio Cristo, pois se tal fato fosse pecado, Cristo, nosso
salvador, não teria, em uma festa de casamento, transformado água em vinho, e em
um bom vinho, fazia questão de frisar o sábio homem, dando ênfase a sua frase
apontando o dedo indicador da sua mão direita para cima. “E apenas”, continuava
ele, “um grande conhecedor da matéria poderia criar um vinho tão bom como
aquele”. Quando alguém o questionou de como poderia saber disso, sem ter
provado o tal vinho. Padre Ferdinando disse: “E alguma vez, meu bom homem, Deus
fez algo imperfeito? Pois este vinho teria que ser o melhor!”. Chegou mesmo,
certamente, já tomado pelo efeito do límpido líquido, a argumentar que Cristo
era um bom bebedor de vinhos, pois não foi à toa que escolheu tal bebida para
representar seu sofrimento, já que sabia que ela, assim como Ele, não apenas foi
sofrimento sob os pés de quem o pisou e lhe esmagou, afim de obter o precioso
líquido, como também, ressuscitado em outra forma, é festejo e alegria.
E lá pelas tantas, chegou a afirmar em tom
de pilhéria, claro, que o cristianismo nascera mesmo no seio de grandes
beberrões de vinho, e que estes foram seus primeiros seguidores, pois não
seriam estes, verdadeiramente, perguntava o bom padre dando boas risadas, os
primeiros a seguirem alguém que tivesse o maravilhoso dom de transformar água
em vinho? Como prova citava que, como uma exigência feita por estes, o milagre
do vinho foi o primeiro milagre feito por Cristo. E ninguém se atrevia a
discordar dele, pois lá estava um homem que sabia muito bem do que dizia.
Ah, como era instrutivo e ao mesmo tempo
delicioso ver aquele velho homem despojado, por alguns minutos, de toda sua
autoridade a se entregar a tecer comentários sobre os mais intricados e
variados assuntos da igreja.
A bendita cachaça do padre Ferdinando parecia
cada vez mais levá-lo a questionar a si próprio, a suas crenças. Poder-se-ia
mesmo dizer que ele possuía dois públicos, um composto pelas senhoras e
senhores que frequentavam suas missas pela manhã e o pequeno público do boteco
que atentamente ouvia seus comentários.
E após alguns goles a mais daquele bendito
líquido, o padre Ferdinando, como um bom servo de Deus, usufruindo deste
maravilhoso dom que Deus deu ao homem, a liberdade, botava-se a questionar cada
vez mais suas crenças. Era um espetáculo que todos os homens deveriam ver.
Ferdinando questionava que um homem branco, loiro, de olhos azuis, pudesse ter
nascido em um povo tão moreno quanto os judeus daquele tempo. Ele argumentava
que aquela não poderia ser a verdadeira imagem de Cristo; dizia ser um
artifício do homem europeu através da imagem loira de Cristo, de impor uma
falsa pureza e superioridade dos brancos europeus a outros povos morenos e
negros. Ferdinando chegava mesmo a
argumentar, já um tanto tomado pelo doce efeito da bebida, em um tom irônico,
se não seria a imagem daquele homem loiro e bonito um motivo a mais de atrair
mulheres para a igreja, como hoje já se sucede com os padres cantores. “Chego
mesmo, que Deus me perdoe”, dizia o padre, unindo as mãos para cima, e beijando
o crucifixo, trocando, em seguida, sua seriedade por novamente gargalhadas, “a
pensar, por um momento, ser um culto de maricas, quando vejo aqueles pais de
famílias, sérios, com seus bigodões, beijando a imagem daquele belo homem de
cabelos loiros”.
Ah!, nosso bom padre, segurando a barriga, ria
bastante com seu próprio pensamento, e dizia, em seguida: “que povo tolo!”.
Quando via os devotos vindos da igreja, padre
Ferdinando comentava: “todos querem ir pro céu, mas o engraçado é que ninguém
quer morrer. Fogem da morte como o Diabo da cruz!”, dizia dando risadas.
E aos devotos, padre Ferdinando comentava: “Veja
dona Clotilde, coitada, nunca vi mulher tão carola, vive sempre ao redor de
minha batina ou rezando a Cristo ou dando esmolas aos pobres, pedindo por sua
salvação. Bajula a todos: Cristo, eu e os santos. Será que Deus precisa de
tantos bajuladores como estes para fazer o bem? Chego a pensar serem os ateus
os únicos que merecem a salvação, pois, se fazem o bem, fazem espontaneamente,
sem visarem sua salvação”.
* * *
Aos poucos, padre Ferdinando ia se ajeitando
sobre o balcão atrás da porta e, calmamente, dormia com os braços e a cabeça
sobre o mesmo. E durante seu sono podia-se ouvi-lo pronunciar um nome bem
baixinho, era um nome de mulher: “Catarina... Catarina...”. Seria o doce nome
de sua mãe ou o nome de uma doce mulher que este amou um dia?
Ah, durma meu bom velho, durma e sonhe com
os belos momentos de sua vida, com um beijo amoroso dado na mulher amada, ou
com os momentos mais sublimes de sua juventude.
Continuava a dormir o bom padre embriagado
pelos verdadeiros valores da vida.
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