quarta-feira, 27 de maio de 2015

UMA TARDE NO BOTECO DO ARAÚJO



Conheci o padre Ferdinando em um boteco. Isso mesmo, não em uma igreja, ou em uma catedral, ou mesmo em um encontro de jovens da paróquia em um dia de domingo, mas em um boteco, o boteco do Araújo. O lugar era um lugar como tantos outros, digo quanto a sua estrutura, pois aquele era um boteco diferente, pois além de se situar entre duas igrejas evangélicas, possuía um padre como freguês.
Era um tipo incomum, um homem verdadeiramente pitoresco, um verdadeiro sábio, que conhecia a bíblia de cor. Citava cada passagem com enorme erudição e firmeza; e tinha um costume inusitado, pelo menos para um padre, um servo do bom Deus, de beber cachaça aos domingos após a missa. Sentava-se em um pequeno tamborete alto, ajeitava o saiote da batina e ficava lá acariciando sua proeminente barriga de frente para a rua, bem perto à porta da pequena venda. Quando lhe perguntavam por que cachaça e não vinho, padre Ferdinando lhes dizia que se vinho simbolizava o sangue de Cristo, a cachaça, para ele, representava as lágrimas de Cristo. E antes de tomar seu primeiro gole benzia o copo, e, em seguida, tomava o líquido de uma lapada só. Quando alguém o olhava com olhar recriminatório ficava a explicar para os que estavam ao seu redor que beber não é pecado. Dizia também não entender os evangélicos, estes irmãos em Cristo, que proibiam tal ato; dizia que ao proibirem recriminavam o próprio Cristo, pois se beber fosse pecado, Cristo, nosso salvador, não teria, em uma festa de casamento, transformado água em vinho, e em um bom vinho, fazia questão de frisar o sábio homem, dando ênfase a sua frase apontando o dedo indicador da sua mão direita para cima. “E apenas”, continuava ele, “um grande conhecedor de vinho poderia criar um vinho tão bom como aquele”. Quando alguém o questionava de como poderia saber disso, sem ter provado o tal do vinho. Padre Ferdinando dizia: “E alguma vez, meu bom homem, Deus fez algo imperfeito? Pois este vinho teria que ser o melhor!”. Chegou mesmo, certamente, já tomado pelo efeito do límpido líquido, a argumentar que Cristo era um bom bebedor de vinho, pois não foi à toa que escolheu tal bebida para representar seu sofrimento, já que sabia que ela, assim como Ele, não apenas foi sofrimento sob os pés de quem o pisou e lhe esmagou a uva, a fim de obter tão precioso líquido, como também, ressuscitado em outra forma, é festejo e alegria.
E lá pelas tantas, chegou a afirmar em tom de piada que o cristianismo nascera mesmo no seio de grandes beberrões de vinho, e que estes foram seus primeiros seguidores, pois não seriam estes, verdadeiramente, perguntava o bom padre dando boas risadas, os primeiros a seguirem alguém que tivesse o maravilhoso dom de transformar água em vinho? Como prova, citava que, como uma exigência feita por eles, o milagre do vinho foi o primeiro milagre feito por Cristo. E ninguém se atrevia a discordar dele, pois lá estava um homem que sabia muito bem do que dizia.
Ah, como era instrutivo e ao mesmo tempo delicioso ver aquele velho homem despojado, por alguns minutos, de toda sua autoridade a se entregar a tecer comentários sobre os mais intricados e variados assuntos da igreja.
A bendita cachaça do padre Ferdinando parecia cada vez mais levá-lo a questionar a si próprio e a suas crenças. Poder-se-ia mesmo dizer que ele possuía dois públicos, um composto pelas senhoras e senhores que frequentavam suas missas pela manhã e o pequeno público do boteco que atentamente ouvia seus conselhos.
E após alguns goles a mais daquele bendito líquido, o padre Ferdinando, como um bom servo de Deus, usufruindo deste maravilhoso dom que Deus deu ao homem, a liberdade, botava-se a questionar cada vez mais suas crenças. Era um espetáculo que todos os homens deveriam ver. Ferdinando questionava que um homem branco, loiro, de olhos azuis, pudesse ter nascido em um povo tão moreno quanto os judeus daquele tempo. Ele argumentava que aquela não poderia ser a verdadeira imagem de Cristo; dizia ser um artifício do homem europeu através da imagem loira de Cristo, de impor uma falsa pureza e superioridade dos brancos europeus a outros povos morenos e negros.  Ferdinando chegava mesmo a argumentar, já um tanto tomado pelo doce efeito da bebida, em um tom irônico, se não seria a imagem daquele homem loiro e bonito um motivo a mais de atrair mulheres para a igreja, como hoje já se sucede com os padres cantores. “Chego mesmo, que Deus me perdoe”, dizia o padre, unindo as mãos para cima, e beijando o crucifixo, trocando, em seguida, sua seriedade por novamente gargalhadas, “a pensar, por um momento, ser um culto de maricas, quando vejo aqueles pais de famílias, sérios, com seus bigodões, beijando a imagem daquele belo homem de cabelos loiros”.   
Ah!, nosso bom padre, segurando a barriga, ria bastante com seu próprio pensamento, e dizia, em seguida: “que povo tolo!”.
Quando via os devotos vindos da igreja, padre Ferdinando comentava: “todos querem ir pro céu, mas o engraçado é que ninguém quer morrer. Fogem da morte como o Diabo da cruz!”, dizia dando risadas.
E aos devotos, padre Ferdinando comentava: “Veja dona Clotilde, coitada, nunca vi mulher tão carola, vive sempre ao redor de minha batina ou rezando a Cristo ou dando esmolas aos pobres, pedindo por sua salvação. Bajula a todos: Cristo, eu e os santos. Será que Deus precisa de tantos bajuladores como estes para fazer o bem? Chego a pensar serem os ateus os únicos que merecem a salvação, pois, se fazem o bem, fazem espontaneamente, sem visarem sua salvação”.
* * *
Aos poucos, padre Ferdinando ia se ajeitando sobre o balcão atrás da porta e, calmamente, dormia com os braços e a cabeça sobre o mesmo. E durante seu sono podia-se ouvi-lo pronunciar um nome bem baixinho, era um nome de mulher: “Catarina... Catarina...”. Seria o doce nome de sua mãe ou o nome de uma doce mulher que este amou um dia?
Ah, durma meu bom velho, durma e sonhe com os belos momentos de sua vida, com um beijo amoroso dado na mulher amada, ou com os momentos mais sublimes de sua juventude.
Continuava a dormir o bom padre embriagado pelos verdadeiros valores da vida.

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