quarta-feira, 17 de junho de 2015

POEMAS PARA A DEFUNTA



POEMAS PARA A DEFUNTA
de Braulio Tavares
Quando sua noiva Alice morreu, depois de meses de luta contra uma doença implacável, Karl pensou que iria enlouquecer. Durante o velório e os preparativos para o sepultamento, parentes se revezaram ao seu lado, atentos a qualquer gesto de desespero. Sabiam o quanto ele era emotivo, melodramático, precisava externalizar tudo que sentia. Viram com alívio, contudo, que ele dedicou aquela última e interminável noite à compilação de todos os poemas que escrevera para Alice, principalmente durante as semanas de sua agonia final. Na manhã seguinte, na hora das últimas despedidas antes de fechar o caixão, ele aproximou-se, ficou alguns minutos murmurando algo em voz baixa, e por fim colocou entre as mãos postas dela o grosso maço de folhas manuscritas, atadas com uma fita de seda: os poemas, sem cópia, que pertenciam a ela e só a ela. E assim foi enterrada.
O tempo passou, e com ele as coisas que o tempo traz. Karl concluiu seu curso, foi morar na capital. Continuou a escrever; a poesia era não somente a cura para o sofrimento mas o registro da descoberta de novos mundos, novos horizontes. Frequentou a corte. Fez amigos. Amadureceu; conquistou cargos e posições, e quando começou a publicar seus primeiros livros, os novos poemas foram acolhidos com entusiasmo e reverência. Ninguém os amava mais do que Dorotéia, a bela filha de um embaixador, em cujos braços ele encontrou por fim a felicidade que lhe fôra negada.
Um ano depois marcaram o casamento, e o editor de Karl sugeriu que publicasse um novo livro para comemorar a data. Foi Dorotéia que, sabendo do noivado tragicamente interrompido, sugeriu-lhe que tentasse recuperar os manuscritos sepultados. Seria uma aventura romântica, que iria projetar ainda mais seu nome. Karl, que secretamente já se arrependia do que fizera, concordou.  Combinaram que só revelariam tudo depois de feito, e embarcaram no trem para a cidade natal do poeta.
A noite estava quente e enluarada. Entraram ele e ela no cemitério, trajando roupas rústicas, armados de pás. Afastaram com dificuldade a lápide, e puseram-se a cavar. Karl estava possuído por uma sensação de eterno retorno, como se não fosse a primeira vez que aquilo lhe acontecia. Quando a pá bateu na tampa do ataúde, os dois desceram, e dentro do buraco acenderam uma lanterna. Desparafusaram a tampa, ergueram-na. Soltaram um arquejo de horror; não diante do esqueleto vestido de branco, ao qual se agarravam ainda pedaços de pele mumificada, mas à vista das páginas espalhadas por todo o ataúde, minuciosamente rasgadas, deliberadamente destruídas, friamente reduzidas a farrapos e vingança.

Nenhum comentário:

Postar um comentário