POEMAS PARA A DEFUNTA
de Braulio Tavares
Quando sua noiva Alice
morreu, depois de meses de luta contra uma doença implacável, Karl pensou que
iria enlouquecer. Durante o velório e os preparativos para o sepultamento,
parentes se revezaram ao seu lado, atentos a qualquer gesto de desespero. Sabiam
o quanto ele era emotivo, melodramático, precisava externalizar tudo que
sentia. Viram com alívio, contudo, que ele dedicou aquela última e interminável
noite à compilação de todos os poemas que escrevera para Alice, principalmente
durante as semanas de sua agonia final. Na manhã seguinte, na hora das últimas
despedidas antes de fechar o caixão, ele aproximou-se, ficou alguns minutos
murmurando algo em voz baixa, e por fim colocou entre as mãos postas dela o
grosso maço de folhas manuscritas, atadas com uma fita de seda: os poemas, sem
cópia, que pertenciam a ela e só a ela. E assim foi enterrada.
O tempo passou, e com ele
as coisas que o tempo traz. Karl concluiu seu curso, foi morar na capital.
Continuou a escrever; a poesia era não somente a cura para o sofrimento mas o
registro da descoberta de novos mundos, novos horizontes. Frequentou a corte.
Fez amigos. Amadureceu; conquistou cargos e posições, e quando começou a
publicar seus primeiros livros, os novos poemas foram acolhidos com entusiasmo
e reverência. Ninguém os amava mais do que Dorotéia, a bela filha de um
embaixador, em cujos braços ele encontrou por fim a felicidade que lhe fôra
negada.
Um ano depois marcaram o
casamento, e o editor de Karl sugeriu que publicasse um novo livro para
comemorar a data. Foi Dorotéia que, sabendo do noivado tragicamente
interrompido, sugeriu-lhe que tentasse recuperar os manuscritos sepultados.
Seria uma aventura romântica, que iria projetar ainda mais seu nome. Karl, que
secretamente já se arrependia do que fizera, concordou. Combinaram que só revelariam tudo depois de
feito, e embarcaram no trem para a cidade natal do poeta.
A noite estava quente e
enluarada. Entraram ele e ela no cemitério, trajando roupas rústicas, armados
de pás. Afastaram com dificuldade a lápide, e puseram-se a cavar. Karl estava
possuído por uma sensação de eterno retorno, como se não fosse a primeira vez
que aquilo lhe acontecia. Quando a pá bateu na tampa do ataúde, os dois
desceram, e dentro do buraco acenderam uma lanterna. Desparafusaram a tampa,
ergueram-na. Soltaram um arquejo de horror; não diante do esqueleto vestido de
branco, ao qual se agarravam ainda pedaços de pele mumificada, mas à vista das
páginas espalhadas por todo o ataúde, minuciosamente rasgadas, deliberadamente
destruídas, friamente reduzidas a farrapos e vingança.
Nenhum comentário:
Postar um comentário