Este conto de Edgar Allan
Poe, que foi publicado em abril de 1842, tem o título original de Vida na Morte
(Life in Death), tem como tema a história de um quadro, em que seu autor ao
pintar o retrato de sua esposa passa a valorizar mais a arte de seu quadro que
sua mulher; ao ponto desta se definhar aos poucos e ele não notar. E enquanto
mais a esposa perde a vida mais o quadro fica cheio desta. Para mim é evidente
que este conto de Poe foi uma grande influência na criação do famoso romance O Retrato
de Dorian Grey, de Oscar Wilde.
O
CASTELO cuja entrada meu criado se aventurara a forçar para não deixar que eu
passasse a noite ao relento, gravemente ferido como estava, era um desses
monumentos ao mesmo tempo grandiosos e sombrios que por tanto tempo se ergueram
carrancudos entre os Apeninos, tanto na realidade como na imaginação da Sra.
Radcliffe2.
Segundo
todas as aparências, tinha sido temporária e muito recentemente abandonado.
Aboletamo-nos em uma das salas menores e menos suntuosamente mobiliadas,
localizada num afastado torreão do edifício. Eram ricas, embora estragadas e
antigas suas decorações. Tapeçarias pendiam das paredes, adornadas com vários e
multiformes troféus de armas, de mistura com um número insólito de quadros de
estilo bem moderno em molduras de ricos arabescos de ouro. Por esses quadros,
que enchiam não só todas as paredes, mas ainda os numerosos ângulos que a
esquisita arquitetura do castelo formava, meu delírio incipiente me fizera
talvez tomar profundo interesse. Assim é que mandei Pedro fechar os pesados
postigos da sala pois já era noite, acender as velas de um enorme candelabro
que se achava à cabeceira de minha cama e abrir completamente as franjadas
cortinas de veludo preto que envolviam o leito. Desejei que tudo isso fosse
feito, a fim de que pudesse abandonar-me senão ao sono, pelo menos,
alternativamente, à contemplação desses quadros e à leitura de um livrinho que
encontrara sobre o travesseiro e que continha a critica e a descrição das
pinturas. Li durante muito tempo e longamente contemplei aqueles quadros.
Rápida e esplendidamente as horas se escoaram e a profunda meia-noite chegou. A
posição do candelabro me desagradava e, estendendo a mão, com dificuldade, para
aio perturbar o sono do criado, coloquei-o de modo a lançar seus raios de luz
em cheio sobre o livro.
Esse
gesto, porém, produziu um efeito totalmente inesperado. Os raios das numerosas
velas (pois haviam muitas) caíam agora dentro de um nicho da sala que ate então
estivera mergulhado na intensa sombra lançada por uma das colunas da cama. E
assim vi, plena luz, um retrato até então despercebido. Era o retrato de jovem
no alvorecer da feminilidade. Olhei rapidamente para o retrato e depois fechei
os olhos. Por que isso fizera, eu mesmo não o percebi a principio. Mas,
enquanto minhas pálpebras permaneciam fechadas, revolvi na mente a razão de
assim ter feito. Era um movimento impulsivo, para ganhar tempo de pensar, para
e certificar-me de que minha vista não me iludira, para acalmar e dominar a
fantasia, forçando-a a uma contemplação mais serena e mais segura. Logo depois,
olhei de novo, fixamente. para o quadro. Do que então vi claramente não poderia
nem deveria duvidar. Porque o primeiro clarão das velas sobre aquele quadro
como que dissipou o sonolento torpor que furtivamente se apossava de meus
sentidos e sem demora me pôs completamente desperto.
O
retrato, como já disse, era o de uma jovem. Apenas a cabeça e os ombros, feitos
na maneira tecnicamente chamada vignette, e bastante no estilo das cabeças
favoritas de Sully3. Os braços, o colo, e mesmo as pontas do cabelo
luminoso perdiam-se imperceptivelmente na vaga porém profunda sombra formada
pelo fundo do conjunto.
A
moldura era oval, ricamente dourada e filigranada à mourisca. Como obra de
arte, nada podia ser mais admirável do que a própria pintura. Mas aquela
comoção tão súbita e tão intensa não me viera nem da execução da obra nem da
imortal beleza do semblante. Menos do que tudo poderia ter sido minha
imaginação que despertada de seu semitorpor, teria tomado aquela cabeça pela de
uma pessoa viva. Vi imediatamente que as peculiaridades do desenho, do trabalho
do vinhetista e da moldura deviam ter de pronto dissipado tal ideia, impedido
mesmo seu momentâneo aparecimento. Permaneci quase talvez uma hora
semi-erguido, semi-inclinado, a pensar intensamente sobre tais pormenores, com
a vista fixada no retrato. Por fim, satisfeito com o verdadeiro segredo de seu
efeito, deixei-me cair na cama. Descobrira que o encanto do retrato estava na
expressão de uma absoluta aparência de vida que a princípio me espantou para
afinal confundir-me, dominar-me e aterrar-me. Com profundo e reverente temor,
tornei a pôr o candelabro em sua primitiva posição. Afastada assim de minha
vista a causa de minha aguda agitação, busquei avidamente o volume que
descrevia as pinturas e sua história. Procurando a página que se referia ao
retrato oval , li as imprecisas e fantásticas palavras que se seguem:
Era
uma donzela da mais rara beleza e não só amável como cheia de alegria. E
maldita foi a hora em que ela viu, amou e desposou o pintor. Ele era
apaixonado, estudioso, austero e já tinha na Arte a sua desposada. Ela, uma
donzela da mais rara beleza e não só amável como cheia de alegria, toda luz e
sorrisos, travessa como uma jovem corça; amando com carinho todas as coisas;
odiando somente a Arte, que era sua rival; temendo apenas a paleta, os pincéis
e os outros sinistros instrumentos que a privavam da contemplação do seu amado.
Era pois terrível coisa para essa mulher ouvir o pintor exprimir o desejo de
pintar o próprio retrato de sua jovem esposa. Ela era, porém, humilde e
obediente, e sentava-se submissa durante horas no escuro e alto quarto do
torreão, onde a luz vinha apenas de cima projetar-se, escassa, sobre a alva
tela. Mas ele, o pintor, se regozijava com sua obra, que continuava de hora em
hora, de dia em dia, E era um homem apaixonado, rude e extravagante, que vivia
perdido em devaneios; assim não percebia que a luz que caía tão lívida naquele
torreão solitário ia murchando a saúde e a vivacidade de sua esposa,
visivelmente definhando para todos, menos para ele. Contudo, ela continuava
ainda e sempre a sorrir, sem se queixar, porque via que o pintor (que tinha
alto renome) trabalhava com fervoroso e ardente prazer e porfiava, dia e noite,
por pintar quem tanto o amava, mas que todavia, se tornava cada vez mais triste
e fraca. E na verdade alguns que viram o retrato falavam em voz baixa de sua
semelhança como de uma extraordinária maravilha, prova não só da mestria como
de seu intenso amor por aquela a quem pintava de modo tão exímio. Mas afinal,
ao chegar o trabalho quase a seu termo, ninguém mais foi admitido no torreão,
porque o pintor se tornara rude no ardor de seu trabalho e raramente desviava
os olhos da tela, mesmo para contemplar o semblante de sua esposa. E não
percebia que as tintas que espalhava sobre a tela eram tiradas das faces
daquela que se sentava a seu lado. E quando já se haviam passado várias semanas
e muito pouco a fazer, exceto uma pincelada sobre a boca e um colorido nos
olhos, a alegria da mulher de novo bruxuleou, como a chama dentro de uma
lâmpada. E então foi dada a pincelada e completado o colorido. E durante um
instante o pintor ficou extasiado diante da obra que tinha realizado mas em
seguida, enquanto ainda contemplava, pôs-se a tremer e, pálido, horrorizado,
exclamou em voz alta: "Isto é na verdade a própria vida. Voltou-se,
subitamente, para ver a sua bem-amada. Estava morta!
Notas
de rodapé:
(1)
Publicado pela primeira vez no Graham's Lady's and Gentlerman's Magazine, abril
de 1842. Titulo original: LIFE IN DEATH.
(2)
Anne Ward Ridclíffe (1764-1823), romancista inglesa famosa por suas obras de
mistério, destacando-se entre elas.- O Romance do Bosque e os mistérios de
Udolfo. (N. T).
(3)
Thomas Sully (1783-1872), pintor norte-amerícano, de origem inglesa, (N. T.).
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