UMA NOITE DE TERROR NO
CEMITÉRIO
“À
noite, quando as igrejas fecham suas portas, e o silêncio e a escuridão inundam
o lugar, um público bem diferente do dia passa a frequentá-las: são as almas
dos mortos que deixam suas sepulturas para rezarem reunidas em missas macabras,
cantarolando suas canções fúnebres. E, se você entrar em uma
igreja qualquer, poderá ouvir os mortos em coral a cantar suas tenebrosas
canções”.
Era o que nos contavam os mais velhos quando nos reuníamos à beira de
fogueiras para ouvir suas histórias de fantasmas que nos faziam arrepiar os
pelos, e a dormimos com as luzes acesas durante nossas férias na casa de
nossos avós, quando pequenos.
Tal
ideia, que por inúmeras gerações tem amedrontado crianças e adultos, se originava
de uma antiga história que narra a grande surpresa que teve uma devota após
perder a noção do tempo, chegando bem mais cedo do costumeiro horário da missa
da manhã na pequena capela do cemitério de Nossa Senhora da Soledade, em Belém,
e em lugar do público costumeiro, encontrou pessoas com fisionomias doentias e
cadavéricas, descobrindo ao final, do modo mais terrível possível, tratar-se da macabra Missa dos Mortos.
E passado
tanto tempo, e ainda tomados pela curiosidade infantil, pulamos o muro do velho
cemitério da Soledade, não para admirarmos a bela arquitetura de suas tumbas e mausoléus, mas para desvendarmos uma vez
por todas tal mistério, por meio de uma aposta que nos obrigava a passarmos a
madrugada inteira em suas dependências.
A
noite ia alta com a lua cheia a brilhar sobre nossas cabeças a clarear os
túmulos em que andávamos a espreitar as estátuas de anjos de mármores que
pareciam nos fitar com seus olhos prestes a ganhar vida e voar sobre a cidade
morta. Líamos os nomes daqueles que agora jaziam sob a terra, em seu último e
permanente descanso; olhávamos suas imagens com a data de morte e ficávamos a
imaginar suas vidas. E, após andarmos por alguns instantes, deparamo-nos, finalmente, com nosso destino: a pequena capela do antigo cemitério da
Soledade, onde originou-se a lenda, e onde passaríamos a madrugada inteira.
E, estando abandonada há anos, não foi difícil
penetrá-la. Eu e Karmel nos alojamos nela, nos protegendo do frio e das rajadas de vento. Sentamo-nos
encostados à parede e esperamos pela chegada da madrugada.
Ficamos
a conversar sobre a grande aventura que teríamos para contar, documentadas por
filmagens de celular. E embora de modo algum acreditássemos em fantasmas, não
podíamos negar que aquele ambiente escuro e soturno era de arrepiar.
Lá
fora ouvíamos o barulho do vento por entre os túmulos, o sacudir dos galhos das
árvores, a descrever sombras assustadoras, e o cair de seus frutos que soavam como passos distantes pelo cemitério, ou como
pedras atiradas sobre a velha capela.
—
A noite será de inútil espera, pois nenhum fantasma, nenhuma assombração, iremos
ver — disse eu a Karmel.
—
E o pior é que minha bateria está pra acabar, não quero ficar aqui sem música.
—
O que você está ouvindo?
—
Pet Sematary, dos Ramones —
disse Karmel verificando seu celular e pondo novamente seus fones de ouvidos.
—
Então vamos tirar fotos do lugar e ir logo embora.
—
Não, vamos honrar o prometido já que faltam apenas duas horas para clarear o dia.
* * *
Eram
três horas da madrugada, já cochilávamos, quando passos minúsculos inundaram a
pequena capela; passos invisíveis a se rastejar e se espalhar por todos os
cantos, seguidos por guinchos assustadores, o que nos fez acordar com olhos
arregalados... Vimos
então que não eram apenas ratos, mas ratos enormes de cemitério, com seus
grandes caninos que deviam triturar o que ainda restavam dos corpos em suas
covas, e que, certamente, vinham se alimentando de cadáveres há séculos. Levantamos... foi
quando um vulto negro entrou assustadoramente pela porta da antiga capela, levando-nos a nos esconder por entre os escombros.
Karmel
lembrou-se de contos assustadores que ouvira quando menino; de segredos
blasfemos; de cultos subterrâneos sob antigos cemitérios; de entidades
espectrais, cujos poderes eram exercidos sobre ratos, transformando-os em
mensageiros do mundo subterrâneo dos mortos; roubando cadáveres para seus
festins diabólicos em grandes tumbas subterrâneas.
O espectro foi até ao altar, benzeu-se, e virou-se em nossa direção, obrigando-nos a deitarmos no chão. Foi quando Karmel sentiu algo entre suas pernas, a se rastejar por debaixo de suas calças até seu peito e, em seguida, até seu pescoço: um maldito rato lhe encarava com suas enormes presas, que, aos poucos, fora seguido por dezenas de outros. E embora não escondesse o nojo por tais criaturas, Karmel se mantinha impassível, sem mexer nenhum de seus músculos, pois havia descoberto, naquele momento, que temia mais fantasmas do que qualquer animal vivo.
O espectro foi até ao altar, benzeu-se, e virou-se em nossa direção, obrigando-nos a deitarmos no chão. Foi quando Karmel sentiu algo entre suas pernas, a se rastejar por debaixo de suas calças até seu peito e, em seguida, até seu pescoço: um maldito rato lhe encarava com suas enormes presas, que, aos poucos, fora seguido por dezenas de outros. E embora não escondesse o nojo por tais criaturas, Karmel se mantinha impassível, sem mexer nenhum de seus músculos, pois havia descoberto, naquele momento, que temia mais fantasmas do que qualquer animal vivo.
Os
ratos farejavam seu queixo, lambiam seus lábios, seus olhos... Suas caldas enfiavam-se em
sua boca, seus longos bigodes roçavam suas narinas, mas Karmel continuava
impassível, segurando o espirro. Até que todo seu rosto fora
tomado por um monte monstruoso de ratos, que se
contorciam e se embolavam como um grande bolo de vermes. Foi quando levantou-se, subitamente, fugindo do ambiente aos gritos.
Corremos
por entre sepulturas, mais rápidos que podíamos; cruzávamos mausoléus,
pulávamos por sobre sepulturas infantis, até que fomos engolidos por um velho túmulo, caindo por sobre centenas de ossos humanos. O lugar era
profundo e escorregadio. Ao tentarmos lhe escalar escorregávamos
sempre para o mesmo lugar, afundando cada vez mais entre os milhares de ossos
humanos que se acumulavam ali há décadas. Foi quando novamente ouvimos o guinchar que vinha de uma cavidade abaixo: eram os milhares de ratos que chiavam, e que vinham ao nosso encontro. Com as lanternas dos celulares iluminamos
a cova, verificando um túnel adjacente a um de seus lados, que dava para passar
um homem; imediatamente o penetramos.
O
ar ali era irrespirável e fétido, agachados, gatinhávamos sobre sua superfície
úmida, com torrões de areias pútridas a cair sobre nossas cabeças. Cansados, por caminhar por inúmeros minutos, paramos para descansar
um pouco, acreditando tê-los despistados. Iluminamos o túnel a nossa
frente, verificando que era forrado por ossos humanos e restos de roupas
rasgadas. O túnel era quente e úmido, e parecia não ter fim; foi
quando um terrível som estridente se juntou ao som de nossas respirações
ofegantes; iluminamos atrás de nós e vimos dezenas de olhos famintos que
brilhavam contra a luz: os ratos eram agora dezenas
de milhares, que vinham em busca de seu alimento preferido: carne humana.
Gatinhamos
o mais rápido que podíamos, até o túnel se tornar tão estreito que passamos a
nos arrastar feito vermes, nos atolando cada vez mais no líquido espesso e
pútrido que há séculos era produzido por milhares de corpos em decomposição. E
ao chegarmos ao fim do mesmo, os ratos logo nos alcançaram, roendo nossos
sapatos com ferocidade. E estando eles prontos a devorarem nossos pés, algo de
miraculoso aconteceu naquele instante: uma luz inundou o ambiente, e mãos
puseram-se a levantar-nos:
—
Malditos ratos! Criaturas dos infernos! Vamos, subam logo.
Tínhamos
alcançados um túmulo raso, que fora aberto, e mãos fortes nos havia salvado de
nosso destino trágico.
O
homem, que se assemelhava a um mendigo, parecia ser o mesmo que com sua capa preta
havia penetrado na pequena capela algumas horas antes. Ele nos pediu cigarro,
dizendo-nos que há décadas não fumava. E após explicarmos o porquê de todo nosso
infortúnio, ele se pôs surpreendentemente a falar:
—
Então vamos, a Missa já está para começar...
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