quarta-feira, 14 de outubro de 2015

OLHOS FAMINTOS



UMA NOITE DE TERROR NO CEMITÉRIO
“À noite, quando as igrejas fecham suas portas, e o silêncio e a escuridão inundam o lugar, um público bem diferente do dia passa a frequentá-las: são as almas dos mortos que deixam suas sepulturas para rezarem reunidas em missas macabras, cantarolando suas canções fúnebres. E, se você entrar em uma igreja qualquer, poderá ouvir os mortos em coral a cantar suas tenebrosas canções”.
Era o que nos contavam os mais velhos quando nos reuníamos à beira de fogueiras para ouvir suas histórias de fantasmas que nos faziam arrepiar os pelos, e a dormimos com as luzes acesas durante nossas férias na casa de nossos avós, quando pequenos.




Tal ideia, que por inúmeras gerações tem amedrontado crianças e adultos, se originava de uma antiga história que narra a grande surpresa que teve uma devota após perder a noção do tempo, chegando bem mais cedo do costumeiro horário da missa da manhã na pequena capela do cemitério de Nossa Senhora da Soledade, em Belém, e em lugar do público costumeiro, encontrou pessoas com fisionomias doentias e cadavéricas, descobrindo ao final, do modo mais terrível possível, tratar-se da macabra Missa dos Mortos. 
E passado tanto tempo, e ainda tomados pela curiosidade infantil, pulamos o muro do velho cemitério da Soledade, não para admirarmos a bela arquitetura de suas tumbas e mausoléus, mas para desvendarmos uma vez por todas tal mistério, por meio de uma aposta que nos obrigava a passarmos a madrugada inteira em suas dependências.



A noite ia alta com a lua cheia a brilhar sobre nossas cabeças a clarear os túmulos em que andávamos a espreitar as estátuas de anjos de mármores que pareciam nos fitar com seus olhos prestes a ganhar vida e voar sobre a cidade morta. Líamos os nomes daqueles que agora jaziam sob a terra, em seu último e permanente descanso; olhávamos suas imagens com a data de morte e ficávamos a imaginar suas vidas. E, após andarmos por alguns instantes, deparamo-nos, finalmente, com nosso destino: a pequena capela do antigo cemitério da Soledade, onde originou-se a lenda, e onde passaríamos a madrugada inteira.
E, estando abandonada há anos, não foi difícil penetrá-la. Eu e Karmel nos alojamos nela, nos protegendo do frio e das rajadas de vento. Sentamo-nos encostados à parede e esperamos pela chegada da madrugada.
Ficamos a conversar sobre a grande aventura que teríamos para contar, documentadas por filmagens de celular. E embora de modo algum acreditássemos em fantasmas, não podíamos negar que aquele ambiente escuro e soturno era de arrepiar.
Lá fora ouvíamos o barulho do vento por entre os túmulos, o sacudir dos galhos das árvores, a descrever sombras assustadoras, e o cair de seus frutos que soavam como passos distantes pelo cemitério, ou como pedras atiradas sobre a velha capela.
— A noite será de inútil espera, pois nenhum fantasma, nenhuma assombração, iremos ver — disse eu a Karmel.
— E o pior é que minha bateria está pra acabar, não quero ficar aqui sem música.
— O que você está ouvindo?
— Pet Sematary, dos Ramones — disse Karmel verificando seu celular e pondo novamente seus fones de ouvidos.
— Então vamos tirar fotos do lugar e ir logo embora.
— Não, vamos honrar o prometido já que faltam apenas duas horas para clarear o dia.
* * *
Eram três horas da madrugada, já cochilávamos, quando passos minúsculos inundaram a pequena capela; passos invisíveis a se rastejar e se espalhar por todos os cantos, seguidos por guinchos assustadores, o que nos fez acordar com olhos arregalados... Vimos então que não eram apenas ratos, mas ratos enormes de cemitério, com seus grandes caninos que deviam triturar o que ainda restavam dos corpos em suas covas, e que, certamente, vinham se alimentando de cadáveres há séculos. Levantamos... foi quando um vulto negro entrou assustadoramente pela porta da antiga capela, levando-nos a nos esconder por entre os escombros.
Karmel lembrou-se de contos assustadores que ouvira quando menino; de segredos blasfemos; de cultos subterrâneos sob antigos cemitérios; de entidades espectrais, cujos poderes eram exercidos sobre ratos, transformando-os em mensageiros do mundo subterrâneo dos mortos; roubando cadáveres para seus festins diabólicos em grandes tumbas subterrâneas. 
O espectro foi até ao altar, benzeu-se, e virou-se em nossa direção, obrigando-nos a deitarmos no chão. Foi quando Karmel sentiu algo entre suas pernas, a se rastejar por debaixo de suas calças até seu peito e, em seguida, até seu pescoço: um maldito rato lhe encarava com suas enormes presas, que, aos poucos, fora seguido por dezenas de outros. E embora não escondesse o nojo por tais criaturas, Karmel se mantinha impassível, sem mexer nenhum de seus músculos, pois havia descoberto, naquele momento, que temia mais fantasmas do que qualquer animal vivo.
Os ratos farejavam seu queixo, lambiam seus lábios, seus olhos... Suas caldas enfiavam-se em sua boca, seus longos bigodes roçavam suas narinas, mas Karmel continuava impassível, segurando o espirro. Até que todo seu rosto fora tomado por um monte monstruoso de ratos, que se contorciam e se embolavam como um grande bolo de vermes. Foi quando levantou-se, subitamente, fugindo do ambiente aos gritos.
Corremos por entre sepulturas, mais rápidos que podíamos; cruzávamos mausoléus, pulávamos por sobre sepulturas infantis, até que fomos engolidos por um velho túmulo, caindo por sobre centenas de ossos humanos. O lugar era profundo e escorregadio. Ao tentarmos lhe escalar escorregávamos sempre para o mesmo lugar, afundando cada vez mais entre os milhares de ossos humanos que se acumulavam ali há décadas. Foi quando novamente ouvimos o guinchar que vinha de uma cavidade abaixo: eram os milhares de ratos que chiavam, e que vinham ao nosso encontro. Com as lanternas dos celulares iluminamos a cova, verificando um túnel adjacente a um de seus lados, que dava para passar um homem; imediatamente o penetramos.
O ar ali era irrespirável e fétido, agachados, gatinhávamos sobre sua superfície úmida, com torrões de areias pútridas a cair sobre nossas cabeças. Cansados, por caminhar por inúmeros minutos, paramos para descansar um pouco, acreditando tê-los despistados. Iluminamos o túnel a nossa frente, verificando que era forrado por ossos humanos e restos de roupas rasgadas. O túnel era quente e úmido, e parecia não ter fim; foi quando um terrível som estridente se juntou ao som de nossas respirações ofegantes; iluminamos atrás de nós e vimos dezenas de olhos famintos que brilhavam contra a luz: os ratos eram agora dezenas de milhares, que vinham em busca de seu alimento preferido: carne humana.
Gatinhamos o mais rápido que podíamos, até o túnel se tornar tão estreito que passamos a nos arrastar feito vermes, nos atolando cada vez mais no líquido espesso e pútrido que há séculos era produzido por milhares de corpos em decomposição. E ao chegarmos ao fim do mesmo, os ratos logo nos alcançaram, roendo nossos sapatos com ferocidade. E estando eles prontos a devorarem nossos pés, algo de miraculoso aconteceu naquele instante: uma luz inundou o ambiente, e mãos puseram-se a levantar-nos:
— Malditos ratos! Criaturas dos infernos! Vamos, subam logo.
Tínhamos alcançados um túmulo raso, que fora aberto, e mãos fortes nos havia salvado de nosso destino trágico.
O homem, que se assemelhava a um mendigo, parecia ser o mesmo que com sua capa preta havia penetrado na pequena capela algumas horas antes. Ele nos pediu cigarro, dizendo-nos que há décadas não fumava. E após explicarmos o porquê de todo nosso infortúnio, ele se pôs surpreendentemente a falar:
— Então vamos, a Missa já está para começar...

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