domingo, 2 de janeiro de 2022

A VISAGEM DO CEMITÉRIO DOS INDIGENTES, DO GUAMÁ


A VISAGEM DO CEMITÉRIO DOS INDIGENTES, DO GUAMÁ


Guamá, 1934, Hospício dos Lázaros do Tucunduba


Duas enfermeiras saíam tarde da noite do Hospício dos Lázaros do Tucunduba, devido a preparação da maniva para a maniçoba que já estava a oito dias sendo cozida em cinco latões de manteiga ao fogo da lenha, que seria servida aos internos no almoço do Círio daquele ano. 


Pelo caminho, as duas conversavam sobre as tarefas do dia e dos seus planos para o Círio, quando passaram ao lado de pequenos amontoados de terra, com cruzes de madeira envelhecidas e carcomidas em cima, que eram clareadas pela luz do candeeiro que levavam consigo. Era o cemitério dos indigentes do Hospício dos Lázaros do Tucunduba, que ficava no caminho e que tinham de passar todo dia para ir para suas casas. O cemitério possuía apenas uma estreita faixa de mato rasteiro que o separava do caminho tomado por elas.

 

— Não lhe dá medo de cruzar esse caminho à noite, Dona Felícia? 

— Nem um pouco, piquena. 

— Mas nem um pouquinho mesmo?! Pois eu morro de medo. 

— Sabe que eu até gosto de ter eles de companhia durante a caminhada! 

— Cruz credo, Dona Felícia! 

— E lembro de cada um deles e do dia dos enterros, também. 

— Ave-maria, mulher, isso não te assusta mesmo? 

— Não. Passo aqui e ainda aceno pra eles. 

— Aff, Maria! 

— De quê temer se tão mortos, ora! É dos vivos que devemos ter medo, piquena. E desses, eu tenho medo, sim! 

— É, a senhora não deixa de ter mesmo razão. E deviam era pôr um muro pra proteger o cemitério dos tatus e porcos do mato que cavucam a terra para comerem as carniças dos mortos. Não é porque eram pobres que não se vai ter um pouco de respeito por eles. 

— Nosso destino é mesmo morrer e virar comida de tatu, piquena, não tem jeito. Ontem mesmo vi dois buracos grandes em uma cova, não era de tatu, mas de porco do mato, deviam ser dois porcões, e o que sobrou da carcaça do defunto estava espalhada por cima da cova. 

— Mas para as autoridades um muro de tijolo é luxo para quem morou a vida toda em casa de barro! 

— É, piquena. Não tiveram cuidados com eles quando estavam vivos, vão ter agora que estão mortos? Ora! 

— Isso é verdade. O que me deixa sem esperança alguma na vida, Dona Felícia. 


Enquanto contornavam o cemitério, as duas enfermeiras ficaram em silêncio, absorvidas pelos pensamentos que nos ocorrem quando encaramos nosso destino inevitável. O silêncio durou até que Dejanira passou a ouvir um estranho ruído de roer de dentes, e não pôde deixar de pensar nos tatus. 


— Foi só falar neles que os sacripantas já começaram a cavucar a terra. Devem estar mastigando e repuxando as carcaças dos mortos para fora da terra, agora mesmo. O que a senhora acha, Dona Felícia? Hem, Dona Felícia? Dona Felícia?! 


Dejanira parou e viu que a velha enfermeira havia ficado para trás. Ao virar o candeeiro para trás de si, viu Dona Felícia acocorada no meio do caminho. 


— Vixe! E isso é hora de mijar, mulher! Me avise pelo menos e não me deixe falando sozinha! 


Dejanira caminhou, então, ao encontro da outra. 


— Cuidado com suas partes íntimas ao se levantar, mulher; com essa lua cheia clareando tudo, se tiver homem por perto, vai ver tudo!, e riu. 


Ao chegar mais perto da velha amiga, notou que o estranho barulho de dentes vinha dela, que parecia roer os próprios dentes agachada, passando as mãos por entre os cabelos deixando-os todo desgrenhado. 


— Dona Felícia? Dona Felícia? O que está acontecendo com a senhora? A senhora está bem?” 


Ao tocá-la no ombro com a mão, a velha suspendeu o rosto em direção à lua e se pôs a grunhir alto como um porco com os olhos revirados, convulsionando o corpo todo, em uma grande tremedeira. 


— Dona Felícia! NÃO!!!” 


Dejanira correu assustada daquilo deixando cair o candeeiro pelo caminho enquanto ouvia o grunhir e o bater de patas da coisa que passou a segui-la. Correu e correu, até que saiu do caminho de terra e entrou no mato, enquanto o imenso porco preto parava à beira da estrada sob a lua cheia que brilhava por sobre as árvores. De repente, um novo grunhido se fez ouvir vindo do mato, e um segundo porco preto apareceu no caminho de terra, arfante e faminto, se encontrando com o primeiro, e os dois passaram a correr juntos, um ao lado do outro, rumo ao cemitério dos indigentes.


* Tirado e Adaptado do Romance Após a Chuva da Tarde.


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