terça-feira, 8 de novembro de 2011

FEIO, SUJO E IMORAL (de Bosco Silva)

by Joel-Peter Witkin

JÁ ESTAVA ENOJADO DOS ELOGIOS à minha inteligência. Principalmente das mulheres, que viam em mim apenas isso, nada mais do que isso. Gostaria que vissem em mim outras qualidades mais atraentes, pois quando queriam transar recorriam a homens com outras qualidades. Talvez o atributo de ter um pênis grande, valesse mais que todos estes elogios, para elas. E para piorar as coisas, eu já estava à quase um ano sem transar, a não ser com prostitutas. Elas pareciam ser muito mais sinceras e baratas que o resto das mulheres, pelo menos das que conheci.

Todos os meus relacionamentos acabaram em ódio, justamente com aquelas que diziam terem unicamente interesse em mim. Pelo menos com prostitutas sabia o que esperar!

O que mais me enojava nos elogios à minha inteligência era a cumplicidade que havia em tal elogio, pois para que alguém fosse tido como inteligente, era como se fosse preciso que outro, tanto ou mais inteligente, reconhecesse isso. Havia algo como “olha, eu também sou inteligente, e muito mais que você, seu babaca!”. Isso me deprimia, pois aqui estava eu, um sujeito “inteligente”, vivendo uma vida medíocre. Sentia-me como um projeto que não deu certo, ou algo parecido. O elogio era como um modo de consolar alguém, ou de demonstrar o desperdício que alguém tinha sido, e esse alguém era eu, vivendo uma vida enfadonha, comandada por pessoas medíocres.

Na história da humanidade muitos homens inteligentes morreram sem sentir a glória disso, e em muitos casos como conseqüência de sua própria inteligência. Os exemplos são vastos, são muitíssimos, mesmo.

Por outro lado, eu não podia negar que minha inteligência me servia de fato como um consolo. Pois, criava estórias, escrevia contos, como um meio de fugir da minha rotina, criava um mundo em que as coisas para mim davam certo, um mundo maravilhoso sem dor ou monotonia. Mas do que valia? Nada mais do que isso! Pois, mesmo que fossem bons, era quase impossível alguém viver de literatura. Sim, de fato, era preciso ter a esperteza de um mago para mudar isso!

Se ao menos tivesse dinheiro... É como dizem, é melhor sentir-se infeliz em Paris, de barriga cheia, que infeliz, com fome, em uma cidade pobre, na sarjeta. A esperteza parecia-me mais valiosa que a inteligência. Isso mesmo, a esperteza que, nesse sentido, a definiria como a habilidade de tirar proveito das situações, ou dos outros. Mas, como poderia eu, tão rígido com meus princípios morais, exercer tal habilidade. E o pior é que eu sabia que tudo se devia a um engano, ou pior ainda, a uma mentira. As coisas que se passaram à mais de dois mil anos atrás ainda faziam-se valer!

Sou ateu, e mesmo assim, mantenho valores cristãos, o que é um absurdo! Sou prisioneiro de regras e costumes que me foram passados de modo impensado. Assim como minha linguagem, herdada de meus pais, meus avós...

* * *

Sim! Estava firmemente decidido a mudar tudo isso. E para tanto, precisava mudar meu modo de agir, meus valores.

Todos nós temos um ponto fraco! E tudo aquilo em que demonstramos excessivo interesse, torna-se um ponto fraco. Um modo em que podemos ser dominados. Assim, bastava apenas descobrir a grande vontade de alguém para dominá-lo. Isto fazia jus à minha inteligência. Porém, havia meus valores... Precisava urgentemente adaptá-los a nova situação. E este era meu ponto fraco.

Sentia-me como um tigre amordaçado e preso em uma jaula denominada de “bons costumes”. Sentia a necessidade irresistível de soltar o tigre que existia em mim. Já não sabia se era capaz de ser mau. E o que valia fazer o bem, sem saber que este é melhor que o mal? Era o mesmo que ser pacífico por simples covardia, e não pelo próprio valor da paz.

* * *

Enquanto mergulhava em meu devaneio, um pequeno cão cruzava a rua, agora, deserta. Estava ali, pensei, minha grande chance de impor meus novos valores, e, deste modo, testá-los.

Seria capaz?

Pensei em como amava os cães, embora não tivesse tido nenhum em minha vida. Porém, agora não havia como me apegar a algo, ou a alguém, devia apenas me apegar à minha nova idéia. Então, acelerei meu carro em direção ao cão... esmagando-o.

Parei o carro e contemplei pelo retrovisor minha grande obra. Alegre pelo feito, pus-me a gargalhar e gritar de alegria, pois tinha vencido um obstáculo: meu amor por algo que jamais tinha experimentado. E, como recompensa, decidi comemorar em um bar.

* * *

O bar era um daqueles lugares, onde pessoas decadentes se encontravam, ansiosas para esquecerem a banalidade de suas vidas, em um copo de bebida.

Acima do balcão um cartaz dizia: SE VOCÊ BEBE PRA ESQUECER, ENTÃO, PAGUE ANTES.

Percebi, então, ainda mais, a banalidade de suas vidas. Tudo que, apenas, queriam, era sobreviver, sempre movidos pela inconsciência de seus hábitos. Pareciam com autômatos, programados para sempre obedecerem às mesmas regras. Não possuíam consciências de suas vidas, como se estas não lhes pertencessem. Faziam as mesmas coisas que seus tataravôs: preferiam a segurança à liberdade! E eu sabia o porquê! Notara isso, em minhas ex-mulheres.  Estas tinham preferido a segurança e o conforto da rotina do lar, com homens que as espancavam, em troca da liberdade e da descontração que eu lhes oferecia.

A liberdade era demasiadamente forte para mentes tão condicionadas. Pois, ser livre implicava em se aventurar, em abraçar novas idéias, sem nenhuma segurança ou experiência, abraçar o novo, o extremamente novo. Era desbravar um mundo cheio de possibilidades, sem nenhuma segurança prévia, ou recompensa. Era um ato heróico, corajoso. Um verdadeiro pulo no escuro! E isto era demais para suas mentes.

Sim, pode-se matar tanto um homem com a ausência de alimento, quanto com a ausência da fome. E aquelas almas estavam todas mortas. Nenhuma vontade parecia nutrir aquelas pobres almas!

Naquele momento, nada mais me chamava a atenção, exceto uma bela mulher que acabara de ver. Bela, apesar de suas misérias! Talvez fosse uma “dama da noite”, uma prostituta que perdera a hora, mergulhada em seu copo de cerveja.

Sentia nojo de como a sociedade tratava aqueles seres: os usava e depois lhes descartavam. Não reconheciam o grande bem que tais seres faziam. Quantos estupros não teriam evitado em sociedade, das filhas comportadas de seus grandes cidadãos! Embora reconhecesse, por outro lado, que trabalhavam com aquilo que não teria preço.

Sim, era um mal necessário!

Um som de copo caindo quebra a monotonia do lugar, acompanhado de um esporro dado ao garçom, feito pelo dono do bar.

O garçom, um senhor de sessenta e poucos anos, reage de modo tímido, debatido pelo peso da idade. A humilhação continua, até que eu me levanto em direção ao balcão.

Saco uma arma, aponto-a em direção à cabeça daquele que proferia tal insulto. Puxo sua cabeça pelos cabelos, batendo-a repetidas vezes sobre o balcão, comprimindo-a contra o mesmo, dizendo repetidas vezes:

- Veja, este homem não é um robô, não é um autômato.

Os fregueses, atônitos, acompanhavam a cena.

O homem, cuspindo sangue, com a cabeça sobre o balcão, proferia incansavelmente:

- Leve tudo que quiser; o dinheiro está sob o caixa.

- Eu não quero nada, exceto o que nos pertence, nossa liberdade.

Retirei dinheiro suficiente do bolso, e disse-lhe:

- Toma, fique com o troco, seu bastardo, e botei o dinheiro em sua boca.

* * *

Ao sair do balcão, senti que meus valores, ainda, não mudara totalmente. Seria capaz de matar aquele homem? Teria liberdade suficiente para isso? Ou ainda era um refém de meus costumes, de meus valores impensados? Sentia-me como 25 anos atrás, quando acompanhei um grupo de garotos de minha rua durante o estupro de uma garota cega e muda. A experiência tinha deixado marcas profundas, em mim. E por ser o menor da turma, fui obrigado a participar dele, e me calar durante os anos seguintes. E por isso me dedicara à leitura e ao ato de escrever.

O que mais gostava no ato de escrever era a imensa liberdade criadora que sentia. Sentia-me tão livre e independente quanto um deus. Queria levar a mesma idéia para a vida. Queria comandá-la e não ser apenas um personagem sem liberdade preso ao seu autor, ou ao seu algoz.

Porém, o mesmo pensamento continuava martelando em minha cabeça: seria capaz de matar um homem? Teria vontade suficiente para isso? Seria capaz de vencer tudo que me fora passado de modo tão impensado?

Mal acabara de completar meu pensamento, quando a situação se fez presente:

O dono do bar seguia-me, de arma em punho, disparando em minha direção. Não havia nenhuma possibilidade de diálogo, muito menos tentativa de fuga, já que me encontrava em um beco, aparentemente, sem saída.

Os tiros zuniam em meus ouvidos. Foi quando comecei a responder...

Contornei a pilha de caixas de madeiras que existiam ao lado do depósito de bebidas. E consegui contorná-lo, ficando bem atrás deste. Chamei-o com um assobio. O qual atendeu prontamente, com a arma em punho, disparando contra mim. Em seguida, disparei em sua direção... estourando seus miolos. O sangue se espalhou por um raio de três metros, acompanhado de pequenos pedaços de cérebro. E, imediatamente, pus-me em fuga, em direção ao meu carro.

Pisei no acelerador o mais que pude, queria estar o mais rápido possível longe daquele lugar...

* * *

Eu era agora um homem procurado, um fora da lei, alguém à margem das leis da sociedade, um monstro... Dane-se! Sei que muitos me cumprimentariam: parabéns pelo seu primeiro assassinato! E diriam ao pé do meu ouvido: não tenha remorso, aquele pulha não valia nada, menos um a povoar o mundo e respirar nosso ar!

Minha vida se dividia agora em antes e depois do assassinato. Tinha atravessado a linha imaginária que separava o bem do mal. E como tal linha era tênue! Como era fácil, tão fácil, transpô-la! Qualquer um podia tropeçá-la, e tombar para o outro lado. 

À noite, não consegui dormir. Pensava incessantemente na cena. Naquele cérebro explodindo, naquela chuva de sangue. Seu rosto não saia da minha mente. Ao fechar os olhos a cena se repetia cada vez mais intensa. Pensava em como era ser um assassino, em como era ter o poder nas mãos. Lembrei-me então de uma velha anedota: quando um sujeito foi perguntado por quantos homens teria matado, este respondeu: - eu jamais matei alguém, eu só mando a bala, quem mata é Deus.

É! Esta era uma boa desculpa. Talvez pudesse inventar uma tão boa quanto essa. O problema era o envolvimento: cada rosto não é apenas um rosto, ele possui uma história. Alguém sentiria sua falta, não apenas seus credores. Jamais há algo que em si seja um mal absoluto, nem mesmo aquele pulha. Sim, alguém sentiria sua falta, nem que fossem as moscas.

Aquela foi a noite mais longa de minha vida. Foi como se seu fantasma me assombrasse a cada minuto, a cada fechar de olhos.

Ao amanhecer o dia, voltei à cena do crime, não pude evitar. Parei o carro a vários metros. O medo de ser reconhecido não foi maior do que a minha vontade.

Ao redor, as pessoas se aglomeravam curiosas para saberem do ocorrido, e ao mesmo tempo alegres, por quebrarem suas rotinas. Era um verdadeiro acontecimento, um grande acontecimento em suas vidas, mesmo que o corpo tenha sido removido.

Ao perceber olhos sobre mim, debandei em disparada...  


* * *

Eu não podia negar que as últimas horas tinham mudado minha vida, que meus últimos atos me atormentavam. Que a monotonia tinha dado lugar à inquietação.

Ao passar ao lado de um carro de polícia, pelo retrovisor uma imagem me chamou a atenção: o velho garçom, ao lado da viatura, apontava em minha direção.

Imediatamente passei a ser seguido. Tinha dado início à minha fuga.

Entre as ruas estreitas, desviava-me entre carros e becos. A velocidade parecia nunca ser o bastante. O vento agora zunia em meus ouvidos. Foi quando algo inesperado aconteceu: um cão cruzou novamente o meu caminho.

Era como se tivessem me dado uma nova chance! Aquilo agora me era extremamente precioso. Foi quando desviei de minha direção, chocando-me violentamente a um poste...

Por algum momento minha mente se apagou... E logo após pude, então, perceber, que meus valores, eram parte de minha personalidade, e que nada poderia mudar isso, nem mesmo eu. Eram minha essência.

E enquanto pensava nisso, meu rosto era lambido pelo cão.



Um comentário:

  1. "Sim, pode-se matar tanto um homem com a ausência de alimento, quanto com a ausência da fome."

    Velho!!! Que frase do caralho!!!

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