sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

PESADELO E REALIDADE (de Bosco Silva)

by Frida Kahlo

A morte sempre lhe pareceu uma idéia extremamente excitante, e naquele dia estava decidido a se suicidar. Para tanto, escolheu o prédio mais discreto e longe da confusão da cidade que poderia encontrar. Não se importou nem um pouco com a paisagem, afinal, isto era o que menos lhe importava.

Ao iniciar os quatorze andares que lhe separava de seu trágico fim, pôs-se a pensar sobre os mistérios da morte. Todas as estórias que aprendera em sua infância estavam prestes a serem testadas. Seu ateísmo lhe deixava confuso, pois se estivesse certo, nada lhe restaria, nem mesmo o sabor da vitória de sua elogiada crença. Do contrário, teria que suportar a sensação de toda uma vida de erros. Por isso, seu ateísmo, algumas vezes lhe aborrecia, já que não poderia ser comprovado pessoalmente, muito menos após a morte.

Ao subir os andares, imaginou cada andar como um ano de sua vida: seus primeiros anos, em branco em sua memória, pertenciam aos seus pais, seus parentes...

Estava agora no sétimo andar, reminiscências emergiam de sua memória: suas brincadeiras de criança, as descobertas que tanto lhe agradavam, o amor e o carinho de seus pais eram coisas que tinham valido apena.

Ao chegar ao décimo quarto andar percebeu que os andares correspondiam aos anos mais felizes de sua vida, que a escolha de tal prédio não foi por acaso, pois seria bom morrer tendo estas como suas últimas memórias.

Finalmente, ao chegar ao topo do prédio um pensamento invadiu sua mente, a possibilidade da queda gerar um efeito semelhante, porém contrário a subida. Sua mente relembraria imediatamente dos últimos anos, contudo, de modo decrescente, chegaria aos primeiros anos de vida, que não lhe pertenciam. Olhou para baixo, sentiu a brisa em seus cabelos, teve a impressão que a vida e a morte se pareciam; como extremos a dor era um elemento presente: ao nascer deve ter sentido o ar, que agora balançava prazerosamente seus cabelos, rasgar suas narinas, penetrar forçosamente um espaço virgem. Dor que certamente sua mãe sentiu ao preparar-se, em seus primeiros passos, para gerar-lhe vida.

Olhou para baixo novamente, respirou fundo, como quem se prepara para um mergulho em uma piscina, e saltou. Seu corpo estendeu-se no espaço, aparentemente vazio, e caiu... caiu... caiu...

Daniel acordou assustado com o sonho que tivera, levantou-se e dirigiu-se à cozinha para beber água. Ao apanhar a garrafa d’água, escorregou, tombando ao chão. E enquanto sangrava, pensou: não confunda pesadelo com realidade. A realidade é bem pior!     

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