“E agora, amigo leitor, prepare seu coração e sua mente para a narrativa mais impura já escrita desde que o mundo existe, livro que não encontra paralelo entre os antigos ou entre os modernos.”
Assim adverte o escritor, MARQUÊS DE SADE (1740 – 1814), a leitura de seu primeiro livro, Os Cento e Vinte Dias de Sodoma, ou A Escola da Libertinagem, escrito em 1785. Podemos dizer que Sade não exagera em suas palavras, nem um pouco, pois tal livro ainda hoje, passado mais de duzentos anos de sua feitura, não foi ainda superado em ousadia sexual e violência.
Eu posso quase ver Sade, em meio aos gritos de dor e lamentações, provindo das possíveis torturas feitas em outros prisioneiros, perdido em suas divagações em busca de uma nova forma de tortura ou de assassinato que fugisse dos tão conhecidos, e desgastados, métodos de seu tempo, já que, sem dúvida, uma dos grandes atrativos de sua obra é a sua criatividade em tal área.
O volumoso livro foi escrito em trinta e sete dias, sendo dedicado, por seu autor, a ele doze horas por dia em sua feitura, possivelmente o tempo em que o sol clareava sua cela. Tal obra foi escrita em um rolo de papel de vinte metros, e às escondidas, já que as autoridades tinham a tarefa de vasculhar, e destruir, qualquer escrito que por ventura pudessem achar de Sade. O livro narra os 120 dias no castelo de Silling, para onde quatro nobres franceses (um padre, um financista, um juiz e um nobre francês), acompanhados de 46 pessoas, entre velhos, jovens e crianças, arrancados à força de suas casas, põem em prática, orientados por quatro das mais experientes e devassas prostitutas da França, todas as formas de práticas sexuais bizarras narradas por tais prostitutas, em um total de seiscentas formas. A obra é dividida em quatro partes, cada parte contém 150 formas diferentes de taras sexuais:
A primeira é dedicada às paixões simples, que nada mais são que sexo envolvendo pedofilia, secreções e excreções humanas, como urina e fezes; essa seção merece uma ressalva, pois não há penetração, mas apenas contato com os elementos citados acima;
A segunda parte, chamada de paixões duplas, além de novamente pedofilia, inclui sexo com blasfêmia, incesto, masoquismo e sadismo; aliás, sadismo como já se foi inúmera vezes comentado deriva do nome de Sade.
A terceira parte, denominada de paixões criminosas, se refere ao sexo anal, tanto passivo quanto ativo, vale lembrar também que o sexo anal durante o século XVIII era tido como crime, passível de prisão e mesmo de morte; também inclui, além de todas as paixões precedentes, um grau maior de sadismo, como o prazer de furar um olho, arrancar um dente, ou cortar os dedos do parceiro;
E, finalmente, as paixões assassinas, que como podemos deduzir inclui sexo em que sua maior atração está na morte do parceiro, de várias formas e meios, mas sempre de modo terrível e doloroso.
Por isso, o livro choca. E chocar naqueles tempos não era tarefa fácil, pois seria difícil chocar um público que já estava acostumado com os espetáculos das sentenças de morte feitas por decapitação nas praças da Paris de então; assim como aos nobres franceses que participavam das mais extremas orgias sexuais. E se pararmos pra pensar, reconheceremos que chocará menos também, hoje, a um grande público ávido por cenas de fetiches extremos e cenas de morte, consumidas aos milhares, todos os dias, por meio da internet.
O livro é apenas um esboço do que seria, e apenas a primeira parte está completa, embora o autor inclua nela algumas observações, com relação a erros e a mudanças do texto; as outras partes são apenas esboços do que seria.
O universo dos 120 dias de Sodoma é tal que faz com que o mais violento dos Serial Killers pareça um simples aprendiz quando comparado com os personagens centrais de tal livro, cujas personalidades são descritas, detalhadamente, por meio de qualidades desprezíveis de seus caráter. Podemos mesmo dizer, que Sade antecipou a criação de vários personagens tão populares hoje em dia na literatura e no cinema, como os Serial Killers, os anti-heróis da literatura underground; e se pudermos comparar sua obra com o cinema, podemos também dizer que Sade antecipou, em séculos, um subgênero do cinema de terror bastante conhecido, chamado GORE, em que seu atrativo está nas cenas de tortura, com muito sangue e tripas expostas, tendo como alguns bons exemplares as séries: O ALBERGUE; JOGOS MORTAIS e o famoso filme CANIBAL HOLOCAUSTO.
“Muitas extravagâncias aqui ilustradas merecerão sem dúvida o seu desagrado; sim estou bem ciente disso. Mas há entre elas algumas que o aquecerão a ponto de lhe custar algum sêmen, e isso, leitor, é tudo que lhe pedimos.”
O livro de Sade teve uma adaptação para o cinema, em 1975, feita pelo polêmico diretor italiano PIER PAOLO PASOLINE, Salò, ou os cento e vinte dias de Sodoma. O filme prima mais para as bizarras cenas sexuais do que para as cenas violentas do livro. A história é adaptada para a Itália durante o governo fascista. E, como não poderia ser diferente, o filme ainda hoje choca. Uma das cenas se tornou antológica, o banquete com fezes humana servida com toda a pompa de um grande banquete.
Contudo, diferentemente dos dias de hoje, o choque proporcionado pelo livro de Sade não é à toa, ele obedece a uma filosofia rígida, por meio da qual Sade perscruta as forças obscuras da mente humana, e que vê a influência dos instintos sexuais em quase todas as relações humanas, conferindo a eles a importância devida com que FREUD lhe garantiria mais de um século depois.
Porém, depois de todos estes comentários preparatórios, resta-nos discorrer sobre o livro enquanto entretenimento. O livro segui o modelo do Decamerão, de Boccaccio, e as Mil e Uma Noites, obedece ao modelo de contar pequenas histórias independentes dentro de uma história maior; e, embora seja bem escrito, torna-se repetitivo à medida que as histórias se desenrolam, como alguns já apontaram; mas tudo em Sade tem uma razão filosófica, até mesmo sua chatice, a qual é devido ao seu espírito filosófico de ordenação, o que o levou a tratar o sexo do mesmo modo que o filósofo D. DIDEROT fez com o conhecimento de seu tempo: ordenando-o e classificando-o em uma enciclopédia; e é isso que nos parece ser “Os Cento e Vinte Dias de Sodoma”: uma espécie de enciclopédia das perversões então conhecidas, o que lhe dá, sem dúvida, certo refinamento de libertinagem, que não encontramos em outros escritores libertinos de sua época, em que as pequenas variantes são fundamentais, tornando, por isso, o livro um catálogo de perversões, explorando seus detalhes e todas as possíveis variantes de cada uma; o que é confirmado pelo autor logo em sua introdução:
“Estude intimamente a paixão que à primeira vista parece assemelhar-se completamente a outra e verá que essa diferença existe e, por menor que seja, ela possui precisamente este refinamento e este toque que distingue e caracteriza o gênero de libertinagem sobre o qual se discorre.”
Conclusão: então há a história, por exemplo, do sujeito que gosta de comer vômito; de outro que gosta de comer fezes; e como variante, temos o homem que gosta de defecar na boca da parceira e dela receber sua sujeira diretamente na boca. Etc. Tornando-o, por isso, leitura obrigatória para psiquiatras. O que o torna, de certa forma, cansativo; e pensar que se fosse terminado o livro teria, provavelmente, quatro grossos volumes. Resultado: torna-se, às vezes, maçante como uma enciclopédia; mas, no geral, é um ótimo livro. E assim como uma enciclopédia, o livro é indicado apenas para quem esteja muito interessado na filosofia sadiana, e que possa, claro, suportar o inferno de Sade; um inferno cheio de sexo, dor e submissão, que exige, além de paciência, estômago forte e bastante coragem; tarefa que poucas pessoas têm se aventurado.
Para saber mais sobre Marquês de Sade, acesse os artigos publicados no site:
* SADE, O FILÓSOFO MALDITO
* MARQUÊS DE SADE E A PSICOPATIA
* QUAL É A SUA PERVERSÃO?
* A LITERATURA PODE SER PERIGOSA? – EM PAUTA: NIETZSCHE E SADE
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