Finalmente, li um dos mais polêmicos livros brasileiros por seu conteúdo tido como racista: O Cortiço, de Aluísio Azevedo (1857 - 1913), publicado em 1890.
O Cortiço
O livro conta a história da criação do cortiço de São Romão, e do enriquecimento de seu proprietário, João Romão, um português para quem é deixado, como forma de pagamento, uma pequena venda, com todas suas mercadorias, por seu ex patrão, um português que retorna para Portugal.
De posse de sua venda, João Romão faz de tudo para melhorar seus rendimentos --- se alimenta dos restos de comidas que ele vende para trabalhadores, dorme em cima do balcão, dá troco errado para os fregueses, amiga-se com uma escrava, de nome Bertoleza, com o intuito de tomar conta dos rendimentos da venda de sua pequena quitanda e do dinheiro com que esta sonha em comprar sua liberdade.
Visando mais lucro, João Romão constrói, aos poucos, um cortiço, uma forma de habitação bastante comum e barata, em fins do século XIX, no Rio de Janeiro, para pessoas de baixa renda, com seus pequenos quartinhos. Grande parte de seus habitantes é composto por lavadeiras, que exercem a profissão no próprio cortiço.
O cortiço de João Romão torna-se motivo de desavença com o rico Miranda, outro português que possui um casarão ao lado do cortiço, e que odeia a ideia de ter como vizinho um lugar com pessoas com nível social tão baixo.
O Racismo do Século XIX
Antes de sua leitura me surpreendia as opiniões contra o conteúdo do livro, que afirmavam ser um livro de conteúdo racista, voltado contra o povo brasileiro. Me surpreendia também o fato de que um livro com conteúdo tão racista, fizesse parte da leitura obrigatória para o vestibular, e me surpreendia ainda mais ao saber que ele era tido por muitos professores como um dos livros mais importantes sobre a formação do povo brasileiro.
E após a leitura pude confirmar que, sim, o livro é racista até ao seu último parágrafo, e, após assistir a inúmeras resenhas dedicada ao livro por inúmeros booktubers, me surpreendeu que a grande maioria tenha se esquivado de reconhecer o racismo presente em suas páginas (talvez, a fim de evitar polêmicas), afirmando que não devemos olhar as obras do passado com o ponto de vista do presente, como se o racismo ainda não continuasse sendo um fato tão atual nos nossos dias, e sendo defendido da mesma forma que era defendido no tempo da escrita de O Cortiço.
Por outro lado, não se pode negar o racismo em suas páginas pelo simples fato de que suas páginas tem como base uma forma de racismo que julgo ser o mais perverso de todos, que é o racismo que se reveste de roupagem científica, já que o livro de Aluísio Azevedo se baseia na racista ciência do século XIX, que, como sabemos, não teve nada de científica, mas apenas foi uma tentativa falha de tornar o racismo, tão comum na Europa de seu tempo, em ciência.
Naturalismo
O livro de Aluísio Azevedo (1857 - 1913) segue a escola literária francesa do Naturalismo, que tinha como objetivo usar teses científicas de sua época como base para orientar o escritor na criação de suas histórias, e na construção de seus personagens, tentando se assemelhar ao máximo à realidade.
O Naturalismo empregado em O Cortiço, leva o narrador a narrar com a imparcialidade de um cientista, usando para tanto, a todo instante, características animais para descrever os personagens, o que pode levar leitores a se chocar com o texto, como na passagem em que o narrador compara os moradores do cortiço com larvas e o cortiço com esterco:
A ideia de que o homem é fruto de seu meio e de sua raça, era uma das ideias científicas principais que vigoravam durante a escrita d’O Cortiço e também do naturalismo.
Racistas como o Conde de Gobineau (1816 - 1882), que foi diplomata no Brasil durante o século XIX, que, com base em pesquisas históricas, afirmava em livros como o Ensaio Sobre a Desigualdade das Raças Humanas, que povos com mistura de raça --- como o povo brasileiro ---, tornava-se inferior tanto em qualidades físicas quanto em inteligência e virtudes morais, e que chegou a afirmar a respeito do povo brasileiro:
Outro racista que influenciou bastante a ciência de seu tempo foi o italiano CESARE LOMBROSO (1835 - 1909), psiquiatra italiano que pretendia identificar criminosos por meio da cor de sua pele, olhos, cabelos, buscando, por meio de suas características físicas, condenar o indivíduo como criminoso antes mesmo que este praticasse o crime.
Lombroso se valeu de pesquisas em prisões e em autópsias de prisioneiros, para constatar que o maior número de prisioneiros de pele, olhos e cabelos escuros era um indício de que indivíduos pertencentes a raças com tais características tinham maior tendência inata para se tornar criminoso.
O racismo e a crença de que havia raças com tendências ao crime era tão certa na época de Lombroso, que jamais ocorreu a este que o maior número de pessoas tidas como indivíduos de raça inferior entre criminosos se devia ao fato de que menos oportunidades sociais eram dadas a estas pessoas, justamente pelo próprio racismo, e não por estas trazerem em si tendências inatas ao crime, e por isso, estas tinham maior propensão em cair no crime.
O Naturalismo Racista de O Cortiço
Ao contar a história dos personagens que compõem o cortiço, compostos de negros, mulatos e portugueses pobres, e dos personagens do casarão do rico português Miranda, o livro de Aluísio Azevedo acaba recriando em suas páginas, um pouco da história do Brasil, das misturas de raças que compõem seu povo e de sua relação com os “civilizados” europeus, através dos portugueses (nota-se também que o cortiço pode ser comparado as atuais favelas). E nesse contar, não podemos deixar de ver teses dos teóricos racistas do tempo em que foi escrito a obra de Aluísio Azevedo. Ela está presente quando os brancos portugueses são descritos como pessoas virtuosas, trabalhadoras, religiosas, etc. enquanto os mulatos brasileiros, são descritos como preguiçosos, dados ao divertimento exagerado, esquecendo do trabalho, sensuais, etc., corrompendo os virtuosos portugueses com sua cultura decadente, perversa e maus hábitos, tornando os portugueses maus-caráter, e isso vemos claramente quando o livro descreve o português Jerônimo, homem dedicado ao trabalho e a família, que ao vir para o Brasil, se apaixona pela mulata brasileira Rita Baiana, abandona a mulher e a filha a própria sorte, e passa a adquirir hábitos brasileiro:
O Cortiço, sem dúvida, se destaca bastante do conjunto das obras da literatura brasileira, e não apenas por seu racismo. Há nele descrições de atos sexuais e de violência que o leitor jamais irá encontrar em outro livro da época, e mesmo de várias décadas depois. Nele podemos encontrar, por exemplo, o primeiro personagem homossexual masculino da literatura brasileira, com descrições que não deixa dúvidas. Há também uma cena que jamais irá sair da cabeça do leitor: a descrição de um estupro feito por uma prostituta de luxo, Leonie, em uma garota virgem, que até os 18 anos ainda não menstruou, chamada carinhosamente pelas moradores do cortiço por Pombinha, que após o estupro passa a menstruar.
Foi curioso notar que apenas uma resenha feita por um booktuber chamou atenção para o fato de que foi um estupro, assim como é bastante surpreendente que tal livro aborde assuntos tão polêmicos já em 1890, num período ainda bastante conservador e religioso, como esta descrição de uma relação lésbica, ou melhor, um estupro lésbico.
O livro, apesar do sempre presente racismo e inferiorização do povo brasileiro, o que incomoda, e que, com certeza, ajudou a solidificar o estereótipo de que o povo brasileiro é preguiçoso e a feito apenas a festas e não ao trabalho, não possui leitura tediosa, e em muitas partes é agradável e divertido.
Quanto ao racismo do livro, chamou-me bastante atenção o fato de que enquanto livros do Monteiro Lobato tenha sido denunciado como racista, por conter em suas páginas comparações feitas pelo autor em que ele compara a agilidade da Tia Nastácia, uma senhora negra, em subir uma escada com uma macaca, embora em outras páginas ele afirme e destaque suas boas qualidades de caráter, O Cortiço, de Aluísio Azevedo, apesar de nunca destacar qualidades boas do brasileiro, mas apenas as más, nunca foi denunciado por racismo, ao contrário, é apontado como livro chave para se entender a formação do povo brasileiro.
O racismo contido nas páginas da obra de Aluísio Azevedo é minimizado por aqueles que afirmam que não se deve julgar as obras do passado com os pensamentos do presente. Ou seja, não se deve criticar seu racismo com as críticas que são feitas hoje ao racismo atual. Porém, não estamos falando de algo que tenha mudado com o tempo, como moda, ou hábitos urbanos, e que por isso não se deve julgar tendo em vista os costumes de hoje, mas estamos falando de racismo que ainda continua hoje extremamente atual, e tendo os mesmos fundamentos que se basearam racistas do século XIX. O que faz com que um racista de hoje ainda se identifique com as afirmações racistas de O Cortiço, mesmo tendo sido escrito há 130 anos atrás.
Deve-se por isso proibir O Cortiço?
Não. Mas se deveria sempre explicar as bases ultrapassadas da ciência e os preconceitos (que ainda são atuais) em que ele foi baseado.
O Cortiço
O livro conta a história da criação do cortiço de São Romão, e do enriquecimento de seu proprietário, João Romão, um português para quem é deixado, como forma de pagamento, uma pequena venda, com todas suas mercadorias, por seu ex patrão, um português que retorna para Portugal.
De posse de sua venda, João Romão faz de tudo para melhorar seus rendimentos --- se alimenta dos restos de comidas que ele vende para trabalhadores, dorme em cima do balcão, dá troco errado para os fregueses, amiga-se com uma escrava, de nome Bertoleza, com o intuito de tomar conta dos rendimentos da venda de sua pequena quitanda e do dinheiro com que esta sonha em comprar sua liberdade.
Cena do Filme "O Cortiço" (1978), de Francisco Ramalho Jr. |
O cortiço de João Romão torna-se motivo de desavença com o rico Miranda, outro português que possui um casarão ao lado do cortiço, e que odeia a ideia de ter como vizinho um lugar com pessoas com nível social tão baixo.
O Racismo do Século XIX
Antes de sua leitura me surpreendia as opiniões contra o conteúdo do livro, que afirmavam ser um livro de conteúdo racista, voltado contra o povo brasileiro. Me surpreendia também o fato de que um livro com conteúdo tão racista, fizesse parte da leitura obrigatória para o vestibular, e me surpreendia ainda mais ao saber que ele era tido por muitos professores como um dos livros mais importantes sobre a formação do povo brasileiro.
E após a leitura pude confirmar que, sim, o livro é racista até ao seu último parágrafo, e, após assistir a inúmeras resenhas dedicada ao livro por inúmeros booktubers, me surpreendeu que a grande maioria tenha se esquivado de reconhecer o racismo presente em suas páginas (talvez, a fim de evitar polêmicas), afirmando que não devemos olhar as obras do passado com o ponto de vista do presente, como se o racismo ainda não continuasse sendo um fato tão atual nos nossos dias, e sendo defendido da mesma forma que era defendido no tempo da escrita de O Cortiço.
Por outro lado, não se pode negar o racismo em suas páginas pelo simples fato de que suas páginas tem como base uma forma de racismo que julgo ser o mais perverso de todos, que é o racismo que se reveste de roupagem científica, já que o livro de Aluísio Azevedo se baseia na racista ciência do século XIX, que, como sabemos, não teve nada de científica, mas apenas foi uma tentativa falha de tornar o racismo, tão comum na Europa de seu tempo, em ciência.
Naturalismo
O livro de Aluísio Azevedo (1857 - 1913) segue a escola literária francesa do Naturalismo, que tinha como objetivo usar teses científicas de sua época como base para orientar o escritor na criação de suas histórias, e na construção de seus personagens, tentando se assemelhar ao máximo à realidade.
O Naturalismo empregado em O Cortiço, leva o narrador a narrar com a imparcialidade de um cientista, usando para tanto, a todo instante, características animais para descrever os personagens, o que pode levar leitores a se chocar com o texto, como na passagem em que o narrador compara os moradores do cortiço com larvas e o cortiço com esterco:
E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco.Teorias Racistas do Século XIX
A ideia de que o homem é fruto de seu meio e de sua raça, era uma das ideias científicas principais que vigoravam durante a escrita d’O Cortiço e também do naturalismo.
Conde de Gobineau |
Já não existe nenhuma família brasileira que não tenha sangue negro e índio nas veias; o resultado são compleições raquíticas que, se nem sempre repugnantes, são sempre desfavoráveis aos olhos - Arthur Gobineau.As teorias do Conde de Gobineau, então tidas como científicas, foram bastante populares no Brasil de seu tempo, ao ponto de, no fim do século XIX, influenciar a política de branqueamento da população brasileira, com o estímulo da vinda de imigrantes europeus para o Brasil.
Cesare Lombroso |
Lombroso se valeu de pesquisas em prisões e em autópsias de prisioneiros, para constatar que o maior número de prisioneiros de pele, olhos e cabelos escuros era um indício de que indivíduos pertencentes a raças com tais características tinham maior tendência inata para se tornar criminoso.
O racismo e a crença de que havia raças com tendências ao crime era tão certa na época de Lombroso, que jamais ocorreu a este que o maior número de pessoas tidas como indivíduos de raça inferior entre criminosos se devia ao fato de que menos oportunidades sociais eram dadas a estas pessoas, justamente pelo próprio racismo, e não por estas trazerem em si tendências inatas ao crime, e por isso, estas tinham maior propensão em cair no crime.
O Naturalismo Racista de O Cortiço
Ao contar a história dos personagens que compõem o cortiço, compostos de negros, mulatos e portugueses pobres, e dos personagens do casarão do rico português Miranda, o livro de Aluísio Azevedo acaba recriando em suas páginas, um pouco da história do Brasil, das misturas de raças que compõem seu povo e de sua relação com os “civilizados” europeus, através dos portugueses (nota-se também que o cortiço pode ser comparado as atuais favelas). E nesse contar, não podemos deixar de ver teses dos teóricos racistas do tempo em que foi escrito a obra de Aluísio Azevedo. Ela está presente quando os brancos portugueses são descritos como pessoas virtuosas, trabalhadoras, religiosas, etc. enquanto os mulatos brasileiros, são descritos como preguiçosos, dados ao divertimento exagerado, esquecendo do trabalho, sensuais, etc., corrompendo os virtuosos portugueses com sua cultura decadente, perversa e maus hábitos, tornando os portugueses maus-caráter, e isso vemos claramente quando o livro descreve o português Jerônimo, homem dedicado ao trabalho e a família, que ao vir para o Brasil, se apaixona pela mulata brasileira Rita Baiana, abandona a mulher e a filha a própria sorte, e passa a adquirir hábitos brasileiro:
O português abrasileirou-se para sempre; fez-se preguiçoso, amigo das extravagâncias e dos abusos, luxurioso e ciumento; fora-se-lhe de vez o espírito da economia e da ordem; perdeu a esperança de enriquecer…A superioridade da raça portuguesa e a inferioridade da raça brasileira, composto de negros e mulatos, está bem visível no livro quando o português João Romão convida a negra Bertoleza para morarem juntos:
Ele propôs-lhe morarem juntos e ela concordou de braços abertos, feliz em meter-se de novo com um português, porque, como toda a cafuza, Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça superior à sua.Minha Leitura
O Cortiço, sem dúvida, se destaca bastante do conjunto das obras da literatura brasileira, e não apenas por seu racismo. Há nele descrições de atos sexuais e de violência que o leitor jamais irá encontrar em outro livro da época, e mesmo de várias décadas depois. Nele podemos encontrar, por exemplo, o primeiro personagem homossexual masculino da literatura brasileira, com descrições que não deixa dúvidas. Há também uma cena que jamais irá sair da cabeça do leitor: a descrição de um estupro feito por uma prostituta de luxo, Leonie, em uma garota virgem, que até os 18 anos ainda não menstruou, chamada carinhosamente pelas moradores do cortiço por Pombinha, que após o estupro passa a menstruar.
Foi curioso notar que apenas uma resenha feita por um booktuber chamou atenção para o fato de que foi um estupro, assim como é bastante surpreendente que tal livro aborde assuntos tão polêmicos já em 1890, num período ainda bastante conservador e religioso, como esta descrição de uma relação lésbica, ou melhor, um estupro lésbico.
O livro, apesar do sempre presente racismo e inferiorização do povo brasileiro, o que incomoda, e que, com certeza, ajudou a solidificar o estereótipo de que o povo brasileiro é preguiçoso e a feito apenas a festas e não ao trabalho, não possui leitura tediosa, e em muitas partes é agradável e divertido.
Quanto ao racismo do livro, chamou-me bastante atenção o fato de que enquanto livros do Monteiro Lobato tenha sido denunciado como racista, por conter em suas páginas comparações feitas pelo autor em que ele compara a agilidade da Tia Nastácia, uma senhora negra, em subir uma escada com uma macaca, embora em outras páginas ele afirme e destaque suas boas qualidades de caráter, O Cortiço, de Aluísio Azevedo, apesar de nunca destacar qualidades boas do brasileiro, mas apenas as más, nunca foi denunciado por racismo, ao contrário, é apontado como livro chave para se entender a formação do povo brasileiro.
O racismo contido nas páginas da obra de Aluísio Azevedo é minimizado por aqueles que afirmam que não se deve julgar as obras do passado com os pensamentos do presente. Ou seja, não se deve criticar seu racismo com as críticas que são feitas hoje ao racismo atual. Porém, não estamos falando de algo que tenha mudado com o tempo, como moda, ou hábitos urbanos, e que por isso não se deve julgar tendo em vista os costumes de hoje, mas estamos falando de racismo que ainda continua hoje extremamente atual, e tendo os mesmos fundamentos que se basearam racistas do século XIX. O que faz com que um racista de hoje ainda se identifique com as afirmações racistas de O Cortiço, mesmo tendo sido escrito há 130 anos atrás.
Deve-se por isso proibir O Cortiço?
Não. Mas se deveria sempre explicar as bases ultrapassadas da ciência e os preconceitos (que ainda são atuais) em que ele foi baseado.
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