quarta-feira, 16 de novembro de 2022

“VISAGENS E ASSOMBRAÇÕES DE BELÉM” E A ENCANTARIA DO MARAJÓ


 

“VISAGENS E ASSOMBRAÇÕES DE BELÉM” E A ENCANTARIA DO MARAJÓ

No popular livro Visagens e Assombrações de Belém, de Walcyr Monteiro, além de histórias sobre visagens e assombrações, já referidos no título, há uma série de contos focados nas lendas amazônicas e, seguramente, são os mais originais do livro, por estarem ligados diretamente à cultura amazônica. 


E entre estes contos um se destaca por contar uma história muito diferente das demais, que se assemelha a um conto de fantasia, “O Estranho Cliente do Dr. X”. Mas seria ele realmente um conto de fantasia? E o que o faz ser diferente dos demais contos do livro?



O Estranho Cliente do Dr. X 

Um médico tem seus serviços requisitados, de madrugada, por um misterioso cliente que procura por ajuda, mas diz que o médico terá que ser vendado até o local. Por meio de seus outros sentidos, o médico percebe que havia sido levado até ao cais. Ao descer uma escada e sentir seus pés molharem, deduz que está indo para um navio. “O médico sentiu assim como se deslizasse no espaço. Não se pode falar em voar… Apenas que o espaço sentido pelo médico era líquido”. Ao passar por uma porta, retiraram a venda de seus olhos, “o Dr, deparou-se com um luxuosíssimo quarto, muito bem decorado, apenas em estilo completamente diferente de tudo o que conhecia”.


Após ter feito o quê tinha sido solicitado, deu uma última olhada no quarto, antes de ser novamente vendado, Viu que o teto do local era alto e muito bem trabalhado assim como as paredes do lugar; percebeu também que a luz vinha de candelabros a vela. O Dr. X é novamente vendado. Ao subir a escada de volta sente seu corpo ficar totalmente seco. 


Após ser levado de volta à sua casa, é recompensado com uma bolsa de couro, com moedas de ouro, dobrões espanhóis do século XVII. Ao ver as moedas ele se recorda do quarto e de duas pessoas vestidas ao modo “bem antigo”, presentes no quarto.


“Ao acordar, muito tarde, na manhã seguinte, o Dr. X achou muito engraçado o sonho que tivera. Para ele, tudo não passara de um sonho.”


“Porém, quando levantou-se, seus olhos pararam sobre a mesinha da cabeceira: lá estava a sacola de couro, da qual saiam alguns dobrões de ouro, como a mostrar-lhe que sua estranha aventura, longe de sonho, tinha sido insofismável realidade…”


Segundo o “informante” do Walcyr Monteiro, a história “O Estranho Cliente do Dr. X”, está relacionada com o conto “As Ilhas Encantadas do Marajó” e “O Pai-de-Santo do Jurunas”.

 


As Ilhas Encantadas do Marajó

Neste conto o “informante” de Walcyr relata a viagem que fez ao arquipélago de Marajó e das histórias misteriosas contadas sobre duas ilhas da região, que nativos dizem não ser habitada por pessoas mas pelos encantados, pelas entidades do fundo” do rio. E, ao ouvir histórias de pessoas que foram para as ilhas e nunca mais voltaram, o informante se sente mais curioso ainda a ir até lá, e é a todo custo desencorajado. “Olhe, moço, o senhor é da cidade e não acredita nessas coisas. Mas a verdade é que estas ilhas são encantadas”. E também: “E que era bom que não insistisse muito, pois, só pelo fato de estar demonstrando tal desejo, poderia ser “encantado” pelos habitantes do fundo”. Pronto, durante a noite, ele  é assombrado por sonhos. “Tive uma noite inquieta, sonhando inclusive com seres estranhos, vestidos de maneira esquisita. Acreditei que isto tudo era influência do aspecto do lugar”.


Ainda segundo o mesmo “informante”, o caso contado no conto “O Pai-de-Santo” do Jurunas permitiu relacionar de vez “O Estranho Cliente do Dr. X” com a história do conto “As Ilhas Encantadas do Marajó”.




“O Pai-de-Santo” do Jurunas

Segundo Walcyr Monteiro, em seu livro, dois anos após a visita na ilha de Marajó, o informante tem sua curiosidade despertada, por um amigo, a respeito de um pai-de-santo que recebe uma entidade que consegue adivinhar o passado e o futuro de alguém.


Ao chegar na casa do sujeito em dia impróprio, o informante ao lamentar não poder conhecer a entidade tal (ele pronuncia o nome), imediatamente a faz incorporar no pai-de-santo.


Ao dialogar com a entidade, e a lhe perguntar de onde ela é. A entidade lhe diz que é gente do “fundo”. E questionada por ele “Do fundo da onde?”. A entidade responde “Ser do fundo… Da linha dos encantados ou linha da encantaria… Eu moro perto do Marajó… Tu já ouviu falar da Croa Grande e da Croinha?” O informante provoca: “Mas… se lá não tem nada. É só vegetação”. E a entidade responde: “Tu é que pensa, meu ‘fio’. Não tem nada na superfície, mas tem no ‘fundo’. Lá é meu reino encantado; é lá que eu moro.”


Quem Seria o “Povo do Fundo”?

São os Encantados, entidades pertencentes a Pajelança, ou a Encantaria, que tem nas ilhas de Marajó e Mayandeua (ilha que engloba Algodoal) lugares sagrados, onde antigos pajés iam para adquirir o dom da clarividência e da cura, e ter contato com os caruanas, entidades protetoras que habitam o mundo das águas. 


A crença de que rios e igarapés possuem entidades protetoras --- Mãe D’água, Iara, etc.---, fazendo com que os banhos em igarapés tenham horas certas e desaconselháveis ao banho. Tais crenças produziam nos mais novos certo respeito pela natureza.


A Pajelança acredita em seres encantados, das águas e das matas, que manteriam contato com nosso mundo por meio de portais mágicos --- o Lago da Princesa, em Algodoal, seria um deles, que serveria de portal para a Princesa de Mayandeua, uma entidade de cabelos tão dourado quanto o sol, e de pele tão branca quanto as areias da praia que, segundo a crença, faria crianças ainda não nascidas chorarem no ventre de suas mães, demonstrando sua predestinação a terem o dom da cura e da pajelança. 


Para a Encantaria, diferente de outras religiões brasileiras, suas entidades não seriam espíritos de pessoas já falecidas, mas teriam sido pessoas que se tornaram encantadas, adquirido poderes e se transformado em "encantados''. É nesse sentido que devem ser lido os contos “O Estranho Cliente do Dr. X”, que não seria uma história de fantasia mas a manifestação de uma forma de religiosidade amazônica.

 



Sendo assim, o local para onde o Dr. X foi levado, seria um corsário espanhol, do século XVII, que se tornou encantado, junto com sua gente, e que teria atravessado o tempo e o espaço por meio de um portal, semelhante à outras entidades encantadas --- às Três Princesas Turcas e a crença maranhense ligada ao culto do Rei Dom Sebastião.


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