ENTREVISTA COM BOSCO CHANCEN
(por Marlon Vilhena, autor de As Horas Todas da Carne)
Primeiro de tudo, Bosco: por que escrever literatura hoje em dia? Falo especialmente de romances de duzentas, trezentas, quatrocentas páginas, se as pessoas cada vez mais preferem textos curtos, influenciadas pelas redes sociais, que são locais virtuais, de fácil acesso e com conteúdo essencialmente efêmero. Ou, em outras palavras: qual a função de um escritor em dias pós-modernos e ultravelozes? Acho que já comecei com duas perguntas de uma só vez.
É uma boa pergunta: Por que escrever literatura hoje em dia com tão poucos leitores em nosso país (lembrando: essa entrevista também terá pouquíssimos leitores (risos)) e com pessoas com tão pouco tempo livre que preferem gastá-lo com filmes, séries, bares e redes sociais do que ler um livro?
Bem, acho que ainda vale apena, sim, escrever, independentemente de ter ou não público, porque não somente é prazeroso usar a imaginação na forma de escrita mas também porque exercitar nossa imaginação é uma necessidade quanto sonhar, que nada mais é do que criar, inconscientemente, histórias por meio da imaginação; e sonhar é uma forma de aprendizado. Além disso a imaginação ameniza as durezas da vida, ajuda a fazer descobertas, encontrar soluções para problemas, antecipa o futuro, etc. Lembro-me de uma reportagem com um prisioneiro que durante seu confinamento na solitária, teve que criar um amigo imaginário para ter com quem conversar e não enlouquecer. E sempre haverá aqueles que sentem prazer e necessidade em pôr sua imaginação para funcionar por meio da leitura, por meio de textos de 300, 500 ou até mil páginas, já que contar e ouvir histórias é uma necessidade humana desde os homens da caverna; contar histórias faz parte do ser humano, são as narrativas e a imaginação que dão sentido ao mundo, e mesmo quando se conta uma história que quer ser realista, mesmo assim há nela muito do imaginário. E a função do escritor, e dos artistas em geral, é criar narrativas, de proporcionar material para o sonhar e o imaginar das pessoas e passar adiante o registro imaginário de cada geração, senão por meio da escrita, mas por meio de mitos e lendas orais.
O Escritor Marlon Vilhena com o Livro "Após a Chuva da Tarde" |
E como vai essa vida de escritor/autor? Muitos convites para palestras e feiras de livros? O reconhecimento de seu trabalho está rendendo bons frutos?
Participei de algumas entrevistas e algumas palestras para divulgar o livro, sempre de forma bastante modesta, em que eu contava fatos curiosos e obscuros sobre a história da cidade de Belém por meio de suas lendas urbanas, que tinham a finalidade de despertar o interesse pela leitura e pela história de nossa cidade.
Quanto ao reconhecimento pela arte de escrever, minha vida de escritor tá igual aos projetos da Agência Espacial Brasileira de conquistar o espaço (risos).
Tirando Paulo Coelho, Raphael Montes, Socorro Acioli, e meia dúzia de três ou quatro autores, não há mais nenhum autor brasileiro vivo reconhecido, que viva de sua arte --- no Brasil, quase ninguém mais lê ou compra livros ---, de modo que não se tem como alimentar esperança nessa área. Acho que, brevemente, quem vender 100 livros no Brasil será considerado best seller. E as feiras de livros, que deveriam incentivar a leitura, erram porque não incentivam os autores independentes, de onde surgem os novos autores, que são prejudicados pelos descontos abusivos sobre à venda de seus livros; livros que são bancados com o próprio dinheiro dos autores; e descontos que superam o próprio lucro do autor, que fica para os vendedores e não com aqueles que criam as histórias, fazendo com que os autores não apenas não tenham lucro, mas prejuízo econômico.
Alguns escritores que estão batalhando para alcançar algum renome, alguma marca que possa ser lembrada de suas obras, talvez gostassem de alguns conselhos de um escritor que conseguiu viralizar uma personagem na internet — literalmente, além das fronteiras brasileiras, como foi o caso de sua enigmática Madame Camille Monfort. Você pode lhes dar algumas palavras de como persistir naquilo que fazem, isto é, no ofício com histórias e palavras?
Bom seria mesmo se eu soubesse a fórmula que fez o texto viralizar na internet para que eu pudesse dar uma boa dica. Mas até hoje eu não sei ao certo o que impulsionou a viralização da personagem Camille Monfort, pois o texto sobre ela, apesar de ser um resumo, era considerado grande para os padrões do facebook, onde publiquei primeiro, e cujos usuários costumam não ler “textões”. No entanto, o texto sobre ela foi bastante lido, contrariando totalmente o desinteresse pelos “textões”.
No começo queria que o vampirismo e a violência da personagem fossem mais acentuados. Mas, com o tempo, fui me afeiçoando pela personagem, conhecendo melhor sua história, sua personalidade, seu comportamento, sua grande ânsia de vida e liberdade, e também percebi que no passado era comum que artistas com talentos excepcionais ou com comportamentos fora dos padrões, fossem demonizados, basta citar o violinista Paganini que foi associado a um pacto com o diabo para explicar seu grande talento musical, e a atriz Sarah Bernard que, devido seu talento e seu comportamento extravagante para uma mulher de sua época, foi concebida como uma vampira. Então não é de surpreender que uma personagem com comportamentos tão livres para sua época quanto Camille Monfort tenha sido também demonizada; daí uma das explicações para que tenha sido chamada de vampira por seus admiradores e de matinta perera pelos populares da época. Assim tornei a personagem mais humana, o que fez com que pessoas se identificassem com sua ânsia de liberdade e vontade de quebrar os padrões de sua época, o que a fez ser castigada por meio de boatos e comentários maledicentes do povo, isso criou uma afinidade muito grande com o público feminino. Talvez esteja aí um dos motivos para sua viralização.
Por outro lado, acredito também que um dos motivos para que o texto viralizasse foi que ele captou as características fundamentais das lendas --- o romance Após a Chuva da Tarde é um livro, essencialmente, sobre lendas ---, que, como os mitos, são formas primitivas de contar histórias; talvez exista uma atração inconsciente por essas estruturas narrativas primitivas e misteriosas que mexe com a curiosidade das pessoas ainda hoje; taí outra dica. Mas, por outro lado, penso que se essa fosse a explicação certa, então bastaria alguém obedecer aos mesmos princípios para viralizar qualquer história, de forma que não me convence tanto.
Às vezes chego a pensar que há algo de sobrenatural em tal viralização, pois só assim para explicar como um “textão” causou tanto interesse em um país onde a grande maioria não lê. E há no meu romance uma força emocional muito grande, pois eu o aproveitei para homenagear familiares falecidos --- estão lá os nomes dos meus tios, tias, avô, minha mãe e meu filho ---, de modo que chego a pensar que a personagem aproveitou de toda essa energia para se manifestar e até tomar uma forma visual por meio da IA (feita pelo Philipe Kling David). O que me leva a lembrar do fenômeno que chamo de “O Fantasma na Máquina” que acontecia na década de 70, em que gravadores e televisores eram usados para manifestações espectrais de fantasmas. O que mexe ainda mais com a minha imaginação, já que, como está no livro, Camille Monfort foi inspirada em uma pessoa real que esteve ligada a uma trágica história, de modo que há muitas energias emocionais envolvidas no livro, que chego a pensar que ela se tornou uma egrégora, se alimentando de tanta energia emocional envolvido. Bem, essa explicação é apenas imaginativa, claro, pois sou bastante imaginativo (risos).
Quanto aos que escrevem, tudo que posso dizer a eles é: escreva somente pelo prazer de escrever ou por lhe trazer alguma forma de alívio, porque reconhecimento e dinheiro, dificilmente você terá.
Acredita que a literatura da Amazônia possui bons representantes do terror, do suspense e do fantástico?
Tirando o livro Visagens e Assombrações de Belém, do Walcyr Monteiro, a verdade é que eu não conheço outra obra de outro autor amazônico na área do terror, exceto alguns poucos contos que tenho lido. Mas tenho notado que temas do folclore amazônico têm inspirado trabalhos nessa área, certamente efeito da influência do seriado Cidade Invisível. O que é legal porque ajuda a diminuir nossa síndrome de vira-lata, valorizando nossa cultura em vez da cultura estrangeira. E um povo com senso de identidade cultural é menos propenso a ser explorado por culturas estrangeiras, como acontece com países que foram colonizados, como o nosso. E os gringos têm valorizado nosso folclore --- vide o filme e livro A Forma da Água, de Guillermo del Toro e o seriado Lost, ---; infelizmente o folclore brasileiro foi meio que monopolizado pela versão feita pelo Monteiro Lobato e o Sítio do Pica Pau Amarelo, que infantilizou muito nosso folclore tirando dele o elemento de terror. O que levou os que se criaram com essa versão, ao crescerem, verem no folclore brasileiro algo bobo, infantil, preferindo importar histórias de vampiros, múmias, fadas, duendes, ogros, etc. dos países do primeiro mundo, sem notarem que não precisamos importar tais criaturas, pois temos seres semelhantes e com o mesmo poder de mistério e terror.
Quais são seus autores prediletos? Imagino que um escritor sempre tem alguns cânones em sua mesa de trabalho.
Eu não tenho nenhum autor predileto. Mas se essa pergunta me fosse feita no passado eu diria: Edgar Allan Poe e Guy de Maupassant.
Agora, especificamente sobre seu romance Após a Chuva da Tarde. Pode nos contar algo do processo de criação e organização da obra? De quanto tempo você precisou para finalizar as cerca de 250 páginas de uma história ambientada nos anos finais do século XIX e início do XX na Amazônia? Alguns contratempos? Suponho que não tenha sido fácil concatenar tantos detalhes em um enredo rico como aquele.
O romance levou sete anos para tomar a forma que tem hoje. Eu queria escrever uma história de vampiro em linguagem realista, que se passasse em nossa região, para que os leitores daqui, ao lerem, se sentissem fazendo parte da história pela familiaridade com os lugares que servem de cenário. Para tanto, pesquisei sobre a história da cidade de Belém e de seus monumentos e personalidades importantes do final do século XIX, acrescentei entidades do nosso folclore e da encantaria marajoara e também relatos contados por meus familiares.
Os Sombrios Túneis de Mangueiras de Belém |
Queria criar uma história que mostrasse o quanto a cidade de Belém foi importante, progressista e rica durante o ciclo da borracha, bem mais que outras capitais do país, sem esquecer as mazelas e injustiças sociais da época, com a finalidade de diminuir o preconceito vindo do sul do país com o norte, que contamina até mesmo muitos daqui que se expressam sempre de forma depreciativa quando se referem à nossa cidade; quis mostrar que nossa cidade já teve seu momento de glória e que pode acontecer novamente; quis mostrar também que nossa cultura não é inferior a cultura estrangeira, para isso pus em pé de igualdade a lenda europeia dos vampiros e a lenda amazônica da matinta perera, mostrando que nossas lendas não devem nada às lendas europeias, e que não há do que se envergonhar de nossa influência indígena --- que é sempre usada quando querem ofender os habitantes da região norte ---, pelo contrário, o pensamento dos povos originários em relação a conservação da natureza é atualíssimo e tem muito a ensinar ao mundo, não é um uma cultura primitiva, mas sofisticada: há frutas, por exemplo, como o cupuaçu, que não existia na natureza, mas foram criadas por meio de manipulação genética usada pelos indígenas, e a lenda do guaraná já demonstrava as propriedades medicinais desse fruto, milhares de anos antes da ciência dos “civilizados” descobrirem tais propriedades e transformá-lo em bebida energética.
Creio que com a divulgação da personagem Camille Monfort consegui alcançar um pouco meus objetivos, pois ela tem levado para o mundo um pouco da nossa cultura, tem quebrado a ideia de que na Amazônia não há celular, carro, produtos industrializados, como contam brasileiros relatando as ideias absurdas que os gringos têm de nós e tem também levado pessoas a buscar conhecer a história de nossos monumentos, principalmente o Cemitério da Soledade, e por meio da história dela ficam sabendo que já em 1896 havia um grande teatro, onde óperas famosas se apresentavam em Belém, que era o grande centro de cultura da América do Sul.
Você escreveu um romance policial com pitadas filosóficas anos atrás, o Perversões, que, aliás, possuía um título mais comprido. Mas você me disse, há não muito tempo, que está reescrevendo, não é isso? Existem outros projetos literários já iniciados ou, no mínimo, planejados por você? Alguma previsão de quando poderemos tê-los disponíveis para leitura?
O título completo era Sexo, Perversões e Assassinatos, um romance policial pornô-filosófico cuja ação acontece em meio a casas de swing, filmagens de vídeos pornô, locais de prostituição, sites pornográficos e praticantes de sadomasoquismo. Se baseava na obra do Marquês de Sade e de teses psicológicas e psiquiátricas sobre parafilia (formas de sexo que fogem do convencional) para traçar o perfil psicológico dos assassinos para desvendar os assassinatos. Mas eu acabei me interessando mais pela parte filosófica e psicológica, e o livro acabou ficando técnico e chato (risos). Mas eu estou reformulando-o e vou republicá-lo em breve.
Já devem ter perguntado isso a você, pois muita gente gosta de saber como os escritores fazem o que fazem. Portanto, vou questionar também: como é o seu processo criativo? De onde surgem as ideias para suas histórias? Uma vez, li em algum lugar que alguns autores afirmam que as histórias estão por aí, por todos os cantos, basta sabermos contá-las do jeito certo. É assim mesmo?
Não tem nada demais, é só me interessar por determinado assunto e passo a escrever sem saber como vai terminar, apenas vou registrando o que já foi feito em cada capítulo para que eu não me perca e cometa erros de continuidade. Geralmente, é depois da primeira ou segunda versão, que eu vou tendo uma melhor ideia sobre a trama.
O que você tem em mente com relação ao seu Após a Chuva da Tarde? Teremos um prequel ou sequel da trama, ou Camille Monfort e companhia já mostraram a que vieram?
Pois é, quem sabe Camille Monfort não se manifesta novamente.
Alguém já sondou Bosco Chancen sobre venda de direitos do seu Após a Chuva... para uma versão audiovisual? Porque eu, particularmente, creio que essa história ficaria muito boa em uma tela de cinema ou editada em formato de série para TV ou plataforma de streaming.
Sim, já recebi convites para transformar a história da personagem em filme ou série. Mas a verdade é que as possibilidades são ínfimas, pois quando acontece, o autor e o livro são famosos, premiados, dificilmente isso irá acontecer com um autor independente. É mais fácil o saci cruzar as pernas e o vampiro doar sangue do que essa possibilidade se tornar real (risos).
Obrigado, Bosco. Que venham outros bons trabalhos seus.
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