segunda-feira, 9 de julho de 2012

UM ESBOÇO: AMOR AO PRIMEIRO CRIME (de Bosco Silva)



(uma história de amor entre assassinos. Feita não apenas de corações apaixonados mas também de sangue e tripas. Dividida em partes, como um bom esquartejador faria)

Inspirado no caso recente de Elize Matsunaga, que matou e esquartejou seu marido, o empresário Marcos Kitano Matsunaga.

Com vocês, o conto:

O QUE MAIS ME SURPREENDIA em Elise, era como esta via o crime. Para ela, o crime era uma verdadeira arte: o assassinato, uma composição, como uma obra musical, com sua estrutura melódica, sua harmonia pré-estabelecida, por uma mente que aspirava ao belo até mesmo na destruição, no desvísceramento de um corpo, ou no esfacelamento de um crânio; o roubo, como a concretização de um plano audacioso, pensado em seus mínimos detalhes. O crime era antes de tudo, para ela, uma luta consigo própria, contra os valores, os sentimentos, as ideias impensadas que carregávamos desde o berço, que nos fazia esquecer, de modo errôneo, nossa própria natureza assassina, que aguardava pacientemente quieta apenas um momento para se mostrar às claras. Matar era a salvação para almas que ambicionavam transcender este mundo corriqueiro, fundado na mentira. E para isso, nada como a Sociedade dos Amigos do Crime para sanar todos estes erros. Este era o nome que ela havia dado ao nosso grupo de amigos. Disse-me que havia se inspirado em um livro.    

Lembro-me bem de como a conheci, posso dizer que foi amor à primeira vista. Ou melhor: amor ao primeiro crime.

A CABEÇA

Estávamos, eu e Mão-de-cepo, atrás de um carro; um carro que nos rendesse um bom lucro pro fim de semana. Depenaríamos ele e venderíamos suas peças por uma boa bagatela qualquer. Esperamos então, discretamente, pelo primeiro que chamasse nossa atenção em um sinal de trânsito qualquer. Até que um luxuoso carro preto parou quase em nossa frente, um carro como aqueles de bacanas, com películas nos vidros das janelas como um modo de evitarem não se aborrecerem ao verem as misérias de fora do luxo destes. Nossa primeira impressão foi de que fosse como um daqueles carros blindados que bacanas importantes usam para se proteger. Mas naquele dia estávamos com sorte, pois foi somente impressão nossa. Mão-de-cepo foi em sua direção e ficou bem na frente deste com sua arma na mão apontada direto para a fuça de quem tinha o volante nas mãos. Eu contornei o carro e fui para o lado do motorista com arma em punho, bati na janela com vigor ameaçando atirar se caso este não abrisse a janela logo. Até que “plac”, a porta se abriu, e naquele momento foi como se tudo mergulhasse no mais profundo silêncio, como se eu mergulhasse na mais límpida água; e tudo ao meu redor ficasse em câmera lenta; então vi a mulher mais doce do mundo aparecer em minha frente, linda, com seus cabelos lisos sobre os ombros, com um modo só seu de jogá-los para trás dos ombros... Inesperadamente tudo voltou ao normal. Entramos no carro rapidamente, a joguei para o banco traseiro e fui para o lado desta em seguida, enquanto Mão-de-cepo tomava o volante e seguia rumo a qualquer lugar ermo.
Ao chegarmos a um grande terreno abandonado, amarramos a moça e a amordaçamos. Em seguida, saímos do carro para decidirmos o que iríamos fazer com ela. Mão-de-cepo, como um bandido prático, queria imediatamente matá-la e jogá-la em qualquer barranco daqueles, ou mesmo em um córrego de rio; mas sempre fui o mais sensato, disse-lhe que, pelo carro, deveria ser a filha de algum bacana, um empresário ou mesmo de algum político, como aqueles que roubam nossa grana guardando-a em algum banco no exterior, gastando-a com suntuosos jantares acompanhados de caríssimos vinhos. Nesse momento, Mão-de-cepo sorriu como se a ficha finalmente houvesse caído - ele sempre foi um sujeito lerdo para isso: pensar nunca lhe foi uma qualidade -, então me disse que sim, que poderíamos ganhar algum dinheiro extra sequestrando-a. Tomamos a decisão de pô-la desamarrada no porta-malas do carro. Porém, ao abrir o porta-malas, achamos três grandes malas dentro. Perguntei a ela o que significava aquilo, ela me disse que estava de viagem, que as malas estavam cheias de suas roupas. Aquilo, momentaneamente, confirmou imediatamente o que eu pensava, pois com tanta roupa assim só poderia ser uma filha de algum bacana filho-da-puta. Resolvi então tirar as malditas malas de dentro do carro. Mas as malas pesavam feito chumbo. Notei que até então ela tinha sido uma mulher bastante fria, mas, naquele momento, algo desabou nela. Decidi abrir uma das malas. E qual não foi minha surpresa ao ver surgir assim na minha frente, tête-à-tête, um pé humano, branco como cera. Dei um pulo para traz assustado, soltando um sonoroso caralho. Verifiquei as outras duas malas restantes e percebi que havia outras partes do corpo. Perguntei várias vezes a ela, até que ela me respondeu:
- Tá bom, tá bom, eu confesso, fui eu que o matei.
- E quem o cortou desse jeito?
- Também fui eu.
- Sozinha!?
- Sim.
Demos boas gargalhadas: não acreditávamos que uma mina como aquela seria capaz de tal ato. Nem mesmo eu e Mão-de-cepo seríamos capazes de fazermos aquilo. Gostávamos de fazer as coisas limpinhas, sem manchas de sangue ou miolos grudados nas paredes. Mas a verdade viria imediatamente à tona, quando decidimos despachar o corpo, jogando-o ribanceira abaixo. Ela levantou-se sem temer a arma de meu parceiro, e foi em busca das malas. Corri atrás dela com arma em punho. Quando a encontrei estava vasculhando as malas. Perguntei o que queria. Ela me disse que não poderia deixar a cabeça e as mãos nas malas. E que se tinha que ir, tinha que levá-las. Na dúvida, assenti com a cabeça, calado. E não foi que a louca pôs-se a catar o que havia falado. Mão-de-cepo tomou um grande susto, o negão de quase dois metros de altura ficou branco como uma folha de papel, quando a viu entrar no carro pondo a cabeça e as mãos sobre as coxas.
- Que isso!? – disse ele.
- Se elas ficassem lá, ele seria facilmente identificado – respondeu ela.
Foi quando vimos que o que ela nos havia dito era de fato verdade. A mina era mesmo capaz daquilo, e de muito mais. Quem diria que aquela moça frágil, de beleza delicada, era uma assassina tão fria, como poucas que já vi na vida. E eu, de minha parte, não podia acreditar que, ao vê-la apanhar aquela cabeça com tanta coragem e frieza, já estava terrivelmente apaixonado por ela, ao ponto de tudo isto não ter tido nenhum efeito sobre meus planos. E para piorar ainda mais as coisas para Mão-de-cepo, a mina começou a falar com a gente usando a cabeça como um boneco de ventríloquo, segurando-a pelo cabelo e puxando com sua mão esquerda o maxilar do cadáver. Quando ela aproximou a cabeça do negão, ele quase bateu o carro, soltando um sonoroso “caralho, tira isso daí!”. Nunca tinha visto Mão-de-cepo daquele jeito, já tinha visto o negão encarar a polícia várias vezes, brigar com dois homens ao mesmo tempo, levar facada e usar a mesma faca para matar seu algoz, mas parecia que ele a temia. Que ironia! Temia uma mulher. Ele era do tipo supersticioso. Parou então o carro, e saímos para conversar à beira da estrada vazia, sob um luar escandaloso.
- E agora? O que faremos com ela? A mina é uma assassina, cara. Manteremos ainda o plano de sequestrá-la?
Eu lhe ouvia calado, fumando um cigarro, enquanto Mão-de-cepo continuava esbravejando nervoso:
- Acredita ainda que ela é uma filha de bacana?
O engraçado é que ao saber que ela havia feito aquele crime, isto havia de alguma forma, me aproximado dela; éramos agora como parceiros dividindo segredos, sem que houvesse um acordo prévio. Disse, então, para ele:
- A verdade é que ainda nada sabemos sobre ela. E o fato de ter matado não elimina a possibilidade de ser de família rica.
- Vamos cara, vamos dar logo um fim nisso. Essa mina me causa arrepios. E o cara quem era ele? Pode ter sido algum bacana, cuja a família poderá nos por em cana.
Bem, parecia-me que pela primeira vez na vida a inteligência havia brotado naquela cabeça vazia, pois o que Mão-de-cepo havia dito parecia fazer sentido.
Dei um último trago no cigarro, joguei-o ao longe, e disse:
- É o que vamos descobrir.

Fomos para um motel barato de beira de estrada, daquele tipo que o maior conforto é um velho ventilador rangendo e com as cobertas tão sujas que não devia ser trocadas à dias. Pedimos bebidas e deixamos a mina solta. Ela foi imediatamente ao banheiro, não sem que antes Mão-de-cepo verificasse se havia um meio de fuga. Ficamos a conversar bebendo algumas cervejas que ela pegava da geladeira. E para iniciar a conversa, perguntei a ela se havia sido fácil cortar aquele cadáver. Ela disse-me que quando se sabe o modo certo é tão fácil quanto cortar uma fatia de bolo.
- Modo certo? - retruquei a ela. E ela respondeu-me:
- Sim, quando se sabe um pouco de anatomia. O difícil foi cortar a coluna - finalizou ela.
 Porém esta havia contornado o problema quebrando-a primeiro, após expô-la da carne, com chutes certeiros.
- Mas o mais difícil foi evitar que o sangue respinga-se pelo caminho todo, tive então que esperar que o sangue coagula-se no corpo antes do serviço. A espera durou dez horas - disse-me ela entre um gole e outro de cerveja.
Perguntei-lhe quem era? Ela ficou calada e nada me disse. Até que, de repente, um grito fez-se ouvir dos fundos do quarto, a voz era de Mão-de-cepo. Quando chegamos ao fundo do quarto a geladeira estava aberta, Mão-de-cepo assustado no canto, apontando em direção da geladeira. Quando me aproximei desta logo percebi a causa de tal susto, a cabeça estava na geladeira entre as cervejas, com seus olhos murchos e entre abertos, olhando para fora. Mão-de-cepo repreendeu-a, ela lhe respondeu que tinha que mantê-la conservada. Bem, mas passado alguns minutos tudo se acalmou novamente. Até que para impressioná-la, quando esta veio do banheiro, tive uma ideia estúpida, passei a jogar a cabeça como bola de boliche tentando derrubar algumas garrafas de cerveja que pus no chão. Queria demonstrar-lhe ser tão frio quanto ela. Ela, quando viu a cabeça no chão, tentou imediatamente apanhá-la, dizendo que iria desfigurá-la. Foi quando, ao ver seu interesse, tive uma ideia. Pedi então para que Mão-de-cepo se ausentasse um pouco do quarto. Em seguida peguei a cabeça e ameacei batê-la na parede até que os últimos vestígios de um rosto humano fosse-lhe apagado se caso ela não me dissesse quem era o sujeito. Ela relutou em me dizer. Então bati com a cabeça na parede; um pouco de sangue respingou sobre meu rosto. Ela continuou calada. Bati mais uma vez, desta vez com o rosto virado para a parede. Ela balbuciou algo. Foi quando ameacei mais uma vez bater com a cabeça na parede. Ela, então, finalmente, soltou a língua. Disse-me que o homem era um estuprador, que havia estuprado a filha de um fazendeiro rico, que prometera pagar bem aquele que o houvesse pegado. E a cabeça era a prova disso. Então entendi, finalmente, o cuidado com a mesma. Porém um problema havia agora se formado, como iria dizer a Mão-de-cepo que eu havia me enganado, que a mina não era o que pensávamos.

AS MÃOS

Bem, mas isso eu deixei para depois, o que queria naquele momento era apenas conversar com ela, olhá-la em seus belos olhos negros. E como um sussurro, um segredo, ela havia me dito que aquele tinha sido seu primeiro crime; e que o homem que havia matado também havia lhe estuprado. Aquele segredo me havia acendido; um fogo passou a me queimar depois disso, um fogo de desejo, que eu jamais havia sentido. E lá pelas tantas, passamos a acariciarmos. Minha mão unia-se a sua mão, aquelas belas mãos assassinas. E ambas tornavam-se uma apenas, como nossas almas naquele momento. Despimo-nos e deitamos na cama, ela pôs a cabeça ao lado. E sobre aquela velha e suja coberta transamos em meio ao sangue que ainda saia da cabeça decepada. Nossas secreções uniram-se as anteriores, dos amantes passados, como evidências de novos desejos.
Após o sexo, ela disse-me como tudo havia ocorrido: ela havia seguido o homem até uma boate. Chegando lá, sentou-se ao lado dele, enfrente ao balcão. Ela sabia que o atrairia. E como um golpe certeiro, ele mordeu a isca, passou a olhá-la, pagou a ela algumas doses de bebida e puxou conversa com ela. Ela identificou-se como uma prostituta.  E assim, ficaram por alguns bons minutos. Ele, então, convidou-a a sair...  



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