Volto aos meus quatro
anos. E, de repente, os cegos apareceram. Ou por outra: — antes dos cegos, vi
uma menina, de pé no chão. A menina corre, atravessa a rua e vai beijar a mão
de um padre. Durante toda a minha infância, na rua Alegre, havia sempre um padre
e sempre uma menina para lhe beijar a mão. Mas como ia dizendo: — a pequena,
dos seus sete anos, voltou para a calçada de cá. A batina continuou e sumiu, lá
adiante, na primeira esquina.
A menina sumiu também,
como se jamais tivesse existido. Anos depois, mudamos para a Tijuca, rua
Antônio dos Santos (depois seria Clóvis Bevilacqua). Perto de nós, morava o
juiz Eurico Cruz e, ao lado, o senador Benjamin Barroso. Eis o que quero dizer:
— nos dois ou três anos de Tijuca, não vi um único e escasso padre. Havia uma
igreja — e ainda há — na esquina de Barão de Mesquita com Major Ávila.
Lembro-me da igreja, dos santos e não dos padres.
Fiz o parêntese e volto à
rua Alegre. Depois que o padre dobrou a esquina, os cegos apareceram. Eram
quatro e um guia. Estavam de chapéu, roupa escura, colarinho, gravata, colete,
botinas. Juntaram-se na esquina da farmácia e tocaram violino. Não acordeão,
não sanfona, mas violino. Saí da janela, fiz a volta e fui ver, de perto, os
ceguinhos. Eram portugueses. E o curioso e que, por muitos anos, só conheci
cegos portugueses. Brasileiro, nenhum.
Fiquei ali, na esquina, em
adoração. E os cegos — todos de chapéu — tocaram uns vinte minutos. Lembro-me
bem: — um deles tinha, atravessando o colete de um bolso a outro bolso, uma
corrente de ouro. No fim o guia passou o pires. Cada um pingou seu níquel. E,
então, voltei correndo para casa. Não falei com ninguém, meti-me na cama. Minha
vontade era morrer. Fechei os olhos, entrelacei as mãos, juntei os pés.
Morrer. Minha mãe entrou no quarto; pousou a mão na minha testa: — “O que é que
você comeu?”. Comecei a chorar, perdido, perdido.
E, de repente, uma certeza
se cravou em mim: — eu ia ficar cego. Deus queria que eu ficasse cego. Era
vontade de Deus. Mas falei em quatro anos. Engano, engano. Eu tinha seis anos e
não quatro. Nasci em 1912 e isso aconteceu em 1918, na espanhola e antes da
espanhola. Tenho certeza: — seis anos. Nunca mais me esqueci dos cegos e posso
repetir, sem medo da ênfase: — nunca mais. Mas por que, meu Deus, por que
pensava neles, dia e noite? Pode parecer uma fantasia de menino triste. E se
disser que, já adulto, homem feito, a obsessão continuava intacta? Obsessões,
sempre as tive. Mas essa nunca me abandonou. Aos trinta anos, 35, quarenta, eu
sonhava com os cegos; e os via escorrendo do alto da treva.
Quando minha família já ia
sair de Aldeia Campista para a Tijuca, aconteceu o seguinte: — um menino, que
brincava muito comigo, apanhou um canário e picou com o alfinete os olhos do
passarinho. Eu me senti, eu, aquele canário de olhos furados. E me imaginei
cego, em casa, vagando por entre mesas e cadeiras. Meninas, senhoras, visitas
teriam pena de mim, amor por mim. Na rua, diriam: — “Naquela casa, mora um
menino cego”.
Mas quando mudamos para a
Tijuca, já não estava tão certo se seria mesmo eu o cego. Podia ser minha mãe,
ou um dos meus irmãos. Talvez Roberto. Milton, não, nem Mário. Sempre imaginei
que meu pai, jornalista de fúrias tremendas, morresse, um dia, assassinado. Já
minha mãe tinha um problema de visão. Mas fosse eu, minha mãe, meu irmão,
alguém ficaria cego, alguém. Eis a verdade: — ano após ano, me convencia de
que os cegos do violino insinuavam um vaticínio. Meu Deus, não fora por acaso
que, um dia, quatro cegos tocaram embaixo de minha janela, ou pertinho de minha
janela. Tocavam para mim, não para os outros, não para ninguém, tocavam para um
menino de seis anos.
Até os dez anos, doze, não
tive medo da treva. Houve um momento em que teria a vaidade de ser o único
menino cego da rua Mas o tempo foi passando. E o pavor veio com a idade.
Adulto, eu não fazia mistério: — “Se eu ficar cego, meto uma bala na cabeça”.
Não “uma bala na cabeça”; daria um tiro no peito como Getúlio. Ah, Getúlio
estourou o coração mas preservou sabiamente a cara para a História e para a
lenda. Pelo vidro do caixão, o povo espiou o rosto, o perfil intactos. Kennedy,
não. A bala arrancou-lhe o queixo forte, crispado, vital. Tiveram que fechar o
caixão. O povo precisa ver o seu líder morto. Nada, nem medalha, nem estátua,
nem cédula, nem selo substitui o último rosto, o rosto morto.
Muitos anos depois,
conheci Lúcia. Lembro-me de que, numa de nossas conversas, falei-lhe assim: —
“Desde criança, tenho medo de ficar cego. Mas se isso acontecesse, eu...”. Fiz
a pausa e completei: — “...eu meteria uma bala na cabeça”. Isso era e não era
uma agressão sentimental, uma espécie de terrorismo. Afinal, o amoroso é
sincero até quando mente. No fundo, no fundo, as minhas palavras queriam dizer
outra coisa, ou seja: — “Mesmo cego, eu viveria se você me amasse”. Por outro
lado, sei que não é normal essa fixação numa fantasia infantil. Mas não tenho
medo de confessar a minha morbidez, nem ela me envergonha. Eu a compreendo e a
recebo como uma graça de Deus.
Mas estas notas não
estariam completas, se eu não lhes acrescentasse uma explicação. Quero dizer
que o medo de uma cegueira utópica, apenas sonhada, me tornou humanamente
melhor. Ou, se não me tornou melhor, me deu a vontade obsessiva de ser bom.
Mas, como ia dizendo, continuou o meu romance com Lúcia. Pouco a pouco, fui
dizendo as coisas que são tudo para mim: — “Todo amor é eterno e, se acaba, não
era amor”. E dizia: — “Quem nunca desejou morrer com o ser amado não amou, nem
sabe o que é amar”. As nossas conversas eram tristes, porque o amor nada tem a
ver com a alegria e nada tem a ver com a felicidade. Quando nos casamos, eu lhe
disse: — “Nem a morte é a separação”. Ela concordou que nada é a separação.
Depois, a gravidez. Ah,
quando eu soube que ela só podia ter filho com cesariana. Não me falem em fio
de navalha. O fio da navalha é um título de romance ou de filme. Mil vezes mais
frio, e diáfano, e macio, e ímpio, é o fio do bisturi da cesariana. O marido,
cuja mulher só pode ter filho com cesariana, terá de amá-la até a última
lágrima.
“Se for menina, o nome é Daniela”, disse
Lúcia. Achei um nome doce e triste (gosto dos nomes tristes) de personagem de
Emily Brontë. Uma noite, Lúcia foi internada, às pressas, na Casa de Saúde São
José. Parto prematuro. Minha mulher chega com dr. Cruz Lima e d. Lidinha. Dr.
Marcelo Garcia e dr. Silva já estavam lá. Foi uma correria de médicos,
enfermeiras, irmãs. Dr. Waldyr Tostes ia fazer o parto.
Naquela noite, pensei
muito no staretz Zózimo. Sim, na sua bondade absurda, senil e terrível do
personagem dostoievskiano. Há um momento em que somos o staretz Zózimo. Dr.
Marcelo Garcia era o staretz, e o dr. Silva Borges, e o dr. Waldyr Tostes. Dr.
Cruz Lima também era o staretz Zózimo. Tudo aconteceu numa progressão
implacável. Daniela nasceu e não queria respirar. Dr. Marcelo Garcia fazia
tudo para salvar aquele sopro de vida. De manhã, quase, quase a perdemos. A
irmã, desesperada, batizou minha filha no próprio berçário. Dr. Cruz Lima,
dr. Marcelo, Silva Borges lutaram corpo a corpo com a morte. Mudaram o sangue
da garotinha. E ela sobreviveu.
Lúcia quis ver a filha no
dia seguinte. E veio numa cadeira de rodas, empurrada por d. Lidinha. Voltou
chorando, e dilacerada de felicidade. Também fui espiar Daniela pelo vidro do
berçário. Uma enfermeira aparece e me pergunta, risonhamente: — “O senhor é o
avô?”. Respondi, vermelhíssimo: — “Mais ou menos”. Mais uma semana, Lúcia e
Daniela vinham para casa. Tão miudinha a garota, meu Deus, que cabia numa
caixa de sapatos.
Dois meses depois, dr.
Abreu Fialho passa na minha casa. Viu minha filha, fez todos os exames. Meia
hora depois, descemos juntos. Ele estava de carro e eu ia para a tv Rio;
ofereceu-se para levar-me ao posto 6. No caminho, foi muito delicado, teve
muito tato. Sua compaixão era quase imperceptível. Mas disse tudo. Minha filha
era cega.
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