quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

TEU GOSTO (de Haroldo Brandão)

by Saul Leiter

“Ahh quisera esquecer a moça que se foi 
Do norte que perdi
Da morte que se foi”
(Milton Nascimento)
            
              Na primeira vez, já faz tempo
              Era só uma brincadeira
              De parceria e parceira
              Saímos na noite improvisadamente,
              Espalhando bom humor e beijos tão somente.
               Na segunda vez já tão sério,
               Comecei a viajar plenamente
                              Então...
               No céu da minha mente,
               No teu céu,
               De noite e aéreo,
               Aterrisei infelizmente.
               Nas últimas vezes,
               Fiquei com teu gosto
               Que não mais saiu de mim
          
                Quando finalmente deixou minha boca 
                Foi para virar memória
                E ficar no que tenho de mais profundo:
                Minha pele.
                Há no meu corpo um incêndio
                Que queima em esperança
                Corre em meu corpo um veneno
                Veneno que tem teu nome! *
                 Sigo então sem segredos...
                 E sem nexo
                 O gosto trás o desejo,
                 De um futuro não tão certo,
                 Uma lembrança tenho certeza
                 É o olor do teu sexo.    
 
                  
 
                   * Versos de  Ferreira Gullar

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

NEM O FIM, NEM O COMEÇO (de Ageu Pazoud)

by Moacir Arte Bruta

Nem parece que um dia
desses qualquer,
quando se vê um bilhete
da sorte rolar em sua frente,
pois a sorte é assim mesmo...

Nesse dia qualquer, deve-se
encontrar, ou simplesmente
reencontrar desesperado
e de nunca mais admitir
uma separação.
O beijo de último instante presente,
à vista, que flutua, pois jogado
em sua direção, empurrado
por um sopro misturado
a sexo, drogas, ou de tudo ao mesmo tempo
ali, naquele instante:
passageiro,
corriqueiro,
aceso o cigarro, e apagando em seguida
assim: rapidamente passastes.
ainda que murchando
ainda que nunca o tenha
se aproximando, nem
o fim, nem o começo.
a flor ali continua
impressa em livro
murcha e mais viva
mais bela pelo que guarda
sem mais, apenas bela.


terça-feira, 13 de dezembro de 2011

SOBRE A NOÇÃO DE FELICIDADE (de Bosco Silva)



Dentre os vários modos de interpretar o homem, entre seus vários matizes, um me parece como um dos mais importantes e reveladores de sua natureza: o homem é um ser incompleto. Tal incompletude que se manifesta, de modo mais drástico, durante o nascimento, tem como forma a dor. Pois, ao chegarmos ao mundo externo, um de seus primeiros elementos que conhecemos é a dor física. O que geraria, aquilo que para alguns psicólogos é conhecido como o “trauma de nascimento”, já que ao sermos expulsos do paraíso uterino, tal expulsão é acompanhada de intensa agonia física e psicológica. E isto, não se aplica apenas ao parto natural, mas a toda forma de nascimento. Embora em algumas formas, tal agonia seja menos intensa.
 O psicanalista Otto Rank (1884 – 1939), após longo período de observação de casos extremos de angústia, notou que tais indivíduos reagiam de modo bastante semelhante a certas reações que os fetos teriam durante o nascimento. O que o levou a afirmar que o trauma de nascimento seria a fonte de toda angústia que o indivíduo sentirá ao longo de sua vida. Já que ao se deparar com situações de mudança, separação, etc., semelhantes aos sentimentos vividos durante o nascimento, o indivíduo por meio de tais situações traria à tona todas as lembranças originadas de tal trauma. Originando, deste modo, sentimentos de temor em relação à vida e a morte. Pois, toda novidade que quebrasse a segurança da rotina, seria associada a um certo temor pela quebra de uma situação a qual o indivíduo já se acostumou, ele teria medo inconsciente de nascer. Já no caso da morte, o temor desta, se originaria não apenas da ideia de seu fim, mas também da ideia do indivíduo perder sua individualidade, de deixar de se sentir um ser único, sendo absorvido pelo ambiente em que vive.
A sensação de aperto, de compressão da parede uterina, de quebra do equilíbrio de temperatura e luminosidade, etc., dadas imediatamente anteriores ao nascimento, durante e posterior ao mesmo, iniciariam toda uma série de dores que marcará o individuo por toda sua vida. Bem como as primeiras sensações de carência e de necessidade, uma vez que ao sairmos do útero materno, o fornecimento de oxigênio, de alimento, e de outras substâncias, anteriormente fornecidas diretamente pelo corpo materno, são quebradas. O que, aliás, originaria, não apenas carência e necessidade, como também sensação de esforço na tentativa de suprimi-las. Dadas no ato de engolir, respirar, etc.
A vida anterior ao nascimento, a vida intra- uterina, seria, portanto a forma mais próxima de uma completude. Estado esse desejado de forma inconsciente por todas as pessoas, e procurado de forma metafórica, pelas religiões, pelas artes, ou pelas realizações e relações pessoais. Ao contornar, por exemplo, o filho, com os braços para acalmar-lhe a inquietação, não estaria a mãe recriando para o filho o conforto e proteção do tempo em que esta lhe transportava no ventre? O mesmo não se daria nos momentos de pânico, em que pessoas seriam acalmadas pelo mesmo ato? 1
Falar de felicidade é falar dessa completude ou de sua contrária, da sensação de que nos falta algo. Sensação que o personagem Aristófanes no “Banquete” de Platão soube bem interpretar de modo alegórico. Aristófanes argumenta que os seres humanos descendem de uma espécie antiga de seres duplos com duas cabeças e oito membros. Tais seres pertenceriam a três formas de sexo: os que seriam formados por duas partes masculinas, os que teriam duas partes femininas e os andróginos que seriam formados tanto pelo masculino quanto pelo feminino. Após uma tentativa de rebelião contra os deuses. Zeus, o deus dos deuses, decide castigá-los. Depois de uma longa meditação, Zeus decide cortá-los cada um em dois, tornando-os mais fracos e também mais úteis, aos deuses, pelo fato de terem se tornado mais numerosos. E assim fez Zeus. E a partir desse momento, cada metade procurará ansiosamente pela outra. Gerando desse modo o amor. Os que possuíam as duas partes femininas, ou masculinas, tornaram-se as lésbicas e os homossexuais masculinos. Os andróginos, as mulheres e homens héteros.
Tal alegoria, embora tomada apenas no sentido amoroso, evidencia de modo claro a condição humana: sua incompletude. E toda atividade humana está voltada para o preenchimento deste vazio. O amor, por exemplo, seria a tentativa de preencher este espaço, de nos tornarmos mais completos, de obtermos o que nos falta. Mesmo o amor sensual, que pela conjunção dos corpos, obtém o que a cada corpo falta: o poder da procriação.     
Com o nascimento, portanto, começaria a busca da felicidade. Ou melhor, da tentativa de retornar a mesma, ao mesmo estado. O que se evidencia até por meio das palavras: palavras como ventura, contentamento, sucesso, fortuna, sorte, que em geral são usadas para significar felicidade, dão origem as suas contrárias: infelicidade, desventura, descontentamento, insucesso, infortúnio, má sorte 2. De fato, seria como se originalmente todo ser humano fosse feliz e a infelicidade uma condição posterior a essa. Não seria isto uma alusão a vida antes do nascimento?
 Palavras como angústia e ansiedade que em geral denotam estados de infelicidades, possuem origens sugestivas: a palavra angústia, por exemplo, se origina da palavra latina angustia que significa originalmente estreiteza. Ansiedade tem como origem a palavra latina anxietas que possui a mesma origem que angere, que em latim tem o significado de estrangular. Angere origina, por sua vez, angoisse (angústia em francês), anger (ira em inglês ou uma mistura de desprazer e antagonismo) e angst palavra alemã significando um misto de temor, aversão e ansiedade3. As palavras angústia (significando em sua origem latina: estreiteza) e ansiedade (estrangulado) não seriam, portanto, ideias inconscientes das torturas do nascimento?
 Todos queremos ser felizes. Pois, como diz Pascal: “Todos os homens procuram ser felizes. Isto é sem exceção. Quaisquer que sejam os diferentes meios que empregam para isso, todos tendem para esse fim. O que faz que uns vão à guerra e outros não é este mesmo desejo que está, nuns e noutros, acompanhado de diferentes modos de ver. A vontade nunca dá nenhum passo, por pequeno que seja, a não ser para este objetivo. É o motivo de todas as ações de todos os homens, até mesmo dos que se vão enforcar (...)” 4. Isto é, todos, consciente ou inconscientemente tendem para a felicidade, para esta completude. Cada qual à sua maneira definem o bem que lhes agrada, o que acham o melhor para si, mesmo àqueles que possuem desejos tão diferentes, como os masoquistas, ou os suicidas, que ao escolherem “um mal menor” a outros, exercem seu último poder de felicidade.
   O filósofo grego Aristóteles, argumentava que o bem é “aquilo que todos desejam”, isto é, o bem não é algo imposto de fora, mas a realização da natureza individual. Todo ser tende a realizar suas potências, suas possibilidades de que são capazes. A realização plena de suas potências é seu bem, seu fim, sua felicidade.
   As virtudes seriam o meio de se chegar à felicidade, à nossa completude como humanos. E cada virtude seria o meio termo entre dois excessos, que são definidos como defeitos. Assim, a coragem seria o meio termo entre a covardia e o perigo excessivo. A dignidade entre a baixeza e a arrogância, etc. Porém, como escolhermos de modo preciso o meio termo de cada ação? Não possuímos réguas e compassos tão precisos.
   Ao contrário de Aristóteles, a doutrina cristã vê o bem como algo que nos é imposto de fora, como algo que não decorresse naturalmente de nós próprios, que devemos praticar, para podermos ser felizes. E a felicidade como a recompensa por nosso comportamento. Comportamento esse muitas vezes exigido com sofrimento, tanto que os ideais de felicidade católicos são os santos martirizados.
   Embora a doutrina cristã seja contrária a aristotélica, ambas veem a felicidade como uma completude. Pois, assim como todos os seres tendem a um fim, o homem tende a Deus, como a sua completude, apesar de muitas vezes, segundo esta doutrina, não ter consciência disso, e troque “erroneamente” um bem mais valioso (Deus) por um menor, o prazer momentâneo, por exemplo.
   O certo é que cada um procura completar-se a seu modo, segundo sua própria natureza, uns procuram dinheiro, drogas, sexo, poder, prazer, etc. E no final, após terem conseguido o que queriam, surge novamente o vazio. E acabam descobrindo que tudo é momentâneo, tanto o momento feliz quanto a dor. E que além da busca e de pequenas parcelas de felicidade, bem como da ilusão de tê-la adquirido, foi tudo que lhes restaram.
   Muitos argumentam que somente a religião cristã traria a verdadeira felicidade. Tal afirmação não é por acaso, já que esta possui um elemento potênciador de nossa felicidade: a idéia idílica de um paraíso. Tal ideia manteria a esperança e a calma na vida humana. O que tornaria compreensível a resistência e a revolta contra todos aqueles que tentam negar ou tornar mais razoável o pensamento religioso. Porém, a palavra paraíso, se origina de dois termos persas: pairi, significando circundante, e daeza, parede. Ou seja, parede circundante, o que se assemelha bastante ao ventre materno. E, portanto, a queda de Adão e Eva do paraíso, o pecado original, não seria uma ideia inconsciente ao parto de toda a humanidade, da perda da felicidade e da graça de todo individuo ao nascer? 5
   “A fascinação que os ocidentais têm pelo castigo e pela redenção não seria uma pungente tentativa de dar sentido ao estágio 2 [das contrações e expulsão do bebê do útero]? Não seria mais lógico ser punido por alguma coisa – não importa quão implausível, como o pecado original – do que por nada?"6. Ou seja, o feto nada fez para merecer as dores e os castigos do nascimento, o que levaria mais tarde as tentativas inconscientes de dar sentido a tais sofrimentos por meio de alegorias e metáforas religiosas, como as do pecado original. E isto não se aplica apenas a religião, mas também a experiências próximas da morte.    
    Em muitos relatos de experiências de quase-morte, relatadas em várias culturas diferentes, em que pessoas descrevem seus corpos flutuarem em meio a um túnel tendo do outro lado uma luz brilhante e suave, e, na maioria das vezes, uma figura disforme a esperá-las, do outro lado. Não seriam lembranças, que por algum motivo são ativadas em tais situações, das experiências do nascimento? Assim, a sensação de flutuarem deve-se a lembrança do tempo que estes flutuavam no líquido amniótico. Do túnel, ao canal de passagem para o mundo exterior. A luz suave e brilhante, a luz do ambiente exterior. O fato de ser uma lembrança, explicaria também o caso da luz, diferentemente no nascimento, não ofuscar nem ferir a vista. E, finalmente, a figura disforme seria a primeira impressão de uma figura humana vista por um bebê.
    Estudos feitos pelo psiquiatra Stanislav Grof, com a droga LSD, demonstraram que pessoas sob seu efeito, reproduzem sensações não apenas imediatamente posterior, como imediatamente anterior ao nascimento. “Ele relata grande quantidade de pacientes que, após um número adequado de sessões, de fato reviveram, e não apenas recordaram, experiências profundas, ocorridas há muito tempo e consideradas inacessíveis a nossas memórias imperfeitas, relativas ao período perinatal [em torno do nascimento]. Essa, na verdade, é uma experiência muito comum aos usuários de LSD, não se limitando de modo algum aos pacientes de Grof”, como relata Carl Sagan7.
    Experiências extracorporais, como a descrita acima “são induzidas por anestésicos dissociativos como cetaminas [...]. A ilusão de voar é induzida pela atropina e outros alcalóides da beladona, e essas moléculas, obtidas, por exemplo, das sementes da mandrágora, têm sido usadas regulamentes por feiticeiras européias e curandeiros norte-americanos para experimentar, em meio ao êxtase religioso, vôos gloriosos e sublimes. A MDA tende a induzir à regressão da idade, proporcionando acesso a experiências da infância e da mocidade que julgávamos inteiramente esquecidas. A DMT induz à micropsia e a macropsia, respectivamente a sensação de encolhimento ou expansão do mundo”8. Não seria, portanto, possível que substâncias naturais presentes no cérebro humano, em situações extremas, como as de quase-morte, ativassem lembranças em torno do nascimento? O interessante é que o LSD é bastante semelhante quimicamente a uma substância usada para provocar as contrações do parto, a oxitocina. O que reforça ainda mais o que é dito acima.
    Tantas coincidências seriam por acaso? Teriam as religiões, que são sistemas que prometem felicidade eterna, origens nas tentativas de retorno a felicidade intra-uterina e também na tentativa inconsciente de dar sentido a expulsão da mesma? Sempre há motivos para descrença, mas seria impossível negar a influência do nascimento em nossas vidas.

     FONTES:
1. Dicionário da Vida Sexual / vol 5 - Nova Cultural
2. Revista Claudia n012 ano 38
3. Dicionário da vida sexual / vol 5 – Nova Cultural
4. Pensamentos / Blase Pascal
5. Dicionário da Vida Sexual / vol 5 – Nova Cultural
6. O Romance da Ciência / Carl Sagan
7. Idem
8. Idem

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

UM BELO ENCONTRO COM A MORTE (de Bosco Silva)



UM BELO ENCONTRO COM A MORTE
Dedicado a todos os mortos e moribundos.
Se o coração é um músculo sempre pronto a abarcar as mais loucas experiência; o cérebro é uma bolha de sangue, sempre preste a explodir...
Às dez horas da manhã o telefone toca. Ainda sonolento Valdomiro o atende, em meio a bocejos e a contração de suas pálpebras contra a luz, que incide pelas frestas da janela:
- Alô.
- Valdomiro, um cliente irá encontrá-lo às 16 horas no bar da esquina. Seu nome é Benito. Identifique-se segurando um terço nas mãos.
- Um terço?! De quem foi esta ideia estúpida, sua?
- Não. Por favor, não perca a hora.
- Mas onde encontrarei um maldito terço nessa cidade? Em algum prostíbulo?
- Tenho certeza que isto não lhe será problema.
- Tá bem. Tá bem. Estarei lá a tempo.

Valdomiro possui um emprego nada convencional, mas ama o que faz; e tem certeza que muitos o odiariam, ao saberem do que faz para sobreviver; mas, por outro lado, tem certeza, também, que muitos o contrataria. Afinal de contas alguém tem que pegar na sujeira, e poucos estão dispostos a isso: muitos nem limpam a própria bunda.
Valdomiro, em seguida, levanta-se e vai ao banheiro. E enquanto toma banho, pensa:
“Onde irei encontrar um maldito terço nesta parte da cidade. Seria mais fácil encontrar uma virgem nestas espeluncas, frequentadas por velhas prostitutas. E o que tem haver terço com bar? Definitivamente, os dois não combinam.”
E por um momento, uma ideia surge em sua cabeça:
“Sim, embora bar não combine com terço, mas virgem e terço combinam com igreja. E certamente deve haver alguma aqui por perto.”
Valdomiro vestiu suas roupas e, não querendo perder tempo em busca incerta, foi imediatamente atrás de uma igreja. Pegou um ônibus, e foi para o centro...
Perguntando aos transeuntes, descobriu uma a duas quadras de onde estava. Entrou, olhou, e não viu ninguém dentro da igreja, exceto um padre que passou em sua frente ostentando o que mais cobiçava, naquele momento: um terço.
O padre dirigiu-se para o confessionário, onde Valdomiro pôs-se imediatamente em direção. Valdomiro, entrou, sentou-se, e disse:
- Perdoe-me, padre, eu pecarei.
- Não, meu filho, você quis dizer: eu pequei – disse o padre.
- Não, padre, estou certo.
- Mas, meu filho...
- Já disse: estou certo – disse Valdomiro em um tom irônico, apontando-o um revólver, enquanto o padre olhava-o espantado. - Isto é um assalto, passe o terço, somente o terço, não se preocupe.
O padre entrega o terço alarmado e, certamente, nunca ouviu falar em tal espécie de roubo; e, antes de Valdomiro sair, o padre ainda recomenda-o que reze dez ave-marias e sete pai-nossos; isto, com certeza, deve ter deixado o velho padre confuso; mas, finalmente, Valdomiro obteve o que queria.  

* * *

 Eram duas horas da tarde. Valdomiro precisava encaminhar-se para seu encontro. Pegou, então, o próximo ônibus, e partiu de volta.
Chegou ao bar com uma hora de antecedência. Pediu algo para comer e sentou-se ao lado do balcão, esperando seu cliente, com o terço nas mãos.
Ficou a imaginar como ele seria. Valdomiro já tinha em sua mente um padrão psicológico de seus clientes, eram pessoas decididas, egocêntricas, ambiciosas e extremamente egoístas; mas suas aparências não obedeciam a nenhum padrão. Havia clientes da classe mais baixa que, de qual quer modo, arrumavam dinheiro, à classe mais alta, sendo esta a que mais o procurava. Havia também mulheres, muitas mulheres que o procuravam, de todas as raças, de todos os níveis sociais, de todos os credos, desde aquelas com uma linguagem requintada, às que nem sabiam ler. Muitos lhe procuravam, principalmente, para esquecer seus maridos e esposas.
O terço em suas mãos o incomodava, sentia-se como se estivesse pagando penitência, ou como um carola, que Valdomiro cansou de ver em sua infância. Ele odiava todos eles, pois odiava, acima de tudo, a hipocrisia; viu muitas vezes agirem de má fé, com maldade mesmo, e depois se escondiam atrás de uma capa de religiosidade. Muitos eram seus clientes, que após precisarem de seus serviços se gabavam de sua moralidade, taxando os outros de imorais. Eles eram os moralmente saudáveis!
Alguns fregueses olhavam com curiosidade para o terço em suas mãos; alguns chegavam mesmo a comentar algo, com risinhos estampados em seus rostos, mas Valdomiro continuava impassível, coisa de profissional, de alguém que respeita seu ganha-pão.

* * *

Já eram cinco horas, e nada do sujeito chegar, até que alguém surge no bar olhando discretamente para os fregueses, que se encontravam sentados ao lado de suas respectivas mesas. O sujeito, após examinar, discretamente, os fregueses, encaminha-se em direção ao balcão. Encosta-se no mesmo, pedindo algo para beber, e olha Valdomiro fixamente. Paga, aproxima-se, e diz:
- Que belo terço!... Por acaso, você conhece algum Valdomiro?
- Isso vai depender de como te chamas!
- Sou Benito.
- Eu, Valdomiro.
- Bem, temos que encontrar um local mais conveniente para conversar.
Valdomiro entra no carro do tal sujeito, e se dirigem para um motel.
Ao entrarem no quarto, Benito tira a gravata e o paletó, e chama Valdomiro para a cama, para junto de si, para a intimidade de sua companhia, espalmando levemente com a mão a mão dele; e, em seguida, apontando para o centro da cama; o qual atende prontamente. Benito põe uma pequena maleta sobre a cama, abre, e olhando fixamente nos olhos de Valdomiro, diz bruscamente:
- Roberto Seixas é o homem que quero que mate. Estas são as fotos da casa dele, com o endereço no verso.
- E as fotos do sujeito?
- Não tive tempo de tirá-las.
- Então como irei identificá-lo?
- Ele estará sozinho, hoje, em sua casa.
- Como tu sabes com tanta certeza?
- Conheço-o bem, era meu amigo. Sua esposa e filha estão viajando. Tínhamos negócios em comum, uma sociedade. Ele me roubou. Preciso agora que o dinheiro retorne para mim. Você sabe!
- Tem que ser hoje?
- Sim, pois ele estará sozinho.
- Geralmente eu gosto de estudar o caso; vigiar um pouco o sujeito; conhecer seus hábitos, seus horários; para que tudo possa dar certo.
- Mas eu preciso que seja hoje, tenho pressa.
- Qual o melhor horário?
- Entre meia-noite e uma hora. É quando a vizinhança está calma, e o carro do lixo já deve ter passado.
- E o pagamento?
- Metade está aqui na maleta, e a outra metade após ter finalizado. Ok?

Após alguns segundos pensativos, Valdomiro, finalmente, responde:
- Ok. Aceito. Estarei lá neste horário. E mais uma coisa: por que o terço? A ideia foi sua?
- Sim, era como se você estivesse rezando pelo sujeito, uma última homenagem. É uma boa forma de se identificar, você não acha? – com Benito estampando um leve sorriso em seu rosto.

* * *

Às vinte horas, Valdomiro passa pela frente da casa do sujeito, e fica vários minutos a olhá-la. De fato, não havia ninguém em casa, pelo menos aparentemente. A vizinhança era extremamente calma, com vizinhos indiferentes e discretos. E pelo que Benito tinha lhe dito, o ponto fraco da casa era a janela dos fundos, que este cuidadosamente teve o cuidado de danificar todas as trincas, numa última visita ao ex-amigo, fingindo uma reconciliação. E com a planta da casa, que Benito tinha lhe dado, o serviço lhe parecia bastante fácil.
Valdomiro voltou então para sua casa para preparar as armas, se exercitar um pouco e descansar esperando a hora certa para entrar na casa.
Ele tinha verdadeiro amor pelo seu trinta e oito; dir-se-ia mesmo que confiava mais nele do que em seu próprio pênis, pois aquele nunca tinha lhe deixado na mão. Tinha matado vários homens com ele, e ele sempre estava lá, quando precisava.
Valdomiro fazia parte de uma longa casta de assassinos profissionais. De sua família, vários tinham se dedicado a tal ofício, incluindo seu pai e avô; e com eles tinha aprendido muito, muito mesmo, sobre seu ofício; principalmente a não se envolver com a vítima; isto era de fundamental importância, principalmente na hora de puxar o gatilho.

* * *

Valdomiro chegou a casa por volta da meia-noite. Tudo estava calmo, como se a noite conspirasse com seu plano. Nem uma alma na rua, nem mesmo cães latiam. Entrou, então, pelos fundos, e foi direto para a janela, como combinado.
Através da planta da casa, Valdomiro sabia agora todos os seus detalhes, pois passou as últimas horas estudando-a exaustivamente. Sabia que deveria procurar o tal sujeito no primeiro quarto do andar de cima; mas, como era um homem cuidadoso, deveria deixar este por último.
Entrou na casa, pelo andar de baixo, verificou primeiro a cozinha, que estava uma bagunça, com prateleiras abertas, talheres e panelas pelo chão, parecia que ali teria havido luta; Valdomiro achou estranho, mas continuou com seu ofício verificando o banheiro; em seguida, os dois quartos de baixo, um ao lado do outro, que também se encontravam imersos em uma extrema bagunça, com roupas espalhadas pelo chão e gavetas abertas, como se alguém antes dele tivesse tido ali procurando algo, e seguiu para a sala. Ao chegar à sala, com a sala em meio a uma luz difusa, que vinha das luminárias da rua, por meio dos vidros das janelas, o que fez com que suspendesse o uso temporário de sua lanterna, Valdomiro teve uma grande surpresa: um homem sentado com um copo na mão parecia que lhe aguardava. Valdomiro olhou-o e apontou-lhe o revólver, e disse:
- Quieto! Isto é um assalto!
O homem não esboçou a menor surpresa; dir-se-ia, melhor, que estava petrificado, como uma estátua.
- Estás só? – disse em seguida Valdomiro.
- Sim.
- Qual o seu nome?
- Roberto.
- Seixas?
- Sim.
E ao focar-lhe com a luz de sua lanterna, Valdomiro teve a segunda grande surpresa da noite: o homem que estava ali era Benito. Então, este lhe diz:
- Já estava a duas horas impaciente a esperar-lhe. Pensei que não vinhas!
- O que é isto? Uma cilada? Diga?! – disse Valdomiro assustado, olhando para os cantos e verificando que a sala também estava uma bagunça.
- Não. Veja, eu realmente me chamo Roberto Seixas – tendo este dado ao Valdomiro um documento. - Benito foi um falso nome, mas todo o resto é verdadeiro.
- Então, o que queres?
- Quero que me mate.
- Por quê?
- Tenho câncer, e pouco mais de três meses de vida.
- Por que então não deixa que simplesmente aconteça?
- Não quero mais sofrer tanto. A dor e o desconforto já começam a aparecer.
Valdomiro, com a arma em punho, com todos os anos de matador nas costas, não podia acreditar no que ouvia, e pôs-se a lembrar todo seu encontro com aquele homem que lhe implorava por tirar-lhe a vida.
- Ah! Por isso pareceu-me tão fácil: uma casa sem alarme; sem grade na janela; sem cerca eletrificada; sem cães e vigias noturnos.
- E por que, então, você não se mata? – inquiriu Valdomiro com um leve tom de ironia.
- Porque, além de tudo, sou um covarde – disse o homem entre lágrimas.
- E tem que ser aqui, na sua casa?
- Quero que pareça um assalto. De modo algum um suicídio, pois pretendo que meus familiares recebam o seguro.
- Ah! Por isso a casa está uma bagunça!
- Sim, simulei a cena de um assalto.
- Entendo, quando se encara a morte de frente tudo muda de sentido – com Valdomiro guardando a arma enquanto falava.
- Você tem visto horrores, não Valdomiro?
- Sim. Muitos.
- E o horror pela vida? Você tem sentido?
- Eu...
- A primeira vez que descobri meu profundo horror pela vida - devia ter meus dez anos de idade - foi quando observei um terrível incêndio em um prédio. Foi como um soco em minha alma! Vi as pessoas correndo desesperadas para o topo, como ratos abandonando o navio preste a ser inundado, para descobrirem ao chegarem ao topo, que havia apenas duas alternativas para elas: morrerem queimadas ou saltarem diretamente para a morte. Todas, levadas pelo irresistível instinto de sobrevivência, tentavam o mais que podiam afastar a primeira possibilidade, para depois descobrirem, desconsoladas, que o melhor que podiam fazer seria uma morte rápida, com menos dor. E assim como os ratos, saltavam do topo do prédio. Isto foi um verdadeiro ensinamento para mim, pois descobri, vendo aquilo, que tudo o que podemos fazer, verdadeiramente, na vida é escolher, entre as várias possibilidades, o que consideramos ser o menos pior para nossas vidas. E mesmo após terem-se passados muitos dias, e mesmo anos, fico ainda horas inteira a pensar naquelas vidas...
Em um momento mais calmo, já sentado em uma poltrona, Valdomiro responde:
- Sei que às vezes a vida é como um edifício em chamas, mas vamos homem não seja tão pessimista, ainda há em você vida!
- É irônico ouvir de você isto.
- De mim?
- Sim, de um matador como você.
- Pois eu jamais matei um homem – disse Valdomiro enquanto enchia um copo com bebida de uma garrafa do bar que havia ao seu lado.
- Como?! Então não és o homem?
- Sou sim. Mas é como dizem: quem mata é Deus, eu só mando a bala. Apenas Ele pode tirar a vida – retrucou Valdomiro, beijando, em seguida, o crucifixo que possuía em seu cordão no pescoço.
- Então devo pedir a Deus que me mate?
- Sim, com toda certeza. E se caso mereceres, estarei aqui para cumprir o combinado – respondeu Valdomiro levantando-se e indo para o bar.
E após isto, enfiou uísque goela abaixo. Enxugou a boca na manga da camisa e disse:
- Saiba que uma vez fui contratado para matar um homem. O cabra era um sujeito mau, vivia de explorar os outros. Apontei-lhe então o revólver para sua cabeça. Pedi que o sujeito rezasse. Disse-lhe: vamos cabra, ajoelhe, e comece a rezar. Hoje mesmo irás visitar o Diabo. O sujeito se mijou de tanto medo. E apertei o gatinho. E nada. Apertei novamente... E nada. E novamente, novamente, novamente... e nada. Meu revólver que nunca falhara, havia falhado?, pensei. Não, isso não, não é possível; um bom revólver como este! – comentou Valdomiro com o revolver novamente em mãos, olhando-o e cariciando-o. - Foi Deus, bendito seja – disse Valdomiro se benzendo -, que travou o meu dedo no gatilho.
- E o sujeito?
- Ora, nesse meio tempo o sujeito escapou.
- E não foste atrás dele?
- Não, não era a hora dele. E no outro dia devolvi o pagamento que havia recebido. E sabe o que aconteceu?
- Claro que não.
- O contratante achou que eu tinha sido comprado, por um preço maior, por aquele que eu havia sido pago para matar. E que ele seria agora a vítima. Este sujeito então puxou um revólver, como aqueles iguais de filme: um automático; daqueles que atiram milhares de balas por minuto. E sabe o que aconteceu?
- Claro que não homem!
- A arma travou. E eu atirei. E a bala nunca saiu tão bem de minha arma. Foi o meu melhor tiro: acertei-o bem no meio da testa. E o cara caiu devagarinho, devagarinho, sem mexer um músculo se quer; sem mesmo piscar os olhos.
Após virar-se de frente do balcão do bar, e olhar diretamente para seu interlocutor, Valdomiro diz em voz alta:
- O quê? Um tiro como aquele, de um trinta e oito, faria aquele sujeito estatelar-se rapidamente contra o chão. Mas não, seu corpo paralisou-se na hora, e manteve-se assim por alguns instantes. Por isso lhe digo: mesmo que não baste as infinitas preocupações naturais, como as mais terríveis possibilidade de doenças, os possíveis acidentes, a velhice e a morte; e que haja ainda a falta de emprego, o baixo salário, a estupidez alheia, os amores não correspondidos, os desejos não satisfeitos, a piorarem ainda mais a vida; e que a dor pareça ser mesmo a essência da vida. Esta ainda vale apena de ser vivida, homem.
 - Quanto a ideia de ser a essência da vida a dor, a isso concordamos; pois quando tento pensar em um grau máximo de felicidade, sempre encontro logo um limite, mas quando penso no máximo de infelicidade, torna-se impossível encontrar um possível limite; sempre posso encontrar algo pior ao que pensei anteriormente. E, certamente, o que há de pior na vida não é a morte, mas nossa total ausência de liberdade, e falta de alternativa com relação aquela, é como se a vida fosse um enorme prédio em chamas, pois mesmo com todo o desespero e prevenção possível, é impossível não encarar a morte um dia. E o desespero de mantê-la afastada só nos faz aproximar cada vez mais desta. Mas quanto a manter-se vivo...  Bora, aperte o gatilho; mate-me logo, por favor! Vamos amigo – disse Roberto a Valdomiro.
- De todos os homens que me mandaram matar, és o mais difícil de ter a tarefa cumprida.
- Por quê?
- Porque não é sua hora; e és um bom homem.
- Deixe de ser tolo homem, pare com superstições tolas.
- Já disse: não é sua hora, por que insiste? - disse Valdomiro, de pé, encostado no bar, de costas para Roberto.
- Vamos logo, o que estás esperando? Que tipo de matador você é?
- Então queres mesmo morrer! – disse Valdomiro antes de se aproximar de Roberto, mostrando-lhe o tambor do revólver cheio de bala, e lhe dizendo:
- Não é sua hora, veja, veja – disse Valdomiro, disparando o revolver encostado à cabeça de Roberto sem que nenhuma bala saísse; enquanto este, de olhos fechados, com suor escorrendo pela testa, tremia de medo.
- Tá vendo?  Tá vendo? Já lhe disse: não é sua hora – disse novamente Valdomiro voltando para o bar, ficando mais uma vez de costas para Roberto.
- Que droga de matador você é que não consegue dar um tiro? E quem pensa que és para decidir se é minha hora ou não?
Nesse momento, Valdomiro vira-se de frente para Roberto, e, com uma estranha expressão no rosto, lhe diz: sou a Morte, e subitamente some no ar.

Roberto com os olhos arregalados treme de susto, enquanto volta a ficar só.
Neste instante, sob o silêncio da noite, o estranho diálogo que tivera com Valdomiro volta a ecoar em sua mente:
“Pois eu jamais matei um homem... Quem mata é Deus”.
“Então devo pedir a Deus que me mate?”
“Sim, com toda certeza. E se caso mereceres, estarei aqui novamente, para cumprir o combinado.”
No dia seguinte, Roberto encontra sua maleta, com todo o dinheiro, em um dos cômodos de sua casa. E desse dia a diante pôde acreditar que havia, sim, sido visitado pela morte, em forma de um simples e simpático homem chamado Valdomiro, e que esta, estranhamente, era humana e que também era vida.
E após alguns dias, Roberto voltou novamente ater outro encontro com a morte, um belo encontro, desta vez sem susto, dor, sofrimento ou agonia.