O
sábado, em que está sendo escrita esta crônica, arrasta-se aborrecido e
pesado, numa enxurrada de lama, sob o açoite frio dos aguaceiros, cheio
de uma melancolia que nada pode dissipar. Oh! estes dias de chuva! Deus
sabe quanto suicídio tem por causa a sua fúnebre tristeza…
Deixando cair o livro que lia, o cronista levantou-se, abriu a janela, lançou um olhar entediado ao céu e à rua.
Que
céu e que rua! Em cima uma planície cinzenta, manchada aqui e ali de
nuvens mais escuras, que crescem, estendem-se em cargas-d’água
barulhentas e grossas. Em baixo, lama e deserto… Os bondes que passam
trazem as cortinas abaixadas, lustrosas de chuva, bambas, ao áspero
vento que as sacode. E não se vê ninguém… Quem há que se atreve a
afrontar a dureza desta úmida manhã, toda de. choro e enfaro.
Mas
não… Lá vem, cosido à parede, um vulto apressado. E uma mulher. Mais
perto agora, distinguem-se-lhe as feições, as roupas encharcadas, sob o
puído guarda-chuva gotejante. A borrasca envolve-a, gasta-a, enraiva-se
sobre ela, com uma crueldade implacável. A velha saia preta, colada às
pernas, vem barrada de lama; os sapatos chapinham nas poças da água; e
sempre cosida à parede, carregando um grande embrulho, tossindo e
tremendo de frio. Lutando contra a ventania furiosa, lá se vai à pobre —
fantasma da pobreza, vítima de uma dura sorte, cm busca do pão com que
há de alimentar os filhos pequenos, e, quem sabe? talvez também um
marido malandro, que fica, no calor da alcova, contando as tábuas do
teto e fumando, enquanto a mísera tirita pelas ruas alagadas…
Em
geral, nós, que só conhecemos as senhoras da nossa roda, pensamos que
todas as mulheres são melindrosos alfenins que qualquer trabalho fadiga.
Mas as que conhecemos são as flores humanas, cuidadosamente criadas na
estufa da civilização; são uns encantadores e estranhos animais, metade
anjos, metade demônios, tão sedutores e sobre a dureza da vossa negra
sorte — ó mulheres pobres, que sois tão mais fortes do que nós, na moral
como no físico!
Ainda não há três dias publicava A Notícia esta local: "Pela primeira vez, foi enviado ao Ministério da Fazenda um requerimento de uma senhorita pedindo para inscrever-se [***] concurso, a fim de exercer um emprego [***] Fazenda.
"Esse
requerimento foi à diretoria do contencioso, a fim de ser informado, e
combateu a pretensão, pelo que o sr. ministro da Fazenda resolveu
indeferir o mencionado requerimento."
Ora,
as leis humanas não podem ter a infalibilidade que a Igreja atribuí às
leis divinas. A sociedade não pode sujeitar-se ao império de uma lei
absurda, somente porque ela é uma lei.
Sempre que se agita esta questão das reivindicações femininas, escovam-se
e [***] os velhos chavões, e, com um grande ar de importância, os
filósofos decidem sem apelação que a mulher não pode ser mais do que o
anjo do lar, a vestal encarregada de vigiar o fogo sagrado, a
depositária das tradições da família… e das chaves da despensa. Todo
esse dispêndio de palavras inúteis serve apenas para encobrir a fealdade
da única razão séria que podemos apresentar contra as pretensões das
mulheres: o nosso egoísmo, o receio que temos de que nos despojem das
nossas prerrogativas seculares — o medo de perder as posições, as
regalias, as honras que o preconceito bárbaro confiou exclusivamente ao
nosso século. Compreende-se: quem se habituou a empunhar o bastão do
comando não se resigna facilmente a passá-lo a outras mãos: é mais fácil
deixar a vida do que deixar o poder.
Por
que não há de a mulher poder exercer "um emprego da Fazenda"? Que há de
misterioso e sagrado de recôndito e impenetrável no exercício dessas
funções que, não possa ser devassado e apreendido pelo espírito de uma
mulher?
Amar
o próximo e praticar o bem, praticar a caridade nos hospitais de sangue
e nos asilos civis, educar crianças — são tarefas infinitamente mais
sérias do que alinhar algarismos em livros, calcular taxas de cambio,
aplicai tarifas e computar perdas e ganhos. É, pois preciso ter o
cérebro de um Dante, de um Comte, de um Bacon, para poder trazer Em dia o
livro do protocolo de uma repartição pública ou para saber somar quatro
colunas de algarismos?
Entretanto,
que bela experiência a tentar! O espírito da mulher tem sobre o nosso
uma incontestável superioridade: não é feito, como o nosso, de
imaginação, de poder criador, de invenção; é feito de bom senso,
de prudência de tenacidade, de paciência. Já alguém escreveu que "a
mulher que dedicasse à execução de um plano financeiro a inteligência
minuciosa e clara que satânica… Essas são as que nasceram para ser
servidas e adoradas, como santas em nichos de ouro e prata, cobertas de
alfaias e de jóias.
Mas,
por uma dessas, quantas mil existem que são a providência doméstica, o
amparo da família que as formigas, mais infatigáveis do que as abelhas,
mourejando da primeira luz do dia às horas cerradas da noite,
entisicando sobre a máquina de costura, perdendo as forças sobre a tábua
de engomar, tisnando a pele junto das chamas do fogão!
Ninguém
pensa nisso… Só de quando em quando, um cronista melancólico, levado
pela própria tristeza a cuidar das tristezas alheias, demora a atenção
costuma dedicar à execução de um complicado plano de toalete,
desbancaria talvez os melhores economistas do mundo".
Em bom senso, não as vencemos, como não as vencemos em economia.
Se
todos quisessem ser sinceros, ou antes, se não quisessem enganar a si
mesmos, quantos homens confessariam que os melhores atos de toda a sua
existência foram inspirados no recesso do lar, entre dois carinhos —
nessas horas de intimidade em que as mulheres sabem influir sobre o
nosso espírito sem mostrar o que estão fazendo, e cm que nós,
inconscientemente, sem humilhações para o nosso desmarcado orgulho,
vamos pouco a pouco adotando as suas idéias e abandonando as nossas, de
maneira que, daí a pouco, exclusivamente parece nosso aquilo que é
exclusivamente delas!
Em economia, então — que abismo entre elas e nós!
Não
se trata, está claro, destas lindas e adoráveis senhoras do grande clã,
deusas deliciosas, cujas mãos perfumadas foram feitas apenas para
dissipar o dinheiro…
Mas,
nas casas pobres, que maravilhas de zelo, de poupança, de milagroso
comedimento nas despesas! Não têm conta as donas de casa que reproduzem
diariamente o milagre da multiplicação dos pães!
Quando
rompe a manhã, já a abelha humana anda à uma hora zumbindo e
trabalhando. Não há recanto da casa que escape à vigilância do seu
olhar, não há providência que seja esquecida pela sua inteligência
sempre alerta. Oh! o doce milagre! com um punhado miserável de dinheiro,
é preciso alimentar os filhos, é preciso vesti-los, é preciso
educá-los, é preciso consolar o marido e cercá-lo de conforto quando ele
é infeliz, é preciso viver com decência… O trabalho não se faz sem
lágrimas… A tarefa é rude, os pulmões se enfraquecem, calejam-se as
mãos, vai-se a beleza, perdem-se as graças — mas a casa prospera… E.
quando à noite, derreada e quase morta de cansaço, a heroína vai
sentar-se junto à máquina Singer para dar conta do serão, uma doce
auréola paira sobre a sua pálida cabeça de mártir do dever.
Ah!
que orgulho o nosso! e não há homem que reconheça esse sacrifício! e
não há homem que deixe de atribuir à sua própria competência enfatuada a
prosperidade e conforto que brotaram no seu lar, quando, quase sempre,
esses doces frutos são devidos às lágrimas e às gotas de suor com que as
mártires regaram o solo…
É
singular! nega-se a quem é capaz de fazer tudo isso o direito de
aspirar a um lugar de amanuense de secretaria! Mas, por todos os santos
do Paraíso! se há uma lei que determina isso, revogue-se quanto antes
essa lei absurda!
Abram-se
às mulheres todas as portas! Porque, enfim, nós, os homens, já temos
contribuído tanto para plantar na Terra o domínio da tolice e da
injustiça — que não era mau saber se o outro sexo não é capaz de ter
mais juízo do que o nosso!
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