Dentre os vários modos de interpretar o
homem, entre seus vários matizes, um me parece como um dos mais importantes e
reveladores de sua natureza: o homem é um ser incompleto. Tal incompletude que
se manifesta, de modo mais drástico, durante o nascimento, tem como forma a
dor. Pois, ao chegarmos ao mundo externo, um de seus primeiros elementos que
conhecemos é a dor física. O que geraria, aquilo que para alguns psicólogos é
conhecido como o “trauma de nascimento”, já que ao sermos expulsos do paraíso
uterino, tal expulsão é acompanhada de intensa agonia física e psicológica. E
isto, não se aplica apenas ao parto natural, mas a toda forma de nascimento.
Embora em algumas formas, tal agonia seja menos intensa.
O
psicanalista Otto Rank (1884 – 1939), após longo período de observação de casos
extremos de angústia, notou que tais indivíduos reagiam de modo bastante
semelhante a certas reações que os fetos teriam durante o nascimento. O que o
levou a afirmar que o trauma de nascimento seria a fonte de toda angústia que o
indivíduo sentirá ao longo de sua vida. Já que ao se deparar com situações de
mudança, separação, etc., semelhantes aos sentimentos vividos durante o
nascimento, o indivíduo por meio de tais situações traria à tona todas as
lembranças originadas de tal trauma. Originando, deste modo, sentimentos de
temor em relação à vida e a morte. Pois, toda novidade que quebrasse a
segurança da rotina, seria associada a um certo temor pela quebra de uma
situação a qual o indivíduo já se acostumou, ele teria medo inconsciente de
nascer. Já no caso da morte, o temor desta, se originaria não apenas da ideia
de seu fim, mas também da ideia do indivíduo perder sua individualidade, de
deixar de se sentir um ser único, sendo absorvido pelo ambiente em que vive.
A sensação de aperto, de compressão da
parede uterina, de quebra do equilíbrio de temperatura e luminosidade, etc.,
dadas imediatamente anteriores ao nascimento, durante e posterior ao mesmo,
iniciariam toda uma série de dores que marcará o individuo por toda sua vida.
Bem como as primeiras sensações de carência e de necessidade, uma vez que ao
sairmos do útero materno, o fornecimento de oxigênio, de alimento, e de outras
substâncias, anteriormente fornecidas diretamente pelo corpo materno, são
quebradas. O que, aliás, originaria, não apenas carência e necessidade, como
também sensação de esforço na tentativa de suprimi-las. Dadas no ato de
engolir, respirar, etc.
A vida anterior ao nascimento, a vida
intra- uterina, seria, portanto a forma mais próxima de uma completude. Estado
esse desejado de forma inconsciente por todas as pessoas, e procurado de forma
metafórica, pelas religiões, pelas artes, ou pelas realizações e relações
pessoais. Ao contornar, por exemplo, o filho, com os braços para acalmar-lhe a
inquietação, não estaria a mãe recriando para o filho o conforto e proteção do
tempo em que esta lhe transportava no ventre? O mesmo não se daria nos momentos
de pânico, em que pessoas seriam acalmadas pelo mesmo ato? 1
Falar de felicidade é falar dessa
completude ou de sua contrária, da sensação de que nos falta algo. Sensação que
o personagem Aristófanes no “Banquete” de Platão soube bem interpretar de modo
alegórico. Aristófanes argumenta que os seres humanos descendem de uma espécie
antiga de seres duplos com duas cabeças e oito membros. Tais seres pertenceriam
a três formas de sexo: os que seriam formados por duas partes masculinas, os
que teriam duas partes femininas e os andróginos que seriam formados tanto pelo
masculino quanto pelo feminino. Após uma tentativa de rebelião contra os
deuses. Zeus, o deus dos deuses, decide castigá-los. Depois de uma longa
meditação, Zeus decide cortá-los cada um em dois, tornando-os mais fracos e
também mais úteis, aos deuses, pelo fato de terem se tornado mais numerosos. E
assim fez Zeus. E a partir desse momento, cada metade procurará ansiosamente
pela outra. Gerando desse modo o amor. Os que possuíam as duas partes
femininas, ou masculinas, tornaram-se as lésbicas e os homossexuais masculinos.
Os andróginos, as mulheres e homens héteros.
Tal alegoria, embora tomada apenas no
sentido amoroso, evidencia de modo claro a condição humana: sua incompletude. E
toda atividade humana está voltada para o preenchimento deste vazio. O amor,
por exemplo, seria a tentativa de preencher este espaço, de nos tornarmos mais
completos, de obtermos o que nos falta. Mesmo o amor sensual, que pela
conjunção dos corpos, obtém o que a cada corpo falta: o poder da
procriação.
Com o nascimento, portanto, começaria a
busca da felicidade. Ou melhor, da tentativa de retornar a mesma, ao mesmo
estado. O que se evidencia até por meio das palavras: palavras como ventura,
contentamento, sucesso, fortuna, sorte, que em geral são usadas para significar
felicidade, dão origem as suas contrárias: infelicidade, desventura,
descontentamento, insucesso, infortúnio, má sorte 2. De fato, seria
como se originalmente todo ser humano fosse feliz e a infelicidade uma condição
posterior a essa. Não seria isto uma alusão a vida antes do nascimento?
Palavras
como angústia e ansiedade que em geral denotam estados de infelicidades,
possuem origens sugestivas: a palavra angústia, por exemplo, se origina da
palavra latina angustia que significa originalmente estreiteza. Ansiedade tem
como origem a palavra latina anxietas que possui a mesma origem que angere, que
em latim tem o significado de estrangular. Angere origina, por sua vez,
angoisse (angústia em francês), anger (ira em inglês ou uma mistura de
desprazer e antagonismo) e angst palavra alemã significando um misto de temor,
aversão e ansiedade3. As palavras angústia (significando em sua
origem latina: estreiteza) e ansiedade (estrangulado) não seriam, portanto, ideias
inconscientes das torturas do nascimento?
Todos
queremos ser felizes. Pois, como diz Pascal: “Todos os homens procuram ser
felizes. Isto é sem exceção. Quaisquer que sejam os diferentes meios que
empregam para isso, todos tendem para esse fim. O que faz que uns vão à guerra
e outros não é este mesmo desejo que está, nuns e noutros, acompanhado de
diferentes modos de ver. A vontade nunca dá nenhum passo, por pequeno que seja,
a não ser para este objetivo. É o motivo de todas as ações de todos os homens,
até mesmo dos que se vão enforcar (...)” 4. Isto é, todos,
consciente ou inconscientemente tendem para a felicidade, para esta completude.
Cada qual à sua maneira definem o bem que lhes agrada, o que acham o melhor
para si, mesmo àqueles que possuem desejos tão diferentes, como os masoquistas,
ou os suicidas, que ao escolherem “um mal menor” a outros, exercem seu último
poder de felicidade.
O
filósofo grego Aristóteles, argumentava que o bem é “aquilo que todos desejam”,
isto é, o bem não é algo imposto de fora, mas a realização da natureza
individual. Todo ser tende a realizar suas potências, suas possibilidades de
que são capazes. A realização plena de suas potências é seu bem, seu fim, sua
felicidade.
As
virtudes seriam o meio de se chegar à felicidade, à nossa completude como
humanos. E cada virtude seria o meio termo entre dois excessos, que são
definidos como defeitos. Assim, a coragem seria o meio termo entre a covardia e
o perigo excessivo. A dignidade entre a baixeza e a arrogância, etc. Porém,
como escolhermos de modo preciso o meio termo de cada ação? Não possuímos
réguas e compassos tão precisos.
Ao contrário de Aristóteles, a doutrina cristã
vê o bem como algo que nos é imposto de fora, como algo que não decorresse
naturalmente de nós próprios, que devemos praticar, para podermos ser felizes.
E a felicidade como a recompensa por nosso comportamento. Comportamento esse
muitas vezes exigido com sofrimento, tanto que os ideais de felicidade
católicos são os santos martirizados.
Embora
a doutrina cristã seja contrária a aristotélica, ambas veem a felicidade como
uma completude. Pois, assim como todos os seres tendem a um fim, o homem tende
a Deus, como a sua completude, apesar de muitas vezes, segundo esta doutrina,
não ter consciência disso, e troque “erroneamente” um bem mais valioso (Deus)
por um menor, o prazer momentâneo, por exemplo.
O
certo é que cada um procura completar-se a seu modo, segundo sua própria
natureza, uns procuram dinheiro, drogas, sexo, poder, prazer, etc. E no final,
após terem conseguido o que queriam, surge novamente o vazio. E acabam
descobrindo que tudo é momentâneo, tanto o momento feliz quanto a dor. E que
além da busca e de pequenas parcelas de felicidade, bem como da ilusão de tê-la
adquirido, foi tudo que lhes restaram.
Muitos
argumentam que somente a religião cristã traria a verdadeira felicidade. Tal
afirmação não é por acaso, já que esta possui um elemento potênciador de nossa
felicidade: a idéia idílica de um paraíso. Tal ideia manteria a esperança e a
calma na vida humana. O que tornaria compreensível a resistência e a revolta
contra todos aqueles que tentam negar ou tornar mais razoável o pensamento
religioso. Porém, a palavra paraíso, se origina de dois termos persas: pairi,
significando circundante, e daeza, parede. Ou seja, parede circundante, o que
se assemelha bastante ao ventre materno. E, portanto, a queda de Adão e Eva do
paraíso, o pecado original, não seria uma ideia inconsciente ao parto de toda a
humanidade, da perda da felicidade e da graça de todo individuo ao nascer? 5
“A
fascinação que os ocidentais têm pelo castigo e pela redenção não seria uma
pungente tentativa de dar sentido ao estágio 2 [das contrações e expulsão do
bebê do útero]? Não seria mais lógico ser punido por alguma coisa – não importa
quão implausível, como o pecado original – do que por nada?"6.
Ou seja, o feto nada fez para merecer as dores e os castigos do nascimento, o
que levaria mais tarde as tentativas inconscientes de dar sentido a tais
sofrimentos por meio de alegorias e metáforas religiosas, como as do pecado
original. E isto não se aplica apenas a religião, mas também a experiências
próximas da morte.
Em
muitos relatos de experiências de quase-morte, relatadas em várias culturas
diferentes, em que pessoas descrevem seus corpos flutuarem em meio a um túnel
tendo do outro lado uma luz brilhante e suave, e, na maioria das vezes, uma
figura disforme a esperá-las, do outro lado. Não seriam lembranças, que por
algum motivo são ativadas em tais situações, das experiências do nascimento?
Assim, a sensação de flutuarem deve-se a lembrança do tempo que estes flutuavam
no líquido amniótico. Do túnel, ao canal de passagem para o mundo exterior. A
luz suave e brilhante, a luz do ambiente exterior. O fato de ser uma lembrança,
explicaria também o caso da luz, diferentemente no nascimento, não ofuscar nem
ferir a vista. E, finalmente, a figura disforme seria a primeira impressão de
uma figura humana vista por um bebê.
Estudos
feitos pelo psiquiatra Stanislav Grof, com a droga LSD, demonstraram que
pessoas sob seu efeito, reproduzem sensações não apenas imediatamente posterior,
como imediatamente anterior ao nascimento. “Ele relata grande quantidade de
pacientes que, após um número adequado de sessões, de fato reviveram, e não
apenas recordaram, experiências profundas, ocorridas há muito tempo e
consideradas inacessíveis a nossas memórias imperfeitas, relativas ao período
perinatal [em torno do nascimento]. Essa, na verdade, é uma experiência muito
comum aos usuários de LSD, não se limitando de modo algum aos pacientes de
Grof”, como relata Carl Sagan7.
Experiências extracorporais, como a descrita acima “são induzidas por
anestésicos dissociativos como cetaminas [...]. A ilusão de voar é induzida
pela atropina e outros alcalóides da beladona, e essas moléculas, obtidas, por
exemplo, das sementes da mandrágora, têm sido usadas regulamentes por
feiticeiras européias e curandeiros norte-americanos para experimentar, em meio
ao êxtase religioso, vôos gloriosos e sublimes. A MDA tende a induzir à
regressão da idade, proporcionando acesso a experiências da infância e da
mocidade que julgávamos inteiramente esquecidas. A DMT induz à micropsia e a
macropsia, respectivamente a sensação de encolhimento ou expansão do mundo”8.
Não seria, portanto, possível que substâncias naturais presentes no cérebro
humano, em situações extremas, como as de quase-morte, ativassem lembranças em
torno do nascimento? O interessante é que o LSD é bastante semelhante
quimicamente a uma substância usada para provocar as contrações do parto, a
oxitocina. O que reforça ainda mais o que é dito acima.
Tantas
coincidências seriam por acaso? Teriam as religiões, que são sistemas que
prometem felicidade eterna, origens nas tentativas de retorno a felicidade
intra-uterina e também na tentativa inconsciente de dar sentido a expulsão da
mesma? Sempre há motivos para descrença, mas seria impossível negar a
influência do nascimento em nossas vidas.
FONTES:
1. Dicionário da Vida Sexual / vol 5 - Nova
Cultural
2. Revista Claudia n012 ano 38
3. Dicionário da vida sexual / vol 5 – Nova
Cultural
4. Pensamentos / Blase Pascal
5. Dicionário da Vida Sexual / vol 5 – Nova
Cultural
6. O Romance da Ciência / Carl Sagan
7. Idem
8. Idem
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