terça-feira, 13 de dezembro de 2011

SOBRE A NOÇÃO DE FELICIDADE (de Bosco Silva)



Dentre os vários modos de interpretar o homem, entre seus vários matizes, um me parece como um dos mais importantes e reveladores de sua natureza: o homem é um ser incompleto. Tal incompletude que se manifesta, de modo mais drástico, durante o nascimento, tem como forma a dor. Pois, ao chegarmos ao mundo externo, um de seus primeiros elementos que conhecemos é a dor física. O que geraria, aquilo que para alguns psicólogos é conhecido como o “trauma de nascimento”, já que ao sermos expulsos do paraíso uterino, tal expulsão é acompanhada de intensa agonia física e psicológica. E isto, não se aplica apenas ao parto natural, mas a toda forma de nascimento. Embora em algumas formas, tal agonia seja menos intensa.
 O psicanalista Otto Rank (1884 – 1939), após longo período de observação de casos extremos de angústia, notou que tais indivíduos reagiam de modo bastante semelhante a certas reações que os fetos teriam durante o nascimento. O que o levou a afirmar que o trauma de nascimento seria a fonte de toda angústia que o indivíduo sentirá ao longo de sua vida. Já que ao se deparar com situações de mudança, separação, etc., semelhantes aos sentimentos vividos durante o nascimento, o indivíduo por meio de tais situações traria à tona todas as lembranças originadas de tal trauma. Originando, deste modo, sentimentos de temor em relação à vida e a morte. Pois, toda novidade que quebrasse a segurança da rotina, seria associada a um certo temor pela quebra de uma situação a qual o indivíduo já se acostumou, ele teria medo inconsciente de nascer. Já no caso da morte, o temor desta, se originaria não apenas da ideia de seu fim, mas também da ideia do indivíduo perder sua individualidade, de deixar de se sentir um ser único, sendo absorvido pelo ambiente em que vive.
A sensação de aperto, de compressão da parede uterina, de quebra do equilíbrio de temperatura e luminosidade, etc., dadas imediatamente anteriores ao nascimento, durante e posterior ao mesmo, iniciariam toda uma série de dores que marcará o individuo por toda sua vida. Bem como as primeiras sensações de carência e de necessidade, uma vez que ao sairmos do útero materno, o fornecimento de oxigênio, de alimento, e de outras substâncias, anteriormente fornecidas diretamente pelo corpo materno, são quebradas. O que, aliás, originaria, não apenas carência e necessidade, como também sensação de esforço na tentativa de suprimi-las. Dadas no ato de engolir, respirar, etc.
A vida anterior ao nascimento, a vida intra- uterina, seria, portanto a forma mais próxima de uma completude. Estado esse desejado de forma inconsciente por todas as pessoas, e procurado de forma metafórica, pelas religiões, pelas artes, ou pelas realizações e relações pessoais. Ao contornar, por exemplo, o filho, com os braços para acalmar-lhe a inquietação, não estaria a mãe recriando para o filho o conforto e proteção do tempo em que esta lhe transportava no ventre? O mesmo não se daria nos momentos de pânico, em que pessoas seriam acalmadas pelo mesmo ato? 1
Falar de felicidade é falar dessa completude ou de sua contrária, da sensação de que nos falta algo. Sensação que o personagem Aristófanes no “Banquete” de Platão soube bem interpretar de modo alegórico. Aristófanes argumenta que os seres humanos descendem de uma espécie antiga de seres duplos com duas cabeças e oito membros. Tais seres pertenceriam a três formas de sexo: os que seriam formados por duas partes masculinas, os que teriam duas partes femininas e os andróginos que seriam formados tanto pelo masculino quanto pelo feminino. Após uma tentativa de rebelião contra os deuses. Zeus, o deus dos deuses, decide castigá-los. Depois de uma longa meditação, Zeus decide cortá-los cada um em dois, tornando-os mais fracos e também mais úteis, aos deuses, pelo fato de terem se tornado mais numerosos. E assim fez Zeus. E a partir desse momento, cada metade procurará ansiosamente pela outra. Gerando desse modo o amor. Os que possuíam as duas partes femininas, ou masculinas, tornaram-se as lésbicas e os homossexuais masculinos. Os andróginos, as mulheres e homens héteros.
Tal alegoria, embora tomada apenas no sentido amoroso, evidencia de modo claro a condição humana: sua incompletude. E toda atividade humana está voltada para o preenchimento deste vazio. O amor, por exemplo, seria a tentativa de preencher este espaço, de nos tornarmos mais completos, de obtermos o que nos falta. Mesmo o amor sensual, que pela conjunção dos corpos, obtém o que a cada corpo falta: o poder da procriação.     
Com o nascimento, portanto, começaria a busca da felicidade. Ou melhor, da tentativa de retornar a mesma, ao mesmo estado. O que se evidencia até por meio das palavras: palavras como ventura, contentamento, sucesso, fortuna, sorte, que em geral são usadas para significar felicidade, dão origem as suas contrárias: infelicidade, desventura, descontentamento, insucesso, infortúnio, má sorte 2. De fato, seria como se originalmente todo ser humano fosse feliz e a infelicidade uma condição posterior a essa. Não seria isto uma alusão a vida antes do nascimento?
 Palavras como angústia e ansiedade que em geral denotam estados de infelicidades, possuem origens sugestivas: a palavra angústia, por exemplo, se origina da palavra latina angustia que significa originalmente estreiteza. Ansiedade tem como origem a palavra latina anxietas que possui a mesma origem que angere, que em latim tem o significado de estrangular. Angere origina, por sua vez, angoisse (angústia em francês), anger (ira em inglês ou uma mistura de desprazer e antagonismo) e angst palavra alemã significando um misto de temor, aversão e ansiedade3. As palavras angústia (significando em sua origem latina: estreiteza) e ansiedade (estrangulado) não seriam, portanto, ideias inconscientes das torturas do nascimento?
 Todos queremos ser felizes. Pois, como diz Pascal: “Todos os homens procuram ser felizes. Isto é sem exceção. Quaisquer que sejam os diferentes meios que empregam para isso, todos tendem para esse fim. O que faz que uns vão à guerra e outros não é este mesmo desejo que está, nuns e noutros, acompanhado de diferentes modos de ver. A vontade nunca dá nenhum passo, por pequeno que seja, a não ser para este objetivo. É o motivo de todas as ações de todos os homens, até mesmo dos que se vão enforcar (...)” 4. Isto é, todos, consciente ou inconscientemente tendem para a felicidade, para esta completude. Cada qual à sua maneira definem o bem que lhes agrada, o que acham o melhor para si, mesmo àqueles que possuem desejos tão diferentes, como os masoquistas, ou os suicidas, que ao escolherem “um mal menor” a outros, exercem seu último poder de felicidade.
   O filósofo grego Aristóteles, argumentava que o bem é “aquilo que todos desejam”, isto é, o bem não é algo imposto de fora, mas a realização da natureza individual. Todo ser tende a realizar suas potências, suas possibilidades de que são capazes. A realização plena de suas potências é seu bem, seu fim, sua felicidade.
   As virtudes seriam o meio de se chegar à felicidade, à nossa completude como humanos. E cada virtude seria o meio termo entre dois excessos, que são definidos como defeitos. Assim, a coragem seria o meio termo entre a covardia e o perigo excessivo. A dignidade entre a baixeza e a arrogância, etc. Porém, como escolhermos de modo preciso o meio termo de cada ação? Não possuímos réguas e compassos tão precisos.
   Ao contrário de Aristóteles, a doutrina cristã vê o bem como algo que nos é imposto de fora, como algo que não decorresse naturalmente de nós próprios, que devemos praticar, para podermos ser felizes. E a felicidade como a recompensa por nosso comportamento. Comportamento esse muitas vezes exigido com sofrimento, tanto que os ideais de felicidade católicos são os santos martirizados.
   Embora a doutrina cristã seja contrária a aristotélica, ambas veem a felicidade como uma completude. Pois, assim como todos os seres tendem a um fim, o homem tende a Deus, como a sua completude, apesar de muitas vezes, segundo esta doutrina, não ter consciência disso, e troque “erroneamente” um bem mais valioso (Deus) por um menor, o prazer momentâneo, por exemplo.
   O certo é que cada um procura completar-se a seu modo, segundo sua própria natureza, uns procuram dinheiro, drogas, sexo, poder, prazer, etc. E no final, após terem conseguido o que queriam, surge novamente o vazio. E acabam descobrindo que tudo é momentâneo, tanto o momento feliz quanto a dor. E que além da busca e de pequenas parcelas de felicidade, bem como da ilusão de tê-la adquirido, foi tudo que lhes restaram.
   Muitos argumentam que somente a religião cristã traria a verdadeira felicidade. Tal afirmação não é por acaso, já que esta possui um elemento potênciador de nossa felicidade: a idéia idílica de um paraíso. Tal ideia manteria a esperança e a calma na vida humana. O que tornaria compreensível a resistência e a revolta contra todos aqueles que tentam negar ou tornar mais razoável o pensamento religioso. Porém, a palavra paraíso, se origina de dois termos persas: pairi, significando circundante, e daeza, parede. Ou seja, parede circundante, o que se assemelha bastante ao ventre materno. E, portanto, a queda de Adão e Eva do paraíso, o pecado original, não seria uma ideia inconsciente ao parto de toda a humanidade, da perda da felicidade e da graça de todo individuo ao nascer? 5
   “A fascinação que os ocidentais têm pelo castigo e pela redenção não seria uma pungente tentativa de dar sentido ao estágio 2 [das contrações e expulsão do bebê do útero]? Não seria mais lógico ser punido por alguma coisa – não importa quão implausível, como o pecado original – do que por nada?"6. Ou seja, o feto nada fez para merecer as dores e os castigos do nascimento, o que levaria mais tarde as tentativas inconscientes de dar sentido a tais sofrimentos por meio de alegorias e metáforas religiosas, como as do pecado original. E isto não se aplica apenas a religião, mas também a experiências próximas da morte.    
    Em muitos relatos de experiências de quase-morte, relatadas em várias culturas diferentes, em que pessoas descrevem seus corpos flutuarem em meio a um túnel tendo do outro lado uma luz brilhante e suave, e, na maioria das vezes, uma figura disforme a esperá-las, do outro lado. Não seriam lembranças, que por algum motivo são ativadas em tais situações, das experiências do nascimento? Assim, a sensação de flutuarem deve-se a lembrança do tempo que estes flutuavam no líquido amniótico. Do túnel, ao canal de passagem para o mundo exterior. A luz suave e brilhante, a luz do ambiente exterior. O fato de ser uma lembrança, explicaria também o caso da luz, diferentemente no nascimento, não ofuscar nem ferir a vista. E, finalmente, a figura disforme seria a primeira impressão de uma figura humana vista por um bebê.
    Estudos feitos pelo psiquiatra Stanislav Grof, com a droga LSD, demonstraram que pessoas sob seu efeito, reproduzem sensações não apenas imediatamente posterior, como imediatamente anterior ao nascimento. “Ele relata grande quantidade de pacientes que, após um número adequado de sessões, de fato reviveram, e não apenas recordaram, experiências profundas, ocorridas há muito tempo e consideradas inacessíveis a nossas memórias imperfeitas, relativas ao período perinatal [em torno do nascimento]. Essa, na verdade, é uma experiência muito comum aos usuários de LSD, não se limitando de modo algum aos pacientes de Grof”, como relata Carl Sagan7.
    Experiências extracorporais, como a descrita acima “são induzidas por anestésicos dissociativos como cetaminas [...]. A ilusão de voar é induzida pela atropina e outros alcalóides da beladona, e essas moléculas, obtidas, por exemplo, das sementes da mandrágora, têm sido usadas regulamentes por feiticeiras européias e curandeiros norte-americanos para experimentar, em meio ao êxtase religioso, vôos gloriosos e sublimes. A MDA tende a induzir à regressão da idade, proporcionando acesso a experiências da infância e da mocidade que julgávamos inteiramente esquecidas. A DMT induz à micropsia e a macropsia, respectivamente a sensação de encolhimento ou expansão do mundo”8. Não seria, portanto, possível que substâncias naturais presentes no cérebro humano, em situações extremas, como as de quase-morte, ativassem lembranças em torno do nascimento? O interessante é que o LSD é bastante semelhante quimicamente a uma substância usada para provocar as contrações do parto, a oxitocina. O que reforça ainda mais o que é dito acima.
    Tantas coincidências seriam por acaso? Teriam as religiões, que são sistemas que prometem felicidade eterna, origens nas tentativas de retorno a felicidade intra-uterina e também na tentativa inconsciente de dar sentido a expulsão da mesma? Sempre há motivos para descrença, mas seria impossível negar a influência do nascimento em nossas vidas.

     FONTES:
1. Dicionário da Vida Sexual / vol 5 - Nova Cultural
2. Revista Claudia n012 ano 38
3. Dicionário da vida sexual / vol 5 – Nova Cultural
4. Pensamentos / Blase Pascal
5. Dicionário da Vida Sexual / vol 5 – Nova Cultural
6. O Romance da Ciência / Carl Sagan
7. Idem
8. Idem

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