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LINGUETA
Lingueta fora um
conhecido ladrão que invadia casas e repartições públicas na calada da noite.
Era um exímio arrombador de cofres e fechaduras, que atormentara os bairros
ricos da cidade durante alguns anos antes de ser preso. Nunca fora violento.
Dedicara-se apenas ao que considerava ser uma arte: a invasão de lugares onde
não queriam sua presença. O malandro, na maior parte das vezes, agia sozinho,
desde quando era menino em sua cidade natal.
Quando coroinha,
acostumou-se a roubar vinho dos padres, e logo passou a roubar as esmolas dos
santos. Gostou tanto da experiência que, quando cresceu, passou a roubar o que
as igrejas possuíam de maior valor: obras de artes em forma de imagens de
santos, que muitos colecionadores ambicionavam por seu grande valor histórico e
artístico. E para tanto, teve que aprender a lidar com ferrolhos e fechaduras,
conhecendo-os a fundo, em seus pontos mais frágeis. No entanto, com o tempo,
parecia ter-se regenerado. Tanto que abandonara o velho apelido, impondo seu
nome de batismo. Corria o boato à boca pequena que o malandro desistira de
roubar igrejas por um fato inusitado, que este sempre afirmara ter origem
sobrenatural.
Conta-se a história que,
no tempo que roubava igrejas, fora mandado por um colecionador a uma velha
cidade do interior de Minas para roubar peças raras de arte sacra de uma antiga
igreja. Ficou na cidade por alguns dias, participando de seus cultos, em meio
aos anônimos que se aglomeravam nas festas santas, ou rezando solitário,
diariamente, em seus bancos. Sempre de olho nas imagens e na fragilidade da
igreja. Uma obra em especial lhe chamava a atenção: um quadro que ilustrava a
traição de Judas. Lingueta ficava horas a fio a contemplá-la. Tinha um lugar
preferido que a muitos dizia fazer parte de uma promessa que mantinha desde que
era menino, de rezar bem juntinho à janela. E ninguém desconfiava do que
Lingueta preparava. Quando rezava à janela, Lingueta forçava-a e estudava
minuciosamente suas falhas. E assim, a cada dia preparava sua entrada.
Em uma noite furtiva, sob
uma imensa lua cheia, contornou a antiga igreja que se situava na parte mais
antiga da cidade. Forçou a janela, que já vinha preparando-a há alguns dias.
Suas dobradiças, bem como a pesada grade de ferro que a protegia, cedeu às suas
investidas. Entrou sorrateiramente naquele lugar. A escuridão e o silêncio
dominavam aquele recinto, em que muitos investiam suas esperanças, e que o povo
via e acreditava como um lugar sagrado, em que as almas penadas iam à noite
para rezarem por sua salvação. Mas nada disso o afastava. Avistou, então, a
imagem que tanto interessava ao colecionador, um São Pedro talhado em madeira
que, ao apanhá-lo, substituiu-o por uma obra falsa, mal acabada, em madeira
simples, levando-a embora consigo naquela noite enluarada. Na noite seguinte,
resolveu voltar à mesma, desta vez para levar o quadro que ilustrava a traição
de Cristo. Pôs-se então a procurá-lo, achando-o estranhamente, sobre a janela
que arrombara. Ao subir à sua altura, pôs-se curioso a examinar tal obra de
arte, e repentinamente caiu ao chão estupefato. É que ao examinar tal obra de
arte, descobriu que Judas tinha sua cara. Isso o fez mudar instantaneamente. E
no dia seguinte, sem ainda terem dado pela falta, lá estava São Pedro de volta
à sua casa.
Tirado do livro "Sexo, Perversões e Assassinatos".
Meus parabéns, gostei muitíssimo dos textos. É a primeira vez que leio e me surpreendi com a naturalidade sincera com que vocês tratam temas tão difíceis de se falar. Muito bom mesmo.
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