“Tal qual Dante, ao descer aos portais do inferno a procura
de sua amada Beatriz, tendo como guia o poeta latino Virgílio, desçamos também
ao submundo do sexo, tomemos seus caminhos tortuosos entre luxúrias, gritos de
prazer, e também de dor, e devassemos os mais ‘estranhos’ atos e cultos de
prazer, tendo como guia o espírito do ‘louco’, do ‘desvairado’, do ‘pervertido’
Marquês de Sade.”
Com estas palavras o
autor de SEXO, PERVERSÕES E ASSASSINATOS introduz o leitor em sua história que,
em certa medida, guardadas as devidas proporções, é uma espécie de Divina
Comédia sadomasoquista:
Dante será Moreira, um policial que busca solucionar o mistério de três corpos com marcas nos pulsos e pescoços, encontrados mortos em rios que contornam a cidade, suspeitos de terem praticado atividades sadomasoquistas. O poeta Virgílio será substituído por Mirvel, um discípulo do “pervertido” escritor francês Marquês de Sade que pesquisa o turismo sexual no Brasil, e que será uma espécie de guia do mundo das perversões, apresentando-as a Moreira e comentando várias formas delas; e como Virgílio conduzindo Dante, Mirvel conduzirá o policial através do purgatório e do inferno sadomasoquistas. E assim como muitos leitores, Moreira descobrirá um mundo novo, guardado sob a penumbra do anonimato, que jamais havia imaginado que existisse.
Acima, Dante e Virgílio no inferno, na pintura de Delacroix
O livro SEXO, PERVERSÕES & ASSASSINATOS, de Bosco Silva, é, sem dúvida, uma narrativa alucinante sobre o mundo do sadomasoquismo; narrativa que parte de inocentes jogos sexuais sadomasoquistas envolvendo velas e algemas, como tantos outros romances com descrições picantes de sexo, por meio das práticas sexuais do casal de personagens composto pelo policial Moreira e sua namorada Renata. Porém logo em suas primeiras páginas o romance nos mostra para que veio pois Renata é uma mulher de forte libido que tem prazer em ter relações sexuais no próprio ambiente de trabalho...
Sim, eu sei, até aí nada há
de diferente também de outros milhares de filmes e livros do gênero que possuem
personagens que fogem da rotina sexual e passam a quebrá-la se excitando com a
possibilidade de serem pegos, no próprio ato, em escritórios ou em elevadores,
porém a diferença crucial aqui é que Renata é uma legista que adora ter
relações sexuais na própria mesa de autópsia, ou em meio a cenários de crimes,
entre cadáveres. E como se isso não fosse o bastante, o romance envereda ainda para
o sadomasoquismo extremo que, como em Sade, só obtém o máximo prazer com a
morte do parceiro.
Como nos informa o autor,
isto já está presente em seu próprio título já que "Sexo, Perversões e
Assassinatos" demonstra uma gradação de interesses sexuais; título que brinca
com a frase popular “sexo, drogas e rock’n’roll”; mas o que temos aqui, ao
contrário desta, é um crescente de perversidade que faz com que esta soe com
uma ingenuidade extrema.
O romance possui três
aspectos fundamentais, interligados entre si, que o faz ser original em seu
gênero:
Um o aspecto filosófico, em que é discutido o pensamento de Sade, de modo bastante acessível ao leitor, em que seu pensamento é analisado à luz da liberdade sexual de hoje, com os sites sadomasoquistas da internet e também do turismo sexual com seus inúmeros casos de pedofilia. Este aspecto, embora possa parecer desnecessário ao leitor, é fundamental para a história, uma vez que é por meio do pensamento de Sade que os perfis psicológicos dos supostos assassinos são traçados;
Outro aspecto é a discussão sobre a sexualidade humana, em que é analisado comportamentos sexuais que fogem do considerado convencional, como os demonstrados por seus personagens; o romance discute ainda o que seria o “normal” em matéria de sexo, levando o leitor a analisar seus próprios desejos e atos sexuais, com deliciosas pitadas de humor e ironia.
E por último, o livro liga tudo isso a uma divertida história policial, cheia de reviravoltas, mistérios e assassinatos.
Um o aspecto filosófico, em que é discutido o pensamento de Sade, de modo bastante acessível ao leitor, em que seu pensamento é analisado à luz da liberdade sexual de hoje, com os sites sadomasoquistas da internet e também do turismo sexual com seus inúmeros casos de pedofilia. Este aspecto, embora possa parecer desnecessário ao leitor, é fundamental para a história, uma vez que é por meio do pensamento de Sade que os perfis psicológicos dos supostos assassinos são traçados;
Outro aspecto é a discussão sobre a sexualidade humana, em que é analisado comportamentos sexuais que fogem do considerado convencional, como os demonstrados por seus personagens; o romance discute ainda o que seria o “normal” em matéria de sexo, levando o leitor a analisar seus próprios desejos e atos sexuais, com deliciosas pitadas de humor e ironia.
E por último, o livro liga tudo isso a uma divertida história policial, cheia de reviravoltas, mistérios e assassinatos.
Analisemos primeiro o aspecto filosófico do livro:
Marquês de Sade (1740 - 1814), por meio de seu pensamento e
literatura, é, sem dúvida, o grande personagem do livro; e é impossível não ver
no velho libertino um personagem fascinante; um autor que escreveu grande parte
de sua obra em prisões e manicômios - ora devido ao seu comportamento sexual
desregrado, ora por sua literatura ácida ou, na maior parte das vezes, como
fruto da perseguição de sua sogra -, e que fez o que parecia ser impossível:
misturou a mais visceral pornografia a uma filosofia digna dos melhores
filósofos de sua época, como Diderot (1713 - 1784). E isto não foi à toa já que tal mistura,
como demonstra bem o autor, era de suma importância para seu projeto filosófico.
Sade visto pelo séc. XIX
Sade pode ser visto mesmo
como uma espécie de Diderot da sexualidade desenfreada, pois o que este fez com
o conhecimento de seu tempo, catalogando-o minunciosamente em grossos volumes
de sua Enciclopédia, Sade fez com as taras e perversões de sua época em livros
como nos Cento e Vinte Dias de Sodoma;
e é o que, em grande parte, Bosco Silva faz novamente investigando práticas
sexuais modernas, que nem mesmo Sade imaginou, como o bondage e o bukkake.
Bondage
O autor se esforça em
contrapor a interpretação comum da obra de Sade, que o vê como um monstro que
visava apenas satisfazer seus desejos mais insanos, a uma interpretação mais
cuidadosa de seu pensamento, revelando-o como um grande pensador do
comportamento humano, gerando muitos momentos interessantes no livro, como na ocasião
em que o personagem Mirvel analisa o comportamento de alguns transeuntes:
“Creio, investigador, que mais compreenderemos o comportamento humano
quanto mais nos interpretarmos como de fato somos: animais. Veja, por exemplo,
aqueles sujeitos ali - disse Mirvel, enquanto Moreira direcionava o olhar para
eles -, que estão ostentando seus carros caros; assim como muitos animais, que
tentam atrair as fêmeas oferecendo proteção a elas, e repelindo os machos
adversários, por meio da força, estes machos humanos estão inconscientemente
atraindo as fêmeas por meio do luxo e do conforto econômico, que estes podem
oferecê-las, e repelindo os outros machos por meio da demonstração de que são
economicamente mais fortes.”
Para tanto, o autor contrapõe dois personagens que representam estas formas opostas de ver a obra sadiana. Assim Albert S., o líder de um grupo de turistas que praticam o turismo sexual em terras brasileiras, é o personagem que encarna a visão comum da obra de Sade; uma visão que foi construída por meio de psiquiatras como Krafft-Ebing, que ajudaram a popularizar o termo sadismo; que desde o século XIX já era bastante popular. No Dicionário Universal de Boiste, de 1834, por exemplo, o sadismo já era definido como: “Aberração horrível do deboche; sistema monstruoso e antissocial que revolta a natureza”. Por outro lado, por meio do personagem Mirvel, um escritor alcoólatra francês que está no Brasil pesquisando o turismo sexual, se destaca análises do pensamento e da obra de Sade feitas por pensadores que melhor interpretaram sua obra, como Bataille e os surrealistas, e que mostraram o grande valor de Sade, se opondo a uma interpretação essencialmente psiquiátrica de sua obra, e pondo em relevo aquilo que escapou às análises psiquiátricas: sua imensa liberdade de criação, em que a moral não é obstáculo algum.
Não podemos também
esquecer que o autor contribui com suas análises para uma melhor interpretação
da obra sadiana, criando uma visão filosófica própria, principalmente quando
põe em relevo o sexo como um caminho de autoconhecimento, como uma espécie de epifania
que nos leva a tomar consciência de nossa dimensão natural, ou quando aplica o
pensamento de Sade aos tempos de hoje, em plena era da internet com seus
milhares de sites dedicados as formas mais bizarras de sexo.
Já a parte dedicada a
sexualidade humana ganha ar de livro de autoajuda, pois leva o leitor a
descobrir o que há por trás de comportamentos que passa por nós despercebidos, como
no diálogo seguinte:
- E nunca lhe aconteceu que aquela mulher que você tanto
desejava, mas que nunca lhe dava a menor atenção, quando você estava sozinho,
passou inesperadamente a lhe seduzir, quando lhe viu acompanhado de uma outra
mulher?
- Sim, inúmeras vezes. O que me causava certa irritação, já
que estando acompanhado, eu pouco podia fazer para conquistá-la.
- Pois é, isso nada mais é do que um instinto animal: o de
demarcar território.
- Como?
- Demarcar território nada mais é do que quando o animal, por
meio de alguns artifícios, como arranhaduras em árvores e, ou, quando ele
espalha seu cheiro, por meio da urina, avisa aos outros machos, intrusos, de
sua espécie, que aquele lugar é seu pedaço, que as fêmeas são suas e que ele
manda ali. O mesmo fazem algumas mulheres, embora não aconteça da fêmea ter
essa atitude em outra espécie animal; mas na espécie humana as fêmeas ganharam
certa autonomia biológica com relação aos machos, principalmente com relação ao
sexo, fazendo com que elas tenham certas atitudes parecidas com as do macho,
com relação à sexualidade.
- Sim.
- Do mesmo modo, a tua companhia pareceu ser uma intrusa para
aquela mulher. O que a obrigou, ao ver que sua atenção a ela estava ameaçada
por outra mulher, a manter em você o fogo do desejo por ela aceso, através dos
meios por ela usados para demarcar seu território: beleza e sedução, para que
você continuasse como um potencial amante, mesmo que, na preferência dela, você
fosse o último - disse Mirvel com algumas gargalhadas ao final.
O romance disseca também
comportamentos sexuais não-convencionais, relativamente comuns, como o RESTIFISMO
(excitação por pés femininos calçados), o EXIBICIONISMO (prazer em si exibir
sexualmente), o CANDAULESISMO (prazer que alguns maridos ou namorados possuem
de obrigar que suas companheiras exiba parte de seus corpos para outros homens),
indo aos mais extremos, como a ZOOFILIA (sexo com animais) e a COPROFILIA (sexo
com fezes humanas); tudo isto é acompanhado também por uma espécie de pequena
história dos hábitos sexuais humanos, ilustrada pelos gostos sexuais pouco
convencionais de importantes personalidade históricas ou pelos hábitos sexuais incomuns
de famosos escritores como James Joyce e Ernest Hemingway. O livro assume este
caráter didático sem perder o ritmo de aventura com noções filosóficas ou com
curiosidades desnecessárias: tudo é necessário para a trama policial. E dentro
desta pespectiva, um comportamento sexual assume importância maior: a ASFIXIA
ERÓTICA.
Responsável por entre 500
a 1000 mortes anuais só nos Estados Unidos, esta atividade sexual torna-se cada
vez mais popular no meio sadomasoquista, tendo no estrangulamento e na
interrupção de oxigênio por meio deste, um forte potenciador de prazer sexual. É
ela que, na tentativa de desvendar o assassinato de três suspeitos de terem
morrido praticando-a, leva o investigador Moreira a investigar o submundo do
sexo, e a penetrar no obscuro e anônimo mundo do sadomasoquismo extremo. Mundo
que ele conhece apenas palidamente através dos jogos sexuais praticados com a
namorada.
Já o livro, quanto objeto
de arte, não é nenhum exemplo do que os críticos chamam de “boa literatura”, pois
não traz algum novo formato inovador à mesma, seja por meio de sua narrativa,
do objeto de sua narração, ou por meio de seus personagens. Não traz também,
como críticos literários gostam de referir, nenhuma “linguagem inovadora vindo
de um Guimarães Rosa, Haroldo de Campos, Paulo Leminski, Mia Couto, Manuel
Bandeira ou de outro grande escritor da língua portuguesa.” Trata-se
simplesmente de entreter o leitor; o que não o impede, por sua vez, de tocar em
assuntos importantes em suas páginas, neste caso, como vimos, a sexualidade
humana, com todas suas particularidades e seus extremos.
Quanto a parte policial,
bem é uma história simples que em vez de grandes deduções lógicas em busca de
criminosos, como fazem escritores famosos do gênero, se concentra na busca destes
por meio de perfis psicológicos, o que leva o leitor a conhecer aspectos
importantes da personalidade de criminosos sexuais.
O livro, sem duvida
alguma, garante boas horas de distração por meio de uma linguagem bastante
simples, acessível e bem humorada; sendo um bom companheiro para as horas de
tédio.
Sinceramente, esperava ler uma resenha do Marcos Bornai
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