Esqueça castelos, brumas, cemitérios, casas mal-assombradas, ou outro cenário comum para um conto de terror, o escritor João do Rio (1881 - 1921), cria, aqui, uma história de terror em pleno carnaval carioca de rua da década de 1910. Um conto soberbo.
O BEBÊ DE TARLATANA ROSA
— Oh! uma história de
máscaras! quem não a tem na sua vida? O carnaval só é interessante porque nos
dá essa sensação de angustioso imprevisto... Francamente. Toda a gente tem a
sua história de carnaval, deliciosa ou macabra, álgida ou cheia de luxúrias
atrozes. Um carnaval sem aventuras não é carnaval. Eu mesmo este ano tive uma
aventura...
E Heitor de Alencar
esticava-se preguiçosamente no divã, gozando a nossa curiosidade.
Havia no gabinete o barão
Belfort, Anatólio de Azambuja de que as mulheres tinham tanta implicância,
Maria de Flor, a extravagante boêmia, e todos ardiam por saber a aventura de
Heitor. O silêncio tombou expectante. Heitor, fumando um gianaclis1
autêntico, parecia absorto.
(1. Famosa marca de
charuto).
— É uma aventura alegre?
indagou Maria.
— Conforme os
temperamentos.
— Suja?
— Pavorosa ao menos.
— De dia?
— Não. Pela madrugada.
— Mas, homem de Deus,
conta! suplicava Anatólio. Olha que está adoecendo a Maria.
Heitor puxou um largo
trago à cigarreta.
— Não há quem não saia no
Carnaval disposto ao excesso, disposto aos transportes da carne e às maiores
extravagâncias O desejo, quase doentio é como incutido, infiltrado pelo
ambiente. Tudo respira luxúria, tudo tem da ânsia e do espasmo, e nesses quatro
dias paranóicos, de pulos, de guinchos, de confianças ilimitadas, tudo é
possível. Não há quem se contente com uma...
— Nem com um, atalhou
Anatólio.
— Os sorrisos são
ofertas, os olhos suplicam, as gargalhadas passam como ao arrepios de urtiga
pelo ar. É possível que muita gente consiga ser indiferente. Eu sinto tudo
isso. E saindo, à noite, para a pornéia da cidade, saio como na Fenícia saíam
os navegadores para a procissão da primavera, ou os alexandrinos para a noite
de Afrodite2.
(2. Afrodite ou Vênus, a
deusa do amor na mitologia greco-romana).
— Muito bonito! ciciou
Maria de Flor.
— Está claro que este ano
organizei uma partida com quatro ou cinco atrizes e quatro ou cinco
companheiros. Não me sentia com coragem de ficar só como um trapo no vagalhão
de volúpia e de prazer da cidade. O grupo era o meu salva-vidas. No primeiro
dia, no sábado, andamos de automóvel a percorrer os bailes. Íamos
indistintamente beber champanhe aos clubes de jogo que anunciavam bailes e aos
maxixes mais ordinários. Era divertidíssimo e ao quinto clube estávamos de todo
excitados. Foi quando lembrei uma visita ao baile público do Recreio.
— “ Nossa Senhora! disse
a primeira estrela de revistas, que ia conosco. Mas é horrível! Gente
ordinária, marinheiros à paisana, fúfias3 dos pedaços mais esconsos
da rua de S. Jorge4, um cheiro atroz, rolos constantes...”
— Que tem isso? Não vamos
juntos?
(3. Prostituta de baixa
categoria. 4. A rua de São Jorge, atual Gonçalves Lêdo, era no início do século
XX o centro do baixo meretrício).
Com efeito. Íamos juntos
e fantasiadas as mulheres. Não havia o que temer e a gente conseguia realizar o
maior desejo: acanalhar-se, enlamear-se bem. Naturalmente fomos e era uma
desolação com pretas beiçudas e desdentadas esparrimando belbutinas5
fedorentas pelo estrado da banda militar, todo o pessoal de azeiteiros das
ruelas lôbregas e essas estranhas figuras de larvas diabólicas, de íncubos6
em frascos de álcool, que tem as perdidas de certas ruas, moças, mas com os
traços como amassados e todas pálidas, pálidas feitas de pasta de mata-borrão e
de papel de arroz. Não havia nada de novo. Apenas, como o grupo parara diante
dos dançarinos, eu senti que se roçava em mim, gordinho e apetecível, um bebê
de tarlatana7 rosa. Olhei-lhe as pernas de meia curta. Bonitas.
Verifiquei os braços, o caído das espáduas, a curva do seio. Bem agradável.
Quanto ao rosto era um rostinho atrevido, com dois olhos perversos e uma boca
polpuda como se ofertando. Só postiço trazia o nariz, um nariz tão bem feito,
tão acertado, que foi preciso observar para verifica-lo falso. Não tive dúvida.
Passei a mão e preguei-lhe um beliscão. O bebê caiu mais e disse num suspiro —
ai que dói! Estão vocês a ver que eu fiquei imediatamente disposto a fugir do
grupo. Mas comigo iam cinco ou seis damas elegantes capazes de se debochar mas
de não perdoar os excessos alheios, e era sem linha correr assim,
abandonando-as, atrás de uma frequentadora dos bailes do Recreio. Voltamos para
os automóveis e fomos cear no clube mais chique e mais secante8 da
cidade.
(5. Tecido de algodão
aveludado. 6. Segundo a lenda, demônio masculino que vem à noite copular com
uma mulher durante o sono. 7. Tecido encorpado usado para fôrro. Entretela. 8.
Chato).
— E o bebê?
— O bebê ficou. Mas no
domingo, em plena avenida, indo eu ao lado do chauffeur, no borborinho
colossal, senti um beliscão na perna e uma voz rouca dizer : “ para pagar o de
ontem”. Olhei. Era o bebê rosa, sorrindo, com o nariz postiço, aquele nariz tão
bem feito. Ainda tive tempo de indagar: onde vais hoje?
— À toda parte!
respondeu, perdendo-se num grupo tumultuoso.
— Estava perseguindo-te!
comentou Maria de Flor.
— Talvez fosse um homem...
soprou desconfiado o amável Anatólio.
— Não interrompam o
Heitor! fez o barão, estendendo a mão.
Heitor acendeu outro
gianaclis, ponta de ouro, sorriu, continuou:
— Não o vi mais nessa
noite, e segunda-feira não o vi também. Na terça desliguei-me do grupo e caí no
mar alto da depravação, só, com uma roupa leve por cima da pele todos os maus
instintos fustigados. De resto a cidade inteira estava assim. É o momento em
que por trás das máscaras as meninas confessam paixões aos rapazes, é o instante
em que as ligações mais secretas transparecem, em que a virgindade é dúbia e
todos nós a achamos ínútil, a honra uma caceteação, o bom senso uma fadiga.
Nesse momento tudo é possível, os maiores absurdos, os maiores crimes; nesse
momento há um riso que galvaniza9 os sentidos e o beijo se desata
naturalmente.
(9. Arrebata. Reanima).
Eu estava trepidante, com
uma ânsia de acanalhar-me, quase mórbida. Nada de raparigas do galarim
perfumadas e por demais conhecidas, nada do contato familiar, mas o deboche
anônimo, o deboche ritual de chegar, pegar, acabar, continuar. Era ignóbil.
Felizmente muita gente sofre do mesmo mal no carnaval.
— A quem o dizes !...
suspirou Maria de Flor.
— Mas eu estava sem
sorte, com a guigne, com o caiporismo dos defuntos índios. Era aproximar-me,
era ver fugir a presa projetada. Depois de uma dessas caçadas pelas avenidas e
pelas praças, embarafustei pelo S. Pedro, meti-me nas danças, rocei-me àquela
gente em geral pouco limpa, insisti aqui, ali. Nada!
— É quando se fica mais
nervoso!
— Exatamente. Fiquei
nervoso até o fim do baile, vi sair toda a gente, e saí mais desesperado. Eram
três horas da manhã. O movimento das ruas abrandara. Os outros bailes já tinham
acabado. As praças, horas antes incendiadas pelos projetores elétricos e as
cambiantes enfurnadas dos fogos de bengala, caíam em sombras — sombras
cúmplices da madrugada urbana. E só, indicando a folia, a excitação da cidade,
um ou outro carro arriado levando máscaras aos beijos ou alguma fantasia
tilintando guizos pelas calçadas fofas de “confetti”. Oh! a impressão enervante
dessas figuras irreais na semi-sombra das horas mortas, roçando as calçadas,
tilintando aqui, ali um som perdido de guizo! Parece qualquer coisa de
impalpável, de vago, de enorme, emergindo da treva aos pedaços... E os dominós
embuçados, as dançarinas amarfanhadas, a coleção indecisa dos máscaras de
último instante arrastando-se extenuados! Dei para andar pelo largo do Rocio e
ia caminhando para os lados da secretaria do interior, quando vi, parado, o
bebê de tarlatana rosa.
Era ele! Senti
palpitar-me o coração. Parei.
— “Os bons amigos sempre
se encontram” disse. O bebê sorriu sem dizer palavra. — Estás esperando alguém?
Fez um gesto com a cabeça que não. Enlacei-o. — Vens comigo?
— Onde? indagou a sua voz
áspera e rouca.
— Onde quiseres!
Peguei-lhe nas mãos. Estavam úmidas mas eram bem tratadas. Procurei dar-lhe um
beijo. Ela recuou. Os meus lábios tocaram apenas a ponta fria do seu nariz.
Fiquei louco.
— Por pouco...
— Não era preciso mais no
Carnaval, tanto mais quanto ela dizia com a sua voz arfante e lúbrica: — “ Aqui
não!” Passei-lhe o braço pela cintura e fomos andando sem dar palavra. Ela
apoiava-se em mim, mas era quem dirigia o passeio e os seus olhos molhados
pareciam fruir todo o bestial desejo que os meus diziam. Nessas fases do amor
não se conversa. Não trocamos uma frase. Eu sentia a ritmia desordenada do meu
coração e o sangue em desespero. Que mulher! Que vibração! Tínhamos voltado o
jardim. Diante da entrada que fica fronteira à rua Leopoldina, ela parou,
hesitou. Depois arrastou-me, atravessou a praça, metemo-nos pela rua, escura e
sem luz. Ao fundo, o edifício das Belas Artes era desolador e lúgubre.
Apertei-a mais. Ela aconchegou-se mais. Como os seus olhos brilhavam!
Atravessamos a rua Luiz de Camões, ficamos bem em baixo das sombras espessas do
Conservatório de Música. Era enorme o silêncio e o ambiente tinha uma cor
vagamente russa com a treva espancada um pouco pela luz dos combustores
distantes. O meu bebê gordinho e rosa parecia um esquecimento do vício naquela
austeridade da noite. — Então, vamos? indaguei.
—Para onde?
— Para a tua casa.
— Ah! não, em casa não
podes... Então por aí. — Entrar, sair, despir-me. Não sou disso !
— Que queres tu, filha? É
impossível ficar aqui na rua. Daqui a minutos passa a guarda.
— Que tem?
— Não é possível que nos
julguem aqui para bom fim, na madrugada de cinzas. Depois, às quatro tens que
tirar a máscara.
— Que máscara?
— O nariz.
— Ah! sim!
E sem mais dizer
puxou-me. Abracei-a. Beijei-lhe os braços, beijei-lhe o colo, beijei-lhe o
pescoço. Gulosamente a sua boca se oferecia. Em torno de nós o mundo era
qualquer coisa de opaco e de indeciso. Sorvi-lhe o lábio.
Mas o meu nariz sentiu o
contato do nariz postiço dela, um nariz com cheiro a resina, um nariz que fazia
mal.
— Tira o nariz! — Ela segredou:
Não! não! custa tanto a colocar! Procurei não tocar no nariz tão frio naquela
carne de chama.
O pedaço de papelão,
porém, avultava, parecia crescer, e eu sentia um mal estar curioso, um estado
de inibição esquisito.
— Que diabo! Não vás
agora para casa com isso! Depois não te disfarça nada.
— Disfarça sim!
— Não!
Procurei-lhe nos cabelos
o cordão. Não tinha. Mas abraçando-me, beijando-me, o bebê de tarlatana rosa
parecia uma possessa tendo pressa. De novo os seus lábios aproximaram-se da
minha boca. Entreguei-me. O nariz roçava o meu, o nariz que não era dela, o
nariz de fantasia. Então, sem poder resistir, fui aproximando a mão,
aproximando, enquanto com a esquerda a enlaçava mais, e de chofre agarrei o
papelão, arranquei-o. Presa dos meus lábios, com dois olhos que a cólera e o
pavor pareciam fundir, eu tinha uma cabeça estranha, uma cabeça sem nariz, com
dois buracos sangrentos atulhados de algodão, uma cabeça que era alucinadamente
— uma caveira com carne...
Despeguei-a, recuei num
imenso vômito de mim mesmo. Todo eu tremia de horror, de nojo. O bebê de
tarlatana rosa emborcara no chão com a
caveira voltada para mim, num choro que lhe arregaçava o beiço mostrando
singularmente abaixo do buraco do nariz os dentes alvos.
— Perdoa! Perdoa! Não me
batas. A culpa não é minha! Só no Carnaval é que eu posso gozar. Então,
aproveito, ouviste? aproveito. Foste tu que quiseste...
Sacudi-a com fúria, pu-la
de pé num safanão que a devia ter desarticulado. Uma vontade de cuspir, de
lançar apertava-me a glote, e vinha-me o imperioso desejo de esmurrar aquele
nariz, de quebrar aqueles dentes, de matar aquele atroz reverso da luxúria...
Mas um apito trilou. O guarda estava na esquina e o1hava-nos, reparando naquela
cena da semi-treva. Que fazer? Levar a caveira ao posto policial? Dizer a todo
a mundo que a beijara? Não resisti. Afastei-me, apressei o passo e ao chegar ao
largo inconscientemente deitei a correr como um louco para a casa, os queixo
batendo, ardendo em febre.
Quando parei á porta de
casa para tirar a chave, é que reparei que a minha mão direita apertava uma
pasta oleosa e sangrenta. Era o nariz do bebê de tarlatana rosa...
Heitor de Alencar parou,
com o cigarro entre os dedos, apagado. Maria de Flor mostrava uma contração de
horror na face e o doce Anatólio parecia mal. O próprio narrador tinha a
camarinhar-lhe a fronte gotas de suor. Houve um silêncio agoniento. Afinal o
barão Belfort ergueuse, tocou a campainha para que o criado trouxesse
refrigerantes, e resumiu:
— Uma aventura, meus
amigos, uma bela aventura. Quem não tem do carnaval a sua aventura? Esta é pelo
menos empolgante.
E foi sentar-se ao piano.
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