PINÓQUIO, O
MALDITO BONECO DE MADEIRA
— Por Julio
Cezar Dosan —
Gepeto era um velho viúvo solitário. Depois da
partida repentina de sua esposa, se enveredou pelo caminho da boemia, bebendo
na companhia de prostitutas e vagabundos, no lado mais obscuro da cidade miúda.
Certa manhã acordou no pior de seus dias,
jogado no chão de sua oficina suja. A cabeça doía e ele se viu com as vestes
cobertas de vômito e urina. Foi então que reparou o quão decadente estava.
Gepeto se olhou no espelho e se perguntou:
— Isto tudo pra que, Gepeto? Uma vida de
exageros selada na velhice, trazendo decadência, vergonha, miséria e
desgraça...
Decidiu então parar com a boemia e se dedicou
ao extremo na confecção de seus bonecos de madeira.
Mas Gepeto não demorou á descobrir o motivo de
sua entrada triunfante ao alcoolismo. Depois da morte de sua esposa, nada mais
havia de bom grado em sua triste vida. O alcoolismo o cobria com um mundo novo
e dormente, e agora que ele próprio havia se privado de tal vicio, o que iria
fazer com a própria vida?
Ora, Gepeto era um homem honrado e ainda
cultuava a memória da esposa! Não se casaria de novo. Outra mulher estava
totalmente fora de seus planos.
Então se lembrou da velha bruxa Dorotéia, sua
irmã de criação. Os dois cresceram juntos depois que o pai de Gepeto se casou
com a mãe dela, que também era bruxa. Mesmo sabendo que nada de bom vinha de
uma bruxa, Gepeto ousou levar até ela seu melhor boneco, afim de que a irmã o
desse o sopro da vida e o tornasse um menino de verdade, para lhe fazer
companhia nos restos dos anos de sua vida sem graça.
No alto de uma montanha residia a grotesca
bruxa Dorotéia. Já estava velha e acabada, cultuando ainda a memória de sua
velha mãe. Gepeto chegou a sua casa tosca com o boneco debaixo dos braços e
pediu para entrar. Ao ouvir a voz do irmão de criação, a bruxa feliz da vida
abriu a porta e o recepcionou muito bem, com abraços, café e bolo de brócolis.
Gepeto contou tudo o que sentia, desde a
solidão e do desejo de ter um filho. Entregou a irmã Dorotéia o boneco e
implorou para que ela lhe desse o sopro da vida. Dorotéia levantou-se descômoda
e o advertiu:
— Nada de bom sai de uma coisa destas, irmão.
Uma criatura concebida por magia teria a origem dos infernos, e traria total
caos e desordem ao seu dono. Ora, escute meu conselho: Esqueça esta ideia
absurda, deixe o boneco como esta, sem vida. Pois qualquer chance que o mal tem
de povoar este mundo, ele instala nele todo o caos que puder!
Gepeto em sua ânsia de ter companhia ignorou o
sábio conselho da irmã, que era tão ou mais solitária que ele. Fez questão
quanto ao pedido, e ela, mesmo sabendo que as consequências seriam desastrosas,
atendeu o desejo de seu querido e bondoso irmão.
Velas acesas por toda a sala escura. Durante a
magia negra um forte vendaval invadiu o interior da velha casa. A bruxa com um
gato preto nas mãos segurou seu pescoço peludo sobre a cabeça do boneco e
bradou aos infernos:
— Conceda-me uma alma para preencher este
boneco, em troca de tal ato, dou-lhe a vida deste felino.
Dorotéia puxou a cabeça do pequeno gato, a
arrancando do corpo peludo. O sangue do bichano pingou sobre a face de madeira
do boneco. Um temporal se instalou do lado de fora da velha casa e todas as
velas se apagaram... As árvores cairam e a montanha vibrou... Almas gritantes e
errantes correram em desespero pela casa, derrubando panelas, copos e
quadros... O espelho virou água e se derramou em cacos pelo chão de barro
batido. As almas sujas lutavam entre si para preencher o corpo do boneco, até
que uma delas conseguiu entrar pela boca de madeira... A face do boneco brilhou
e o ar adentrou em seu corpo duro.
O temporal parou de uma hora para outra. Um
vento frio e sinistro passou pela escuridão, do lado de Gepeto e Dorotéia. De
repente, os dois testemunharam dois pontos claros iluminar o quarto escuro.
Eram os olhos do boneco. Dorotéia reacendeu uma das velas e a entregou a
Gepeto, que emocionado, foi até o boneco avivado e o abraçou, agradecendo a
irmã pelo seu pedido atendido.
Gepeto levantou o boneco ao alto, este,
levantou a cabeça e soltou uma palavra:
— Papai...
O velho coração de Gepeto disparou. Ele em
contentamento extremo se voltou a Dorotéia e balbuciou:
— Ele realmente esta vivo! E fala como um
menino!
Pinóquio se levantou da mesa e entre tropeços
e desajustes, caiu incandescente no chão. Gepeto pensou em acudi-lo, mas foi
intervido por Dorotéia:
— Deixe-o! Ele precisa aprender a caminhar
sozinho, as próprias custas!
Pinóquio sorriu desengonçado ao dar o primeiro
passo bem sucedido, Gepeto e a bruxa batiam palmas, lhe incentivando a
caminhar.
Gepeto olhou satisfeito para a irmã bruxa e a
abraçou, pelo feito muito bem sucedido. Ela lhe dava palminhas nas costas
enquanto lhe advertia:
— Meu irmão, não se deixe enganar pela
inocência do moleque de madeira. Ele descende da escuridão, até onde sei nada
que preste sai de lá!
Gepeto tentou ignorar a profecia quase que
segura de sua irmã Dorotéia. Pegou o boneco de madeira pela mão e caminhou com
ele feliz da vida para sua casa, enquanto o batizava:
— Seu nome será Pinóquio! Tu serás meu filho!
Pinóquio aos risos limpou os respingos do
sangue do gato em seu rosto envernizado.
O velho ainda confiante na evolução do menino,
muito prezava pela sua educação. Decidiu que o colocaria na escola, junto com
crianças normais.
Ilustração de Berk Öztürk
Pinóquio não absorveu muito bem tal idéia,
queria ficar em casa, brincando com os outros bonecos de madeira que Gepeto
tinha. O pai lhe foi duro, lhe deu umas palmadas e o ameaçou dizendo que se não
frequentasse a escola, ele o usaria como lenha crua para a lareira:
— Menino de madeira que não serve para os
estudos, é jogado ao fogo, junto com sua ignorância, para assim queimar igual
às madeiras comuns.
Pinóquio ouviu assustado e as pressas acatou o
pedido do velho pai.
Gepeto lhe deu três moedas, lhe advertindo:
— Dinheiro é sagrado. Ele é muito difícil de
conseguir. Leve estas três moedas e compre cadernos e lápis, para usar na
escola.
Pinóquio o fez, e foi para as aulas. Já no
primeiro dia de aula, o menino de madeira demonstrou ser um capeta. Foi mandado
de volta pra casa, a pedido da diretora da escola, depois de pregar alfinetes
na testa de um dos alunos, o levando ao coma profundo.
Pinóquio temeu voltar e servir de lenha verde
para a lareira. Decidiu então que ficaria na igreja da cidade até dar a hora de
voltar pra casa. E assim o fez.
Chegando lá, o pirralho ficou encantado com o
coral de meninos da igreja. O padre avistando o menino de madeira em meio à
multidão de fiéis, foi até ele depois da missa e bem o recepcionou em sua sala.
Pinóquio aproveitou que estava falando
diretamente com o organizador do coral e se ofereceu para ser parte dele, mal
sabendo que o ambicioso padre lhe tinha outros planos:
— És um boneco de madeira vivo! Sabes quanto
dinheiro minha igreja pode ganhar te transformando em santo?
Mas ser santo não era a intenção de Pinóquio,
o menino oco queria cantar no coral... Ele chorou alto e em desespero, chamando
a atenção de quem passava pela igreja.
O padre desesperado meteu a mão na sacola de
dízimos, arrancando moedas. As estendeu ao boneco e lhe propôs:
— Não grite menino! Pode ir e levar contigo
este dinheiro! Meninos cantores de coral é o que mais tenho, agora um milagre
vivo como você... Tu és um milagre! Um milagre vivo! Eu ganharia mil vezes este
e outros tantos de dinheiro nas ofertas!
Pinóquio se lembrou de quão o pai valorizava
moedas como aquela, chegando até a considera-las como sagrada. As olhou com
olhos de ganancioso e as pôs no bolso curto, que transbordava devido à
quantidade:
— Levaras muito mais que isto se vier amanhã e
servir de santo em meu altar!
Pinóquio voltou para casa feliz da vida e com
os bolsos cheios. O pai estranhou tudo aquilo, mas como ele mesmo disse,
dinheiro era sagrado, e assim sendo, ignorou sua origem e sorriu satisfeito,
abraçando o menino de madeira:
— Posso conseguir muito mais, papai! O padre
disse que se eu fosse santo, me daria outros tantos desse.
Os olhos de Gepeto brilharam e ele deixou que
o filho abandonasse a escola e seguisse com sua nova profissão.
E Pinóquio subiu ao altar recém-construído. O
padre ao lado de Gepeto contemplou glorioso o menino bem instalado, Gepeto
olhou desconfiado e perguntou ao padre:
— Tem certeza que dará certo?
O religioso sorriu esperançoso e disse seguro:
— Claro que sim, as pessoas pagariam muito por
possíveis milagres! Seremos ricos! E um santo vivo demonstra muito mais
credibilidade que um santo inanimado de barro podre.
Os fiéis começaram a se aglomerar diante do
novo santo. Pinóquio em seu altar conversava com todos e aprendeu fazer orações
a eles, lhes abençoando e ganhando inúmeras moedas.
Ao fim do primeiro dia, o padre estava
satisfeitíssimo com o resultado do plano muito bem montado. Recolheu o dinheiro
e deu a parte de Pinóquio a Gepeto.
Gepeto em contentamento extremo, só andava bem
vestido.
Pinóquio pensou em descer do altar, mas sentiu
seus pés pregados. Desesperou-se, o padre veio até ele junto de seu pai e
ordenou:
— Ficara ai, pois agora é um santo sagrado,
tens que estar sempre a espera dos seus fiéis. Se ousar desobedecer...
— ...Será atirado ao fogo! — Continuou Gepeto,
ameaçando o menino.
Pinóquio chorava lágrimas de sangue em sua
prisão gloriosa. Os fiéis que o viam, contemplavam mais um milagre, e os outros
tantos milagres de cura começaram a acontecer, a força de Pinóquio como santo
só aumentava; Gepeto rico, preencheu toda a solidão que sentia e voltou a
beber.
Até que um dia a bruxa Dorotéia ouviu sobre os
milagres do boneco que reavivou graças a magia negra. Decidiu que interviria
por ele e assim o fez. Em uma manhã de missa, atravessou a multidão e foi ao
encontro do menino. Levantou os braços e gritou em voz alta:
— Este pobre boneco a qual vocês nomearam
santo, não passa de uma farsa montada por seu padre ateu! Libertem-no e o
deixem viver sua vida de menino!
Não era o que os fiéis queriam ouvir. A
multidão ofendida a julgaram por ser caluniadora e descrente, por não acreditar
nos visíveis milagres.
Sob os olhos do irmão Gepeto que ignorou a
ação dos fiéis, Dorotéia foi levada até a praça publica e a amarraram em um tronco
da mesma madeira que fez Pinóquio. Raivosos e com sede de justiça, atearam fogo
em seu corpo.
Pinóquio, levado a procissão, viu sua criadora
queimar em carne viva, agonizando em meio às labaredas. Se desesperou e
despregou os pés do altar... O sangue correu por seus pés de madeira e ele
correu choroso, longe do bando de fanáticos.
Pinóquio em ódio eterno decidiu seguir a
profecia de Dorotéia... Subiu no palanque onde sua criadora ainda agonizava em
brasa e em meio ao fogo, usou de seu poder de santo e amaldiçoou o padre, o pai
e todos seus fiéis fanáticos, que o olharam estarrecidos e condenados.
— Todo aquele diferente de mim, dono de carne
viva, a vera pútrida e pingar de seu corpo! Eu os amaldiçoo a apodrecerem em
vida!
Uma peste se alastrou na cidade pequena. As
pessoas começaram a ter o corpo coberto de lepra e seus membros começaram a se
despedaçar e cair... Diante de todo aquele horror e desespero, a pobreza e a
fome foram eminentes.
O padre comia o que podia, e quando não tinha
nada, se juntava a Gepeto e comia os pedaços que caiam do corpo de seus fiéis.
O nariz de Pinóquio começou a crescer, e ele,
imune da doença que atingia apenas a carne humana, com o nariz pontiagudo e a
pele polida, se aproximou do padre e arrancou seus olhos com as unhas pontudas.
Gepeto olhava o filho em desespero, o padre agonizava, o amaldiçoando.
O nariz de Pinóquio crescia ainda mais, a
bruxa então, cheia de luz, surgiu dentro da igreja bagunçada e o tocou:
— Cada vez que o amaldiçoam, seu nariz
cresce... Mas não se preocupe agora lhe transformarei em um menino de
verdade...
Pinóquio olhou sua criadora e disse assustado:
— Não! Não quero me tornar carne e osso! Não
quero ser devorado por minha maldição!
A bruxa ignorou o pedido do menino, e antes de
desaparecer, o transformou em menino de verdade.
Pinóquio correu em desespero pelas ruas. Os
fiéis podres o viram e disseram:
— Ei, lá esta nosso santo!A sagrada bruxa
mártir estava certa! Ele é uma farsa, pois nos amaldiçoou!
Os homens podres e desfigurados perseguiram o
menino de carne e osso, e em meio a seus gritos de criança, foi amarrado em um
grosso tronco.
Seu pai Gepeto, se aproximou sádico e ateou
fogo no grosso tronco, queimando a pele fina do menino, que outrora fora de
madeira. Pinóquio gritava enquanto sua carne queimava como lenha verde...
Meses se passaram e a peste se extinguiu da
cidade. O padre cego, com o coração cheio de perdão, pediu que construíssem um
altar em memória da bruxa Dorotéia, que virou santa após arrancar os poderes do
menino de madeira que amaldiçoou toda a cidade pequena.
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