quarta-feira, 2 de novembro de 2016

A PROCISSÃO DAS ALMAS



A PROCISSÃO DAS ALMAS
Os relâmpagos anunciavam que a tempestade não tardaria a cair naquela pista escura e solitária. E para espantar a solidão e o sono, dois caminhoneiros conversam pelo rádio:
— Foda, esse tempo! Mas me diz aí, ô Peão: largou os estudos pra fritar pneus na estrada?
— Sim, pois homem que é homem tem que viajar pelo menos uma vez de caminhão na vida. Então pedi pro velho pra ir sozinho até Belém. Ida e volta.
Wagão, da sua Scania vermelha, comenta:
— Tá certo. E que quarta-feira de cinzas fria, hein; queria uma companhia feminina nem que fosse da Loira de Branco! — disse Wagão, dando risadas.
— loura de Branco?
— Então você não conhece a história da Loira que aparece nos caminhões de madrugada vestida de branco, e faz os caminhões tombarem na estrada? E ainda tem a história das cruzes. Todo caminhoneiro experiente que trafega por aqui sabe disso.
— Está falando dessas cruzes que vemos pelos canteiros da rodovia?
— Exato. E a história é macabra. O fato é que um ônibus vindo do interior, lotado de romeiros, indo pra Belém, de madrugada deu de encontro a um caminhão cheio de madeira. Mais ou menos umas 70 pessoas morreram no local, na época foi o maior acidente com vitimas. Eu tenho muito medo de passar lá. Dizem que em noite de trovoada, se você desligar os faróis, a luz dos trovões ilumina a procissão te seguindo pelo retrovisor. Também dizem que a tal lourinha estava no ônibus, mas não pra procissão. Estava indo se casar. O tal vestido branco é um vestido de noiva. Dizem que eles cantam quando um motorista está marcado pra morrer.
— Conversa fiada, homem! Quer saber o que me dá medo, não são histórias de gente morta, não, é gente viva: roubo de carga.
— O problema é que o corpo da dita lourinha não foi encontrado nos destroços do acidente e que agora ela entra sem permissão nos caminhões a fim de casar e dar o rabo no inferno. Quando o pobre dá por conta ela está lá, na boleia do caminhão, olhando para ele com sua cara de defunta. E quando o sujeito é novo, tipo você, ela tenta perder a virgindade com ele. Por isso eles tombam. Por isso que não existem muitos carreteiros da sua idade aqui. Eles têm medo dela.
— Tá bom. Mas vamos ao que interessa: quantas horas pro prêmio?
— Setenta e duas, sem arrebite.
O tempo fechou ainda mais depois da meia noite. Os relâmpagos ao longe foram se aproximando e uma lenta canção era cantada pelo vento, que estava cada vez mais forte. Foi quando Wagão falou pelo rádio, com a voz trêmula:
— Eu vi, cara, eu vi!
— Viu o quê?
— A procissão!, a procissão! Quando parei para tirar água do joelho, entrei na cabine e olhei rapidamente para o retrovisor e vi, quando um relâmpago iluminou de relance, o que parecia uma procissão de sombras a uns dois quilômetros de distância. Quase me mijei nas calças, cara!
— Nossa!, ai que medo!
— Mas eu vi, cara. É sinal que estamos nos aproximando das cruzes! Você não acredita mesmo nessas coisas, né?
— Não — disse, Zezinho, pensando que Wagão se divertia à custa de sua inexperiência, lhe aprontando uma peça, e continuou:
— E aí, peão, vou pisar mais fundo, ainda não consigo lhe ver!
— E eu não vejo trovoada assim já faz tempo, desde que vi os pedaços de um amigo que bateu a tantos por hora. Passei por lá e era só resto de bunda, de perna, tinha lasca de gente grudada no asfalto. Usaram uma pá pra catar os bifes.
Finalmente, passaram pelas Cruzes sem notar. Começou a chover a partir de lá. Madrugada. Três e meia da manhã. Foi quando problemas no rádio, por causa dos trovões cada vez mais próximos, se fez notar:
— Wagão... acho que bati... em algo... Do la... de fora — disse Zezinho assustado, com sua fala entremeada por ruídos do rádio.
— O quê?
— Não aguento mais, Wagão! Não dá, não dá. Tem uma.... aqui....me.... mais rápido.
— Tem o quê? Não consigo entender. Ainda falta muito. Vamos dormir. Tem um posto ali no ponto mais alto do morro. Tá abandonado, mas o chuveiro ainda serve. vou lhe esperar lá, e lá a gente espera a tempestade passar.
— Em ... lugar. Vou ... ela descer. Está... em mim...
 O rádio não voltou mais a pegar. Wagão continuou a seguiu em frente. Até que, depois de quase uma hora, chegou ao posto de gasolina abandonado. Parou o caminhão, e como estava totalmente exausto depois de vinte e quatro horas sem parar, adormeceu. Trovões ensurdecedores passaram acalentar seu sono.
Por fim os relâmpagos cessaram. Wagão acordou uma hora depois com fortes batidas em sua porta.
Desceu e procurou pelo caminhão do amigo: “Me acordou e já pegou estrada. Quer mesmo o prêmio”. Só pode ter sido o garoto.
Foi até os chuveiros e se meteu na água fria. Ouviu o último chuveiro do espaçoso banheiro ligar.
— Ô amigo, você viu um caminhão parado aí com o meu? Descendo aí a estradinha? Um rapaz novo dirigindo. Ele até me acordou.
— Aqui não tem ninguém — e o chuveiro desligou. Alguns passos. Mais nada.
Wagão sai, acende um cigarro. Sobe e volta pra estrada. Tenta o rádio e nada. Falta pouco pra Belém.
Horas depois, ouve um último chiado no rádio, na frequência de Zezinho, mas era apenas um chiado. Não almoçou, não parou, pisou fundo até Belém. Nenhum sinal do amigo.
Quando chegou na firma, teve a notícia de que um caminhoneiro, carregando remédio, tinha dormido no volante, descido o barranco do posto velho do morro e se espatifado contra uma árvore enorme. A carga esmagou a cabine e o motorista morreu na hora. O volante teve que ser tirado de dentro do seu peito. Primeira viagem do rapaz. Vinte e dois anos. O mais estranho é que quando o encontraram e serraram a cabine, sentiram um estranho perfume de mulher.

— Conto de Marcos Salvattore, adaptado por Bosco Silva 

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