A
PROCISSÃO DAS ALMAS
Os
relâmpagos anunciavam que a tempestade não tardaria a cair naquela pista escura
e solitária. E para espantar a solidão e o sono, dois caminhoneiros conversam
pelo rádio:
—
Sim, pois homem que é homem tem que viajar pelo menos uma vez de caminhão na
vida. Então pedi pro velho pra ir sozinho até Belém. Ida e volta.
Wagão,
da sua Scania vermelha, comenta:
—
Tá certo. E que quarta-feira de cinzas fria, hein; queria uma companhia feminina
nem que fosse da Loira de Branco! — disse Wagão, dando risadas.
—
loura de Branco?
—
Então você não conhece a história da Loira que aparece nos caminhões de
madrugada vestida de branco, e faz os caminhões tombarem na estrada? E ainda
tem a história das cruzes. Todo caminhoneiro experiente que trafega por aqui
sabe disso.
—
Está falando dessas cruzes que vemos pelos canteiros da rodovia?
—
Exato. E a história é macabra. O fato é que um ônibus vindo do interior, lotado
de romeiros, indo pra Belém, de madrugada deu de encontro a um caminhão cheio
de madeira. Mais ou menos umas 70 pessoas morreram no local, na época foi o
maior acidente com vitimas. Eu tenho muito medo de passar lá. Dizem que em
noite de trovoada, se você desligar os faróis, a luz dos trovões ilumina a procissão
te seguindo pelo retrovisor. Também dizem que a tal lourinha estava no ônibus,
mas não pra procissão. Estava indo se casar. O tal vestido branco é um vestido
de noiva. Dizem que eles cantam quando um motorista está marcado pra morrer.
—
Conversa fiada, homem! Quer saber o que me dá medo, não são histórias de gente
morta, não, é gente viva: roubo de carga.
—
O problema é que o corpo da dita lourinha não foi encontrado nos destroços do
acidente e que agora ela entra sem permissão nos caminhões a fim de casar e dar
o rabo no inferno. Quando o pobre dá por conta ela está lá, na boleia do
caminhão, olhando para ele com sua cara de defunta. E quando o sujeito é novo,
tipo você, ela tenta perder a virgindade com ele. Por isso eles tombam. Por
isso que não existem muitos carreteiros da sua idade aqui. Eles têm medo dela.
—
Tá bom. Mas vamos ao que interessa: quantas horas pro prêmio?
—
Setenta e duas, sem arrebite.
O
tempo fechou ainda mais depois da meia noite. Os relâmpagos ao longe foram se
aproximando e uma lenta canção era cantada pelo vento, que estava cada vez mais
forte. Foi quando Wagão falou pelo rádio, com a voz trêmula:
—
Eu vi, cara, eu vi!
—
Viu o quê?
—
A procissão!, a procissão! Quando parei para tirar água do joelho, entrei na
cabine e olhei rapidamente para o retrovisor e vi, quando um relâmpago iluminou
de relance, o que parecia uma procissão de sombras a uns dois quilômetros de
distância. Quase me mijei nas calças, cara!
—
Nossa!, ai que medo!
—
Mas eu vi, cara. É sinal que estamos nos aproximando das cruzes! Você não
acredita mesmo nessas coisas, né?
—
Não — disse, Zezinho, pensando que Wagão se divertia à custa de sua inexperiência,
lhe aprontando uma peça, e continuou:
—
E aí, peão, vou pisar mais fundo, ainda não consigo lhe ver!
—
E eu não vejo trovoada assim já faz tempo, desde que vi os pedaços de um amigo
que bateu a tantos por hora. Passei por lá e era só resto de bunda, de perna,
tinha lasca de gente grudada no asfalto. Usaram uma pá pra catar os bifes.
Finalmente,
passaram pelas Cruzes sem notar. Começou a chover a partir de lá. Madrugada.
Três e meia da manhã. Foi quando problemas no rádio, por causa dos trovões cada
vez mais próximos, se fez notar:
—
Wagão... acho que bati... em algo... Do la... de fora — disse Zezinho
assustado, com sua fala entremeada por ruídos do rádio.
—
O quê?
—
Não aguento mais, Wagão! Não dá, não dá. Tem uma.... aqui....me.... mais rápido.
—
Tem o quê? Não consigo entender. Ainda falta muito. Vamos dormir. Tem um posto
ali no ponto mais alto do morro. Tá abandonado, mas o chuveiro ainda serve. vou
lhe esperar lá, e lá a gente espera a tempestade passar.
—
Em ... lugar. Vou ... ela descer. Está... em mim...
O rádio não voltou mais a pegar. Wagão
continuou a seguiu em frente. Até que, depois de quase uma hora, chegou ao
posto de gasolina abandonado. Parou o caminhão, e como estava totalmente
exausto depois de vinte e quatro horas sem parar, adormeceu. Trovões
ensurdecedores passaram acalentar seu sono.
Por
fim os relâmpagos cessaram. Wagão acordou uma hora depois com fortes batidas em
sua porta.
Desceu
e procurou pelo caminhão do amigo: “Me acordou e já pegou estrada. Quer mesmo o
prêmio”. Só pode ter sido o garoto.
Foi
até os chuveiros e se meteu na água fria. Ouviu o último chuveiro do espaçoso
banheiro ligar.
—
Ô amigo, você viu um caminhão parado aí com o meu? Descendo aí a estradinha? Um
rapaz novo dirigindo. Ele até me acordou.
—
Aqui não tem ninguém — e o chuveiro desligou. Alguns passos. Mais nada.
Wagão
sai, acende um cigarro. Sobe e volta pra estrada. Tenta o rádio e nada. Falta
pouco pra Belém.
Horas
depois, ouve um último chiado no rádio, na frequência de Zezinho, mas era
apenas um chiado. Não almoçou, não parou, pisou fundo até Belém. Nenhum sinal
do amigo.
Quando
chegou na firma, teve a notícia de que um caminhoneiro, carregando remédio,
tinha dormido no volante, descido o barranco do posto velho do morro e se
espatifado contra uma árvore enorme. A carga esmagou a cabine e o motorista
morreu na hora. O volante teve que ser tirado de dentro do seu peito. Primeira
viagem do rapaz. Vinte e dois anos. O mais estranho é que quando o encontraram
e serraram a cabine, sentiram um estranho perfume de mulher.
— Conto de Marcos Salvattore, adaptado por Bosco Silva —
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