sábado, 24 de novembro de 2012

A PEGADINHA DE DEUS E A PELEJA DOS ANJOS (de Bosco Silva)



DEUS, MAIS UMA VEZ, HAVIA DECIDIDO DESTRUIR O MUNDO, argumentando que o mundo não tinha mais jeito, que tinha se entregado a mais extrema maldade e a todas as formas de pecado; chamou então dois anjos a fim de concretizar sua vontade. Porém estes intercederam a favor dos homens, dizendo a Deus que nem tudo estava perdido. Deus então lhes propôs um desafio: se em mil anos, encontrassem um único homem santo, que pudesse ser convencido por eles de sua santidade, o mundo, então, seria por Deus poupado e pertenceria aos dois anjos; do contrário, que fosse por eles, imediatamente, destruído.
E após aceitarem o desafio, os dois anjos, desconfiados da proposta de Deus, puseram a conversar entre si, no alto de uma nuvem, bem longe dos ouvidos do Todo-Poderoso:
- Bem que Deus em vez de se preocupar com o mundo poderia deixá-lo logo para nós. Teríamos então alguns bons lugares para passarmos alguns anos calmos de férias, hein?
- Calmos?! Não sei não, lembre-se que é a Terra, a coisa lá embaixo não está tão calma assim. Talvez fosse melhor outro planeta; quem sabe, com menos gente.
- Mas gosto da Terra, com todas essas mulheres gostosas vestidas de freiras, são minhas preferidas; sabe como é, me amarro em mulheres discretas e de uniformes.
- Sim, mas você sabe como é Deus: você acha que Ele irá perder a chance de ter mais gente para bajulá-Lo. Com certeza irá destruir este velho mundo e criar um novo mundo com muito mais gente pronta a cultuá-Lo sem a menor crítica, como sempre fez; porque você sabe, Deus gosta bem mais de destrui-lo do que consertá-lo: não tem muita paciência mesmo. Lembre-se do dilúvio e de Sodoma e Gomorra.
- É. E, se Ele quer mesmo ser mais cultuado, então para isso terá que diminuir ainda mais a inteligência que deu ao homem.
- Eles já possuem tão pouco.
- Você sabe que Deus odeia uma crítica.
- Sei, Ele possui um ego infinito.
- Mas são mil anos. E convencer alguém santo de sua santidade parece ser tarefa fácil – disse o otimista anjo Rafael.
- Sim, mas você também sabe como são os homens: será difícil encontrar alguém santo neste mundo cheio de maldades e pecados sem fim de hoje, com toda essa música que chamam de funk e essas mulheres-frutas e todas essas periguetes também, Rafael – comentou o exigente anjo Gabriel, olhando o povo do alto.
- E não esqueça também dessa tal de internet.  
- Claro, um verdadeiro portal pro inferno.
- Mas será que não encontraremos unzinho sequer?
- Sei não – disse o desconfiado anjo Gabriel.
- Notei algo de estranho na proposta de Deus, Ele me pareceu tão seguro!
- Sim. Lembro-me de tê-lo visto assim apenas na idade média, quando foi defendido por São Tomás de Aquino.
- Também pudera com aquele livro de mais de mil páginas dele; todos concordavam com ele, só por que não tinham saco de lê-lo por inteiro.
- Não esqueça também da Inquisição.
E após o anjo Rafael balançar a cabeça em afirmativo, disse:
- Bem, Gabriel, apesar do ego infinito do Todo-Poderoso, Ele não é tão bobo assim.
- É. Mas também pudera com todos esses milhares de teólogos a defendê-Lo!
- O que Deus estará aprontando, hein Rafael? O que Ele estará aprontando agora? – ficaram a pensar os anjos Gabriel e Rafael com expressão de dúvida em seus rostos.



Puseram-se então a examinar, anos após anos, décadas após décadas, séculos após séculos, atos sinceros de bondade, que pudessem definir alguém como santo, porém, após todos estes anos, nem um ato sequer de bondade havia sido, por eles, encontrado. Até que uma noite, desanimados, ao passarem por uma rua, viram um carro chocar-se a um poste, e três pessoas correrem em direção ao veículo, despertando assim a atenção de ambos:
- Veja Gabriel, ainda há bondade nos corações dos homens. Veja quantos estão indo ajudar! – exclamou Rafael.
- Bem, não tomemos decisões precipitadas, Rafael. Vejamos o que isso dará – respondeu o precavido anjo Gabriel.
Os três homens chegaram ao carro destroçado, carregaram o motorista sangrando para fora do veículo, e um pôs-se a vasculhar seus bolsos, enquanto os outros entravam no veículo.
Rafael, sempre otimista, comentava: “Isso, isso, isso, procurem por seu endereço e telefone, sua família precisa ser avisada”. Calando-se, em seguida, para ouvir seus diálogos.
- E aí, encontraram algo? – disse o sujeito ao lado do motorista aos dois homens que haviam acabado de sair do carro.
- Sim, um celular e o aparelho de som – respondeu um deles, com os objetos nas mãos.
“Aparelho de som?” – repetiu o anjo Rafael, já desconfiado, mudando imediatamente sua expressão de alegria para perplexidade.
- E você? – perguntou um dos homens que havia saído do carro.
Nesse momento, o homem que havia vasculhado os bolsos do condutor do veículo pôs-se a mostrar a carteira que havia encontrado nos bolsos do motorista, com gestos de alegria, gestos que aumentaram muito mais quando o sujeito mostrou o bolo de dinheiro que havia na carteira daquele. Em seguida, após um deles tirar, ainda, os sapatos da vítima, foram embora deixando o motorista do veículo em frangalhos, sangrando muito. Dizendo, entre si:
- Que noite de sorte, hein?
- E como!
“Hei, hei, voltem aqui, ele precisa de ajuda” – gritou Rafael, um grito inútil de quem não poderia ser ouvido.
- Tá vendo, Rafael, não lhe disse: a bondade parece ser rara entre os homens.
- Sim, mas ainda não percamos a esperança neles, Gabriel – disse Rafael com um grande brilho no olhar. - Há de encontrarmos um homem santo.
- Não temos toda a eternidade para isso, Rafael – respondeu-lhe o anjo Gabriel com ironia.
Ao passarem por um bar, viram um homem bêbado caído ao chão, e ficaram a examinar o ambiente.
- Vamos, vamos embora – sugeriu Gabriel. - Parece-me que aqui não encontraremos um ato de bondade.
- Calma, aguardemos. A bondade pode estar onde menos esperamos – disse Rafael, sempre complacente.
Minutos depois, um homem sóbrio levantou o bêbado do chão, e o pôs em uma cadeira.
- Veja! – exclamou Rafael com alegria –, encontramos, finalmente, um homem virtuoso.
- Calma Rafael, aguardemos, aguardemos... – disse Gabriel com o semblante sério.


Após alguns minutos, o bêbado, pouco a pouco, se pôs a inclinar-se na cadeira, até que finalmente caiu desta, indo com sua testa de encontro a uma tampa de cerveja que estava no chão, que lhe levou imediatamente à morte.
- Tá vendo, Rafael, o que sempre lhe digo: os homens sempre fazem o mal, até mesmo quando não querem – disse o sempre desconfiado anjo Gabriel, vendo a alma do bêbado desprender-se de seu corpo e maldizer aquele que lhe tinha ajudado.
- Sim, mas o gesto teve como origem um ato de bondade, de proteção.
- E o que adiantou se tal ato teve a morte como fim? Não teria sido melhor se ele tivesse continuado no chão?
- Sim, mas o que valeu foi a intenção.
- Para quê? Para levar-lhe a um caixão frio?
- Tomemos apenas sua intenção, Gabriel, apenas sua intenção – intercedeu o anjo Rafael em favor dos homens. - Ele jamais poderia prever seu ato.
- Então de que vale a eles a bondade, se não podem prever as consequências de seus próprios atos?
- Sei que bondade sem conhecimento não é nada, mas...
- Ora, ora, Rafael, não seja exageradamente otimista com eles; além de tudo, você viu que o bêbado só foi erguido por que impedia a passagem.
O anjo Rafael calou-se tristemente e, desapontado, seguiu com Gabriel até a frente de uma igreja. Lá, viram um homem jogar esmolas a um mendigo.
- Finalmente, um ato de bondade – comentou Gabriel, pela primeira vez otimista.
- Eu não seria tão otimista assim – disse Rafael, surpreendentemente, em um tom pessimista.
- Por quê? – inqueriu imediatamente um perplexo Gabriel.
- Porque não creio que seja virtuoso quem pratica o bem visando apenas o bem de si próprio.
- Como assim?
- Ora Gabriel, não há virtude em fazer o bem visando as delícias de um paraíso, assim como também não há virtude em deixar de cometer um crime por medo do castigo.
Gabriel ficou, por alguns instantes, pensativo, até que um diálogo chamou-lhes a atenção.
Um jovem pôs-se a discutir com o religioso que havia a pouco dado esmolas ao mendigo, dizia-se ser um ateu convicto. E quando o mendigo, sujo e assustado, escorregou a seus pés, este imediatamente levantou-o.
O anjo Gabriel, então, gritou: ”Eis nosso santo!”.
- Ele é um ateu, Gabriel!
- Claro, pois apenas um bondoso ateu poderia exercer a bondade pura: veja, ele nada tem a ganhar, nem paraíso ou favor de Deus.
E completou:
- É como sempre dizes, Rafael, “a bondade pode está onde menos se espera”.
Gabriel e Rafael, como pedia a proposta de Deus, tentaram várias vezes convencer o ateu de sua santidade, mas o que, a princípio, lhes parecia fácil demonstrou-se terrivelmente difícil, pois aquele, como era de se esperar, jamais acreditou neles.
- Sabia que haveria alguma sacanagem de Deus por trás de tudo isso – comentou Gabriel, enquanto Deus, bem longe dali, se pôs a rir, abafando o riso com as mãos.   
- É, Ele sabia que um homem santo só poderia ser um ateu.
- Sim, e que seria impossível convencê-lo de sua santidade também.
E assim, não tendo alternativa, os anjos tiveram, finalmente, que destruir o mundo.


BUUUUUMMMMM!!!



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