HISTÓRIAS VAMPIRESCAS DE BELÉM
PARTE
III
Teatro
dos Vampiros
Cheguei,
mas uma vez, com o fim da tarde ao teatro, sob a doce luz que avermelhava o céu
por sobre as mangueiras da cidade, tal qual pálido sangue derramado. Leila
ainda não havia chegado, fiquei então a observar a bela estrutura do teatro, sua
grande entrada em arcos e colunas neoclássicas; suas escadarias em mármore
italiano, que conduziam a um belo saguão, com lustres e grandes espelhos de
cristais folheados a ouro, com pisos de madeira amazônica colados,
curiosamente, com cola feita da gurijuba, um peixe de nossa região.
O
Teatro da Paz era como um templo grego das artes em plena Amazônia; fruto de uma
época em que a cidade respirava luxo e exalava cultura. Inaugurado em 1878, quando
a elite paraense, enriquecida com a exportação de borracha para o mundo, se
aglomerava em volta de grandes artistas vindos de toda parte da Europa, capazes
de enfrentar a floresta amazônica para mostrar sua arte em seu belo palco. Era
o que dizia um pequeno panfleto, onde também pude ler que o concerto da noite
seria dedicado a Jeremiah Clarke, o obscuro compositor inglês suicida, o mesmo
que, curiosamente, havia composto a bela melodia que parecia perseguir-me até
mesmo em meus sonhos.
Por
fim, Leila chegou à noite, alguns minutos antes do concerto, sob a tradicional
chuva do fim de tarde, que caia docemente sobre a cidade das mangueiras. Os
pingos d’água em seus cabelos cintilavam em meio às luzes do teatro, deixando-a
mais linda ainda, apesar de seus óculos turvos e molhados.
Sentamo-nos
enfrente ao palco, e fiquei a imaginar quantas almas não sentiram os mesmos
sentimentos que eu sentia naquele momento em estar alí. Sentia-me também,
curiosamente, como se estivesse sendo observado. Foi quando ela me disse:
“espero que hoje não durmas”.
Antes
do concerto começar, um dos músicos se pôs a explicar ao público que Jeremiah
Clarke havia se inspirado em um famoso quadro do pintor Hieronymous Bosch, “O
Jardim Dos Prazeres da Terra”, em que o pintor holandês retrata as maravilhas
do paraíso em contraste com as maldições do inferno.
O Jardim dos Prazeres da Terra |
A
música de Jeremiah Clarke era doce e vigorosa; sombria e luminosa; com melodias
capazes de nos elevar ao mais doce paraíso e também ao mais profundo dos
infernos; como um símbolo da dualidade de todas as coisas: uma luta entre seus
contrastes, como entre o bem e o mal, a luz e as trevas, o amor e o ódio.
Ao
término da primeira parte do concerto, ausentei-me furtivamente, indo ao
banheiro. E ao me demorar, e ouvi a música, notei então que o concerto
recomeçara. Apressei os passos no pequeno corredor de volta. Porém, estranhamente,
era como se a pequena distância do corredor de outrora houvesse se multiplicado.
Apressei ainda mais os passos... Todavia era como se a distância houvesse se
multiplicado ao infinito. Foi quando ouvi pequenos passos próximos de mim. Um
vulto negro havia cruzado o corredor ao meu lado. Vi então que era um cão, o
mesmo cão de meus sonhos a rosnar atrás de mim. Ele se pôs a mover-se em minha
direção. Tentei fugir. Foi quando abri uma das inúmeras portas do teatro. Entrei,
e ao fechá-la, ofegante, ouvi música cantada em uma língua estrangeira, que eu,
estranhamente, podia entendê-la; ela dizia:
“A Vingança do inferno arde em
meu coração.
Morte e desespero queimam em torno de mim!...”
Guiado
pelo belo cântico que ouvia, vi que era o mesmo palco do teatro, porém com um
público diferente, com homens e mulheres, mais uma vez, trajando roupas antigas.
E no palco, acompanhada pelos mesmos músicos que a pouco estava a ouvi-los, uma
mulher cantava a famosa ária da Rainha da Noite, da ópera A Flauta Mágica, de
Mozart, cujos seus primeiros versos eu havia ouvido. E ao me aproximar do
palco, vi que era ela quem cantava, com seu vestido esvoaçante negro. Ao término,
o público a aplaudiu de pé, jogando rosas vermelhas aos seus pés, que se
transformavam em sangue. Foi quando ela fixou os olhos em mim; voltei então ao
corredor. E ao abrir a porta, estava de volta ao banheiro. Confuso e assustado,
molhei o rosto na pia dezenas de vezes, precisava despertar-me de mais um
terrível pesadelo. E ao olhava-me no espelho, lá esta ela no mesmo, a me olhar
com seus olhos vermelhos. Ela agarrou-me com as mãos e me puxou para dentro do
espelho...
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