terça-feira, 3 de maio de 2016

A REENCARNAÇÃO DE BENJAMIN BREEG - Parte I





A REENCARNAÇÃO DE BENJAMIN BREEG

PARTE 1 — HARRY E SEUS NOVOS ANTEBRAÇOS


Quando o telefone tocou, naquela madrugada, foi para uma agradável surpresa:
— Harry, aqui é seu médico — com sua prótese mecânica, Harry atende com dificuldade o telefone —, temos uma boa notícia para você: encontramos finalmente um doador. Precisamos que você esteja no hospital, imediatamente.


Há seis anos que Harry havia perdido os antebraços em um acidente automobilístico. E nesses anos, muitas foram às vezes que tentara o uso de próteses, mas os resultados nunca foram os melhores. E por mais que imitassem o formato e a cor da pele humana, sempre alguém lhe perguntava se queria ajuda. De modo que aquelas próteses estavam longe de substituírem verdadeiramente seus antebraços. Por isso, tinha entrado para o programa de transplante de membros humanos. Um programa que se iniciava e que ainda estava em testes, pois o perigo de rejeição de tecidos era enorme; além da dificuldade de se encontrar um doador compatível.
Contudo, a cirurgia foi um sucesso, e logo Harry estava pronto para começar as seções de fisioterapia. E a possibilidade de rejeição de tecido lhe obrigaria a tomar medicamentos para o resto da vida, enquanto não houvesse um modo melhor de evitá-la. Porém, os meses de fisioterapia se passavam com enormes progressos, muito acima das expectativas. Todavia, foi quando coisas estranhas começaram a acontecer.



A primeira sensação que sentiu ao mover suas novas mãos e cariciar sua esposa pela primeira vez com mãos verdadeiras, foi como se quem a cariciasse não fosse ele, mas outra pessoa. Havia nisso um misto excitante de alegria e a sensação de traição, pelas mãos serem de outro homem.
Contudo, mesmo com todas as dificuldades de adaptação, sua vida transcorria alegrimente, com sua esposa sempre pronta a lhe reconfortar a qualquer momento.
— Helen, você se recorda de como eram as palmas das minhas mãos antigas?
— Sim, querido. Eram como essas — disse Helen acariciando suas novas mãos.
— Não falo do formato, mas de suas linhas. Não tinham uma linha da vida menor?
— Parece que sim. Significa então que você viverá muito mais agora, querido!
— Pena que não foram de muita serventia para seu antigo dono.
— Mas para você será.



Ao acordar, Harry sempre tinha as mãos sobre seu sexo, ou de sua esposa. Se por um lado, para ele isso era natural, já que se devia ao ato de ter de volta tal possibilidade; por outro, lhe despertava uma estranha sensação: era como se suas novas mãos, aos poucos, se tornassem independentes de sua vontade, como se estivessem descobrindo seus corpos; causando-lhe sensações perturbadoras. O que o levou a consultar um psicólogo.  
— Bem, senhor Harry, alguns pacientes sentem que ao receberem partes de corpos que não são seus, juntos destes lhes parecem vir também uma parte da personalidade de seus antigos donos. Isso me parece ser, sem sombra de dúvida, um produto de suas imaginações. O que não deve lhe preocupar. E assim como há uma readaptação destes órgãos aos corpos de seus novos donos, deve haver também uma readaptação psicológica de seus novos donos a eles. Com o tempo estas sensações devem desaparecer. Não se preocupe — disse-lhe o psicólogo.
Por mais que as palavras do especialista fossem confortadoras, a sensação de ter partes de outra pessoa se tornava cada dia mais perturbador para Harry. E embora achasse que poderia vencê-la e se adaptar a esta nova realidade dos tempos modernos, a verdade era que Harry sentia-se cada vez mais impressionado com o fato. O que o levava a ter sonhos com o antigo dono de seus antebraços. Um sonho recorrente passou a dominá-lo, em que o morto, sem os antebraços, vinha-lhe pedir seus antebraços de volta. Harry acordava em pânico.
Foi também nesta época que um novo comportamento estranho começou a dominá-lo.
Durante suas intimidades com sua esposa, o clímax era inevitavelmente acompanhado pelo desejo incontrolável de esganá-la. O que o levou cada vez mais a evitá-la. E embora as palavras do psicólogo, não obstante, ecoassem em sua mente, a ideia anterior ainda lhe perturbava terrivelmente. Levando-o ao desejo mórbido de conhecer seu doador.
A tarefa não era nada fácil. O hospital possuía uma forte política de privacidade. Os doadores tinham seus nomes, como o resto de seus dados, guardados sob sete chaves. Porém, não parecia a ele ser de tal forma que não pudesse ser tentado.
Lembrou-se então de um velho amigo de escola, exímio arrombador que agora se entregara integralmente a esta arte, Thomas Shubb. E imediatamente pôs-se a contactá-lo; encontrando-o em um bar.
— Soube que sofreste uma operação, qual foi Harry? — inquiriu o amigo.
— Transplante.
— Coração, suponho?
— Sim.
— Menos mau.
— Por quê?
— Penso que seria pior algo que mante-se contato com outra pessoa, como um pênis, por exemplo. Não suportaria. Seria como se houvesse outro homem entre eu e minha esposa, embora minha mulher, certamente, adoraria. Sabe como é, não pelo tamanho, mas pela novidade; após alguns anos elas tendem a desejar outros — disse Shubb ostentando tímido sorriso amarelo nos lábios, e continuou:
— E naquelas horas de solidão, já pensou? Seria como se eu estivesse tocando umazinha para o morto!
— És um sacana, Shubb. Mas vamos ao que me trouxe aqui. Gostaria que fizesse um trabalho para mim.
— Somente um trabalho sujo traria você até mim, Harry. Se é sobre sua mulher, perdoe meu comentário – com Shubb ostentando novamente um novo sorriso amarelo nos lábios e pensando se tratar de um caso de traição.
— O assunto é bem outro, embora a hipótese do trabalho sujo você tenha acertado em cheio!
— Então, diga.
— Gostaria que você obtivesse o nome do doador. Seus dados só podem ser obtidos de forma ilegal.
— Política de privacidade! Não aceitam devolução, hein? —  Com Shubb dando uma sonora gargalhada.
— É que eu gostaria muito de agradecer à família dele. Seria possível?
— Nada que um bom dinheiro não compre.
— Evidentemente. Quanto?
— Três mil. Metade antes metade depois.
Harry assinou um check e, junto com seus dados, deu-o a Shubb.
— Bem, nos encontraremos brevemente, Harry.
Os dias transcorreram, sem nenhuma novidade, com Harry e seus inconvenientes, até que, finalmente, Shubb ligou:
— Harry, venha pro mesmo lugar de antes; traga o pagamento; temos novidade.
Harry pôs-se imediatamente a caminho, e com a ajuda de um táxi estava agora no lugar escolhido.
— Quero que saiba que não foi nada fácil. A coisa é bem guardada, mas nada que alguns subornos, e arrombamentos, não resolvessem.
— Qual o nome?
— Seu nome era Paul Benjamin Breeg. Um doador da cadeia de Cottonfield, que foi morto na cadeira elétrica... Bem, aqui está todas as informações que me foram possíveis.
— E aqui, seu pagamento.
— Pelo menos, pode-se dizer que você ganhou uma carga nova de energia, não acha Harry? — com Shubb às gargalhadas.
Enquanto Harry caminhava em busca de um novo táxi, algumas coisas agora pareciam fazerem sentido para ele, como as leves marcas que haviam em seus pulsos, ou melhor, do morto. Pareciam serem de queimaduras, como aquelas que se viam em documentários sobre pena de morte na cadeira elétrica, devido a condução da eletricidade por meio de gotas de suor.
Harry entendia agora porque tudo era feito sob extremo sigilo. Era muito fácil alguém se impressionar com a história do morto. Parecia que ele não tinha dado a devida atenção às palavras do psicólogo. E qual a diferença que havia entre as mãos de um assassino e as que eram suas? Todas eram comandadas pelo mesmo cérebro, seu, e isso que agora importava. Todas eram apenas instrumentos de algo mais importante, onde, de fato, residia a consciência, a personalidade e a vontade. Além do mais, o tratamento ia tão bem, ele podia fazer coisas que antes não podia; coisas simples mais extremamente importante, como escovar os próprios dentes, ou acariciar sua bela esposa. E, além disso, havia também a possibilidade de que outros como ele se dessem bem com o novo tratamento. Não era correto atrapalhar uma pesquisa que ia tão bem, com seus medos infantis. E talvez Shubb não fosse um idiota completo, Helen nunca tivera outro homem, casou-se com seu primeiro namorado, e a possibilidade de estar com um homem que é a mescla de outro, talvez atiçasse, inconscientemente, seus desejos, como um ménage atrois inconsciente... "Mas isso é algo doentio!, mórbido!, seria o  mesmo que transar com um morto, ou pelo menos com partes de um; pura necrofilia!" — pensou.
Harry nunca pensara nisso, nunca meditara sobre tantas possibilidades, ou perversidades consequentes; a possibilidade de ter uma vida normal havia obscurecido todas elas. E era nisso apenas que devia pensar agora.    
Então, Harry, ao chegar em casa, desprezou aquele papel dentro de um fundo escuro de uma gaveta qualquer.

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