domingo, 8 de maio de 2016

CONTO: O SEGREDO DA GUILHOTINA



O SEGREDO DA GUILHOTINA
de Villiers de L'Isle-Adam (1838 - 1889)
Para saber se a cabeça de uma pessoa é capaz de manter a consciência quando separada do corpo por meio do corte preciso da guilhotina, um médico propõe a um homem preste a perder a cabeça, que pisque três vezes com o olho direito para confirmar que ele mantem a consciência mesmo após ter a cabeça cortada. Porém, algo sai errado na sinistra experiência. Descubra lendo esta que é uma das histórias mais belas e assustadora da literatura, do francês Villiers de L’Isle-Adam.
Às 7 horas da noite de 5 de junho de 1864, o Dr. Edmundo Couty de La Pommerais, que fora transferido das prisões da Conciergerie à da Roquette, estava sentado na cela dos condenados à morte.

Taciturno, imóvel, com os olhos parados, apoiava-se numa cadeira. A vela sobre a mesa iluminava seu rosto pálido, paralisado. A dois passos dele um carcereiro com os braços cruzados, encostado na parede, o vigiava.
Quase sempre, prisioneiros eram obrigados a trabalhar todos os dias e do soldo que recebiam era descontado pela administração, como prioridade, o custo de um caixão no caso de morte. Mas os condenados à morte não tinham trabalho obrigatório.
No rosto do prisioneiro não havia nem medo nem esperança. Tinha 34 anos, moreno, de estatura mediana, forte; nas têmporas os cabelos começavam a clarear; o olhar instável, a testa larga, mãos agitadas; a fisionomia calma e os modos distintos.
No Tribunal do Sena, a defesa do advogado Lachaud, apesar de brilhante, não alterara na consciência dos jurados a impressão transmitida pela acusação do senhor de Vallés. E La Pommerais, acusado de ter ministrado, com premeditação e fim delituoso, doses mortais de digitalina a uma senhora sua amiga – a Sra. De Pauw – ouviu a sentença de morte, conforme artigos 301 e 302 do Código Penal.
Naquela noite ele ainda ignorava a rejeição do recurso da pena e de qualquer audiência solicitada pelos seus familiares. Seu defensor foi atendido com displicência pelo imperador. O venerável abade de Crozes, que a cada execução suplicava branduras nas Tulherias, voltara sem nada conseguir. Comutar uma pena de morte poderia aparecer como uma abolição.  Abrir-se-ia um precedente muito grave. O carrasco fora avisado que a execução seria no dia 9, às 5 horas da manhã.
Subitamente, um estrepitoso bater de coronhas de fuzil ressoou no corredor, a fechadura rangeu, a porta se abriu e o diretor da Roquette surgiu acompanhado de visitante que La Pommerais reconheceu como sendo Armand Velpeau, ilustre cirurgião. A um sinal o carcereiro saiu e o diretor, após formal apresentação entre os dois colegas, também se retirou.
Velpeau alcançava seus 60 anos. No apogeu da sua fama, herdeiro da cátedra de Larey no Instituto, primeiro professor de clínica cirúrgica de Paris, era tido, pelos trabalhados executados, um luminar da patologia da época.
Depois de breve silêncio, ele disse:
— Entre médicos as condolências são inúteis. Por outro lado, uma moléstia – da qual morrerei nos próximos dois anos, ou, no máximo, dois e meio – me classifica, com alguns meses de distância do colega, na categoria dos condenados à morte. Vamos então ao que interessa.
— Então, segundo o colega e professor, a minha situação é sem esperança? — interrompeu La Pommerais.
— Teme-se — respondeu, simplesmente, Velpeau.
— Assim, a minha hora está marcada?
— Eu ignoro. Como ainda não está nada concretizado, o colega pode contar com alguns dias.
La Pommerais enxugou a fronte pálida com a manga da sua roupa de prisioneiro.
— Seja o que for, estou pronto. Quanto antes acontecer, melhor.
— Se o seu recurso não foi até agora rejeitado — prosseguiu Velpeau — a proposta que venho fazer é condicionada. Se for salvo, tanto melhor, caso contrário…
— Caso contrário?…
Sem responder, Velpeau apoiou o dedo médio no pulso do jovem condenado.
— Senhor La Pommerais, — disse — sua pressão revela tratar-se de um homem muito calmo, de uma firmeza rara. O que pretendo propor ao colega, que deve ficar em segredo, pode parecer, dirigida desta maneira a um médico cheio de energia e bastante destemido, uma extravagância ou mesmo uma intenção maldosa. Mas, mesmo que ela possa consterná-lo, no primeiro instante, espero que o colega a leve em consideração.
— Tem toda a minha atenção — respondeu La Pommerais.
— O amigo não ignora — continuou Velpeau — que uma das questões mais interessantes da fisiologia moderna é saber se algum resto de memória, reflexão, sensibilidade, persiste no cérebro do homem, depois que a cabeça lhe é decepada.
Ante tal preâmbulo, o condenado assustou-se, mas recompôs-se em seguida:
— Quando o professor entrou, — respondeu — eu imaginei mesmo alguma coisa nesse sentido, mas que pudesse ser interessante para mim.
— O colega certamente está informado dos trabalhos escritos sobre tais problemas: de Sommering, de Sue, de Sédillot, e de Bichat, até os mais modernos.
— Certa vez assisti seu curso sobre dissecação no cadáver de um justiçado.
— Ah! E tem noções exatas, numa visão cirúrgica, sobre a guilhotina?
La Prommerais respondeu com frieza:
— Não.
— Hoje mesmo estudei detalhadamente a guilhotina – prosseguiu Valpeau, sem comoção. — É um instrumento perfeito. Age a um só tempo como foice e como clava, corta o pescoço do paciente num terço de segundo, exatamente. O decapitado, com a rapidez fulminante do golpe, não sente nenhuma dor, como a de um soldado que perde o braço na explosão duma granada. A sensibilidade, pela exiguidade do tempo, é nula.
— Talvez a dor venha depois…
— Bérard fez justiça a essa fantasia — interrompe prontamente Velpeau. — Estou plenamente convicto, baseado em numerosas experiências e observações generalizadas, que o rompimento instantâneo da cabeça resulta numa anestesia absoluta. Saber que a síncope, provocada pela repentina perda de quatro a cinco litros de sangue — frequentemente com força de expansão de projeção circular de um metro de diâmetro – deveria tranquilizar os mais medrosos. Quanto às reações inconscientes da estrutura carnal, mesmo que subitamente sustada no seu processo, não são indícios de sofrimento como no frêmito de uma perna cortada, cujos músculos e nervos se contraem depois da amputação, sem sofrimento do indivíduo. Eu digo que a febre nervosa da incerteza, a preparação da solenidade da execução, o assombroso despertar no dia fatal, se apresentam como os terríveis sofrimentos. Sendo, portanto, imperceptível a amputação, a dor real é imaginária. Um golpe assim violento na cabeça, não só não é sentido, como não lhe deixa a consciência do fato: a simples lesão das vértebras provoca absoluta insensibilidade. A rescisão da cabeça, o corte da espinha dorsal, a interrupção das relações orgânicas entre o coração e o cérebro, não seriam então suficientes para exterminar qualquer sensação, mesmo íntima ou vaga, da dor? Creio que sim.
— Pelo menos eu espero que sim, mais ainda do que o professor! — responde La Pommerais. — Ainda que haja qualquer sofrimento físico — apenas concebido pela desordem sensorial e o sufoco crescente da morte — não é isso que eu temo. E outra coisa…
— Pode me explicar? — perguntou Velpeau.
— Escute, — murmurou Velpeau, depois de um instante de silêncio. – Eu penso que os órgãos da memória e da vontade estejam isolados na passagem da lâmina! Temos experimentado muitos equívocos até hoje, para que se possa falar da inconsciência imediata de um decapitado. Quantos homens, questionados, têm se dedicado ao problema?… Memória dos nervos? Movimentos reflexos? Não. Recorda-se da cabeça daquele marinheiro que, na clínica Brest, um quarto de hora após sua decapitação, moveu seus maxilares, talvez voluntariamente, partindo em dois um tudo colocado entre eles?… Para não escolher apenas este exemplo entre tantos outros, a questão seria saber se existe ou não o ego deste homem, que contrai os músculos da cabeça exangue. Quem poderia revelar isso? Antes de oito dias eu vou saber, mas… também esquecerei!
— Depende mesmo do colega esclarecer a humanidade a respeito, definitivamente — respondeu calmamente Velpeau, olhos fixos no interlocutor. — E falemos claro, é exatamente por isso que estou aqui. Fui delegado por uma comissão dos mais eminentes colegas da Faculdade de Paris, junto ao colega, aqui, para fazer a última tentativa junto ao imperador.
— Explique… Não entendo… — respondeu perplexo La Pommerais.
— Senhor de La Pommerais! Em nome da ciência, que nos é muito importante e que não conta mais com inúmeros mártires magnânimos, venho reclamar — na hipótese de alguma experiência entre nós for possível — reclamar de todo seu ser toda a energia e a coragem que se possa conseguir de um ser humano. Se o seu recurso de graça for negado, o colega estará numa condição ímpar como médico, competente e lúcido, a sofrer uma suprema e fatal cirurgia. Assim, seria inestimável sua cooperação comunicação experimental, em busca de esclarecimentos sobre o corpo e as sensações. A ocasião deve ser aproveitada. No caso de um sinal de inteligência, identificado depois da execução, o colega vai deixar um nome cuja glória científica obscurecerá para sempre a lembrança da sua culpa social.
— Ah! — murmurou La Pommerais, pálido mas com um sorriso resoluto. — Começo a compreender!… E de que natureza seria a experiência? Choque elétrico? Excitação do nervo ciliar? Injeção de sangue arterial?
— Ao colega é dispensável salientar que, depois da triste cerimônia, o seu cadáver irá repousar em paz sob a terra e que nenhum dos nossos instrumentos serão usados nele — acrescentou Velpeau. — Ao cair da lâmina estarei de pé diante do colega, junto à guilhotina. O mais rápido possível, a sua cabeça passará das mãos do carrasco às minhas. Então, gritarei, claramente, ao seu ouvido: “Senhor de La Pommerais, pode neste momento abaixar três vezes a pálpebra do olho direito, conservando o outro aberto?” Se então puder o colega, quaisquer que sejam as outras contrações faciais, puder fazer o tríplice piscar de olhos, me avisando que me ouviu e compreendeu, provando assim o uso da memória e da vontade através do seu músculo palpebral, do nervo zigomático e da conjuntiva — controlando todo o horror e a onde de impressões do seu ser — bastará para iluminar a ciência e elevar nossas convicções. E seu nome, esteja certo disso, será anunciado de maneira que o colega será lembrado no futuro, não como um delinqüente, mas como um herói.
Diante destas palavras, La Pommerais pareceu tão emocionado que, com suas pupilas dilatadas e fixas no cirurgião, permaneceu alguns minutos em silêncio, imóvel. Depois se ergueu e deu alguns passos, balançando a cabeça com ar tristonho:
— A horrível violência do golpe vai me fazer desmaiar. Realizar o que me pedes, fica acima de toda a vontade e esforço humano. Mas, diz-se que as chances de vida não são as mesmas para todos os guilhotinados. Então volte, professor, no dia da execução. Responderei se concordo ou não com a empreitada, ilusória e impressionante. Se eu não concordar, conto com a sua palavra que a minha cabeça sangrará totalmente, até a última gota, no vaso de barro.
— Está bem, senhor de La Pommerais — disse Velpeau, levantando-se — reflita bem sobre o caso. Em seguida o doutor Velpeau saiu da cela. O carcereiro reapareceu e o prisioneiro se deitou, resignado, para dormir ou sonhar.
Quatro dias depois, às cinco e meia da manhã, o diretor da Roquette, o abade Crozes, os senhores Claude e Potiers, este conselheiro da corte imperial, penetraram na cela.
O doutor de La Pommerais, ao saber da notícia fatal, se conservou de cabeça baixa, muito pálido. Depois se levantou e se vestiu rapidamente. Em seguida, conversou cerca de dez minutos com o abade Crozes, ao qual já agradecera a visita. Ao avistar o doutor Velpeau anunciou:
— Tenho trabalhado, veja!
E, durante toda a leitura da sentença, conservou fechada a sua pálpebra direita, olhando o cirurgião com o olho esquerdo bem aberto.
Ao final, Velpeau se inclinou demoradamente diante do colega, depois voltou-se para o carrasco, que entrava com seus ajudantes, e trocou com ele um sinal, como a confirmar um tratado.
O apresto foi rápido. O fenômeno dos cabelos que se branqueiam rapidamente ao corte da tesoura nos condenados à morte, não ocorreu. La Pommerais recusou o copinho de aguardente e o cortejo seguiu pelo corredor. Diante do pátio, estando na porta o colega, murmurou-lhe:
— Daqui a pouco… adeus!
De repente os grande portões de ferro do presídio, que davam para a rua, se abriram.
A aurora despontava. Via-se a praça, organizada por um duplo cordão de cavalarianos. No centro, num semicírculo de guardas a cavalo, surgia o patíbulo. A uma certa distância, além do grupo de jornalistas, não havia ninguém. Mais embaixo, atrás das árvores, ouviam-se os rumores bestiais da multidão, cansada da vigília. Nas coberturas das tavernas, nas janelas, jovens corrompidas, lívidas, em roupas excêntricas; outras, ainda trazendo nas mãos as garrafas de vinho — surgiam acompanhadas de tristes casacas pretas. Já as andorinhas, madrugadoras, voavam em círculos, sobre a praça.
O cadafalso parecia prolongar até o horizonte a sombra dos seus braços estendidos, entre os quais, lá em cima, muito mais distante, no clarão da alvorada, se via brilhar a última estrela.
Diante deste fúnebre espetáculo, o condenado teve um calafrio; depois se aprumou e caminhou direto ao palco, inclinando-se na posição de entrega. A lâmina triangular brilhava junto ao negro madeirame; cinco pessoas se perfilavam no patíbulo e o silêncio, naquele momento, se tornou tão profundo que o leve rumor de um ramo quebrado pelos pés de um curioso chegou até o trágico grupo.
Soando a hora em que lhe foi negado o último recurso, o doutor de La Pommerais pôde ainda ver, do outro lado, seu ilustre colega, que o observava. Fechou os olhos, concentrando-se.
A mola escapou bruscamente, o botão cedeu e o brilho da lâmina oscilou. Um choque violento sacudiu a plataforma e os cavalos se agitaram, como a sentir o cheiro de sangue; o eco do barulho ainda vibrava quando a cabeça ensanguentada da vítima parecia palpitar entre as mãos do doutor Velpeau, avermelhando-lhe os dedos, os punhos, a roupa.
Era um rosto terrivelmente branco, olhos escancarados, com os supercílios arqueados e a boca contraída; os dentes pareciam soltos e o mento, na extremidade da mandíbula, estava cortado.
Velpeau curvou-se sobre a cabeça e, junto à orelha direita, fez a pergunta combinada. Apesar de preparado para aquela contingência, sobressaltou-se, sentindo um frio percorrer-lhe a coluna: a pálpebra do olho direito se abaixou, enquanto o olho esquerdo fixou-o, escancarado.
— Em nome de Deus e do nosso ser, mais duas vezes este sinal! — gritou, confuso.
Os cílios separaram-se, como sob esforço interno, mas a pálpebra não mais se ergueu e a fisionomia se tornou, aos poucos, rígida, gélida e, por fim, imóvel. Era o fim. Então o doutor Velpeau entregou a cabeça exangue ao carrasco, que a colocou num cesto, segundo os costumes, entre as pernas do corpo quase rígido.
O célebre cirurgião lavou as mãos numa das vasilhas destinadas à lavagem da guilhotina. O público se dispersava, silencioso. Também em silêncio, o doutor enxugou as mãos e caminhou a passos lentos, preocupado, até o coche que o esperava junto ao portão.
Ao sair observou a lúgubre carreta que se afastava rapidamente, para o cemitério dos justiçados.



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