A DAMA DO TÚMULO
Este Conto é Dedicado a Todos os Fantasmas; a Estes
seres Tristes e Solitários que Alegram minhas Madrugadas
— TUDO COMEÇOU naquele dia quando cheguei atrasado ao enterro...
O enterro estava marcado para às quatro horas da tarde;
porém, cheguei às seis da tarde ao cemitério. Não havia mais quase ninguém
naquela velha cidade da morte. Aproveitei então para dar um pequeno passeio
pelas redondezas, por aquelas últimas moradas. E após andar por alguns minutos,
por entre aquele imenso labirinto da morte, encostei-me, casualmente, em um
velho túmulo para fumar um cigarro. E enquanto fumava, pus-me a examinar o
local. Olhei então para o túmulo que estava em minha frente. Vi sobre a lápide
uma foto de mulher, de uma bela mulher que aparentava estar na flor da idade,
vestida em seu belo vestido. Vestido que deve ter lhe acompanhado em alguns
momentos mais felizes de sua vida, mas que agora jazia sob o frio daquela
pequena construção de mármore.
O túmulo aparentava ter sido abandonado por seus familiares,
há algum tempo. E, em alguns lugares, o mato crescia, como o terrível símbolo
do esquecimento que inevitavelmente causa a morte. Olhei ao redor, todos os
túmulos ostentavam flores, menos o dela. E, ao olhar, vi uma pequena árvore,
que embora pequena, transbordava de flores. Apanhei algumas e pus sobre seu
túmulo, dizendo: “Que a uma dama jamais se negue flores!”.
A tarde já se esvaia em um maravilhoso tom vermelho, como as
últimas gotas de sangue de uma lenta e pálida hemorragia, quando me despedi
daquele túmulo, caminhando, cruzando o cemitério, em direção de sua saída. E
por mais que andasse por aquelas avenidas lúgubres, não conseguia pôr-me em
direção a saída. Olhava o céu agora já em um tom azul marinho, que aos poucos
tornava-se escuro. As luzes do cemitério se acendiam, e mal clareavam o
caminho. Foi quando me senti preso em um labirinto. Em um labirinto de pequenos
cubículos, que eu sabia que não estavam vazios. A sensação de não estar sozinho
evadia minha alma, que ao cruzar pela terceira vez a mesma avenida, me
desesperava... Olhei e senti algo familiar naquela avenida; era a avenida que
abrigava aquele velho túmulo. Dirigi-me então para o mesmo. Observei que as
flores já não estavam mais sobre ele. E que havia naquele rosto, da foto,
detalhes que não havia antes visto, como um leve sorriso, que agora despontava
daquele belo rosto. Pude ler então seu nome: Josephina. Imediatamente, pus
novamente as flores no lugar e segui o meu caminho...
O cemitério estava agora totalmente vazio; nem uma voz se
ouvia, somente o vento por entre aquelas construções sem vida. E ao cruzar pela
quarta vez por aquela, agora, familiar avenida, percebi que estava andando em
círculos. Decidi então cruzar pelo velho túmulo e seguir em linha reta,
adiante, sempre adiante, tentando lembrar o caminho seguido antes. E ao passar
novamente pelo túmulo, reparei que as flores não estavam novamente lá. Pensei
no vento, e na possibilidade deste as ter derrubado; e pus novamente elas no
lugar. Foi quando, curiosamente, olhei novamente para a foto. Além do leve
sorriso, pude ver agora um suave olhar para mim. As luzes pareciam terem feito
seu semblante mudar, acrescentavam agora um delicado piscar. E, de repente,
pude ouvir, então, uma ofegante respiração, por entre os túmulos, aumentando...
aumentando... aumentando... Até que, uma mão pôs-se sobre meu ombro. Um imenso
arrepio percorreu por todo o meu corpo; virei-me então para olhar... Era um
velho coveiro, que dizia-me:
— O Senhor está perdido? Estamos na hora de fechar.
— Sim, sim. Vejo que perdi a hora - disse eu a este
secretário dos mortos.
— Então, favor, siga-me.
E assim, segui-lo. E pude, finalmente, encontrar a saída,
tão almejada.
* * *
À noite, mal pude dormir, pensava no meu amigo, na sua morte,
na falta que me faria, e em não ter podido, dele, me despedir. E, nas poucas
vezes que conseguia dormir, sonhos evadiam minha mente. O mesmo sonho
recorrente. Sonhava com a mulher do túmulo, vestida em seu belo vestido branco,
rodopiando em um grande salão antigo, com grandes janelas e cortinas de veludo
vermelho e, no teto, um grande lustre cor de prata, clareava o ambiente, que
explodia em alegria. Ela dançava com alguém, em meio a dezenas de casais que
dançavam com leveza e graça. E ao rodopiar ao lado de um imenso espelho, pude
ver que o cavalheiro, com quem ela dançava, era eu, vestido em trajes antigos,
também. Espantado, soltava suas mãos e tentava fugir do salão. Porém, os
casais, rodopiando ao redor do mesmo, não me deixavam sair. Ela olhava-me,
chamando-me com suas mãos estendidas. Os casais ao redor, ao passarem ao meu
lado, diziam-me: “Vamos Bosco, dance com Josephina Conte”.
Naquela noite acordei assustado; minha alma transbordava o
negrume da morte, pois algumas pessoas que tinha visto no sonho já tinham a
muito morrido; eram parentes e amigos. Lembrei-me de ter visto também entre
eles Raimundo, o amigo recentemente falecido.
Passei todo o dia pensativo. Liguei para a mãe de Raimundo,
e me desculpei por não ter chegado a tempo ao seu enterro. Pedi seu último
endereço e prometi visitá-lo, imediatamente.
À tarde, como prometido, voltei novamente ao cemitério,
desta vez para visitar o túmulo de meu amigo. Levava comigo algumas garrafas de
vinho, flores e o mapa do cemitério, que peguei com a portaria. Desta vez não
me perderia...
Após visitar o túmulo do amigo, e depositar em seu túmulo
flores e uma garrafa de vinho, em nome das noites de boêmia, fui compelido, por
uma curiosidade mórbida, ao visitar o túmulo da bela dama morta.
Ao chegar, surpreendeu-me verificar que as flores não
estavam murchas, mas organizadas e umedecidas em um vazo sobre seu túmulo.
Lembrei-me então do sonho; e curioso verifiquei seu nome. Percebi então que seu
nome se deteriorara, permanecendo apenas o nome Josephina. Depositei novas
flores; observei sua foto por alguns minutos, e, em seguida, voltei para casa.
* * *
À noite, novos sonhos me assombraram. Sonhava novamente com
a dama morta. Esta vinha à minha cama agradecer-me pelas rosas depositadas.
Chamava-me por meu nome: “Bosco... Bosco... Bosco... obrigado pelas flores...
Venha querido... Venha comigo”. Levantei-me da cama, e, de mãos dadas, pus-me a
caminhar ao seu lado. Ela, levou-me para um outro quarto, de mobílias antigas e
cama de colunas de carvalho. Um quarto que não pertencia a minha casa.
Beijava-me a boca, e lentamente tirava o seu belo vestido; surpreendendo-me com
um lindo corpo lívido, que me extasiava, absorvido em um misto de delírio e
prazeres contínuos.
Na manhã seguinte, acordei-me nu e fraco, totalmente
exaurido. Manchas de suor cobriam ainda o leito, tantas vezes nele dormido.
Lembrei-me dos sonhos eróticos de minha infância. Porém, neste havia um sabor
que nenhum outro tinha: um misto de prazer e terror, que eu jamais tinha visto.
O dia transcorreu sob uma angústia inquietante. Vozes e
pensamentos me torturavam. Um sentimento estranho de saudade me abalava.
Tornava-me um ser com indisposições estranhas e inexplicáveis.
Na noite seguinte, após logo deitar-me e fechar os olhos,
senti a sensação de parte do colchão afundar, pouco a pouco, como se alguém
cuidadosamente se deitasse ao meu lado, não querendo me acordar. E ao sentir
isso, virei a cabeça para verificar, e ao olhar, verifiquei que não havia
ninguém ao lado! Nesse momento, o medo e o espanto apoderam-se de mim, e me
perseguiram durante outras noites. O medo que da próxima vez se repetisse e que
a visão fosse terrível.
* * *
Seu túmulo não saia de minha mente. Todos os dias, algo me
compelia a visitá-lo. Uma obsessão tomou conta de mim: um misto de prazer e
agonia em observá-lo.
Sonhos evadiam minha mente. Sonhava com ela, todas as
noites. Sonhos lúbricos, e lascivos, parecia nutrirem-se de mim. E quanto mais
fraco eu tornava, mais forte os sonhos ficavam; ao ponto de não mais saber se
eram sonhos ou realidade.
Os floristas já me
conheciam. Olhavam-me como alguém que teria perdido um ente querido; do qual,
da saudade, não conseguia se desvencilhar.
* * *
Os dias transcorriam em estranha normalidade. Porém, numa
noite, enquanto estava no banho, ouvi pequenos sons de pisadas pela casa.
Pareciam com sons de passos femininos, que pisavam com suavidade. Imediatamente
sai do banho, para verificar de onde vinham. Nada vi, exceto um vulto branco
que cruzou-me próximo ao quarto. Estranhamente minhas roupas não estavam onde
eu as tinha deixado. Procurei, por elas, por todos os lados. Por fim,
encontrei-as no cabide, bem no escuro do quarto. Então, ao apanhá-las, um
imenso calafrio invadiu minha alma, e tombei ao chão desmaiado... Ao acordar,
tudo estava escuro. Porém, ao acender a luz, meu amigo, lá estava ela ao
olhar-me, com aqueles belos olhos! Sim, era ela, Josephina, que me espreitava.
O susto, em seguida, deu lugar a volúpia, como os de corpos que se tocam, com
cumplicidade. Tudo parecia real, seu corpo, seu toque, seu hálito. Porém, ao
abraçá-la, um estranho frio de seu corpo emanava...
Ao acordar, tudo parecia ter sido apenas sonho, mas algo
havia naquilo que me fazia discordar. A dúvida evadia minha alma: teria tudo
sido apenas sonho? Estava eu vivendo uma alucinação, daquelas que atormentavam
tanto a alma? Foi quando a resposta me veio à tona...
Ao visitar, mais uma vez, o cemitério, procurei as origens
daquele túmulo que tanto me fazia pensar. E ao pegar um velho livro de
registro, pude, finalmente, comprovar, que ali jazia Josephina Conty, morta em
1931, em plena flor da idade, em seus belos vinte anos. A verdade tinha vindo à
tona, do modo mais pungente. Sim, seu nome correspondia ao sonho que eu tivera
anteriormente, aquele que sonhara com um grande salão de baile.
Cheguei em casa, nesse dia, embriagado. Ao abrir a porta de
casa, senti um suave perfume de flores. Perfume que exalava por toda a casa.
Fui para o banheiro, lavar o rosto. Olhei-me no espelho enquanto me banhava. Vi
um pequeno pente ao meu lado, sobre a pia. E ao olhar para o meu reflexo no
espelho, vi o pente, por trás de mim, levantar-se, à minha altura; olhei para
trás... Você não vai acreditar!, lá estava ela, novamente, desta vez em carne e
osso, se penteando, com aqueles belos olhos verdes à espreitar-me. Olhei para o
espelho, novamente, não via nada. Ela agarrou-me, beijou-me a boca; senti como
se a vida se esvaísse de mim, pouco a pouco. Ah!, aquela boca me tragava a
vida...
— É! É uma história e tanto! — disse-me o amigo esboçando
dúvida, mas acima de tudo curiosidade. E continuou a interrogar-me:
— E como se desenrolou essa história?
— Ah! Ela levou-me para o quarto. E quanto mais me beijava,
com seu belo corpo nu, mas sentia-me fraco... fraco... fraco... E após esse
dia, todas as vezes que voltava para casa, lá estava ela a esperar-me, com seu
belo corpo, que a cada dia mais me extasiava, num contínuo mundo de prazeres
sem fim. E à olhos vistos, meu amigo, cada vez mais me degradava... Ela
tornou-se, para mim, como um vício, que embora tornava a vida prazerosa, viver
em sua companhia, cada vez mais algo de mim tirava...
Porém, uma noite, ao chegar em casa, feliz em poder
desfrutar mais uma vez de sua companhia, notei que ela não estava. Chamei-a, e,
por mais que a chama-se, ela não vinha. Fui então para o cemitério, em plena
madrugada, dormi sobre sua lápide fria, fria como seu belo corpo. Acordei-me
com ela me olhando. Acariciou-me os cabelos, e disse-me, que se continuasse me
mataria. Ah, meu amigo, cai em pranto, e de joelhos, e lhe supliquei que
continuasse. Que nada me importava, nem mesmo a vida, sem sua companhia...
— Bem, parece-me ser a primeira vez que ouço uma história de
fantasma que parece ser agradável. Era ela, então, um belo fantasma?
— Sim, sim, do tipo de mulher que qualquer homem desejaria.
Era maravilhoso viver em sua companhia. Todo dia não via a hora de chegar em
casa. Porém, nem tudo é perfeito!, meu amigo.
— Por quê?
— Porque descobri que Josephina me sugava a vida, como um
vampiro.
— Como um vampiro?
— Sim, sim. E o que mais me entristece é que a cada dia
menos vida eu tenho para lhe dar...
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