quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

MARQUÊS DE SADE E O ATENTADO À CHARLIE HEBDO



OS ASSASSINATOS COMETIDOS EM 7 DE JANEIRO na sede da revista francesa de humor CHARLIE HEBDO — revista que, confesso, não a conhecia até o fato referido — por radicais islâmicos a fez conhecida no mundo inteiro; e ao ver uma de suas capas na internet, postada por um internauta ofendido pela ilustração, que mostrava a santíssima trindade cristã (Deus, Jesus Cristo e o Espírito Santo) mantendo relação anal entre si, lembrei de um pequeno conto do escritor francês MARQUÊS DE SADE (1740 - 1814), O Professor Filósofo, em que um padre explica a um jovem aluno o mistério da santíssima trindade; para tanto ele pede para que o jovem penetre numa jovem mulher primeiro para depois ser possuído, simultaneamente, pelo padre, o qual conclui debochadamente:

“— Por Deus! — diz o abade balbuciando de prazer —, não vês, caro amigo, que te ensino tudo ao mesmo tempo? É a trindade, meu filho... é a trindade que hoje te explico; mais cinco ou seis lições iguais a esta e serás professor na Sorbonne”. 
Ocorreu-me então que poderia haver muito mais que mera semelhança casual entre o humor debochado e ofensivo dos cartunistas da revista francesa e a obra de Sade: a Charlie Hebdo poderia ser um elo entre o mundo moderno e o pensamento de Sade, e, por tabela, ser também herdeira da tradição libertina francesa; e se isso fosse verdade poderia esclarecer alguns pontos sobre o tipo de humor utilizado por tal revista, que em um primeiro momento, após os assassinatos, teve seus humoristas mortos saudados como mártires da liberdade de expressão através do movimento “Eu sou Charlie”, e que, logo em seguida, foram rechaçados pela ascensão do movimento contrário na internet “Eu não sou Charlie”, composto por pessoas que não pactuaram com os assassinatos, mas que também não aceitam os excessos do semanário francês em suas caricaturas, acreditando que as ofensas de suas charges deveriam ter sido evitadas por serem “perigosas e até criminosas”. E ao pesquisar sobre a revista, não deu outra, descubro que foi fundada em 1970 e que se identifica com o pensamento da esquerda pós 68.


As passeatas estudantis de maio de 68 exigiam maior liberdade de expressão, maior liberdade sexual e uma educação mais livre. E como consequência destas exigências os estudantes franceses exigiram que alguns escritores, que ainda tinham seus livros proibidos ou eram publicados com restrições, fossem totalmente liberados para leitura. E entre esses escritores proibidos estava o Marquês de Sade, cujos livros pornográficos, cheios de ofensas à igreja católica, haviam sido proibidos desde o momento que haviam sido escritos, ou seja, desde o século XVIII.
Sade fez parte de uma longa tradição francesa de poetas e filósofos libertinos que desde a renascença tentavam libertar os homens das amarras opressora da religião, pensamento que fora importante também para o movimento Iluminista francês, que Sade também fez parte, e que lutava pela separação entre política e religião, o chamado ESTADO LAICO, em que a religião não deveria oprimir a liberdade do cidadão. Tal pensamento é a base das democracias modernas, incluindo a república francesa. E Sade não apenas herdou tal ideal como o intensificou com um ateísmo radical que não poupava em suas ofensas nem mesmo o papa, chegando ao ponto de  tomá-lo como personagem em um de seus livros e fazê-lo participar de orgias e proferir, em pleno vaticano, um discurso a favor do crime.



Como podemos ver, uma das armas de Sade para combater os excessos da religião era o humor e a ofensa de conteúdo sexual, método que, em parte, já era bastante conhecido por meio do princípio “Castigat ridendo mores” (costumes são corrigidos rindo-se deles) do satírico poeta francês Jean de Santeuil (1630-1697), e que, mais uma vez, fora exagerado por Sade em sua obra. Portanto, ao contrário do que pensa a maioria, o humor da revista Charlie Hebdo faz parte de uma longa e conhecida tradição francesa, em que é visível a influência do "Castigat Ridendo Mores", embora em um sentido muito mais sadiano; também podemos compreender que a revista seja vista como parte das  conquistas obtidas das lutas por liberdade de expressão dos estudantes franceses de maio de 68, e também, por isso, compreender melhor a impossibilidade de impor-lhe censura.
Sade, assim como os chargistas mortos da Charlie Hebdo, também pagou por suas ofensas a igreja, ele foi preso por muitos anos e por pouco foi condenado à morte. Porém é preciso que se diga que o Islamismo é um adversário mais difícil de ser retratado por quem for que o tenha como inimigo  seja escritor ou uma revista de humor  que a igreja católica, pelo simples fato de que qualquer representação de Maomé, mesma a forma mais respeitosa possível, é severamente proibida por esta religião; imagine então a repercussão que teria uma imagem ofensiva deste sobre a religião muçulmana.



Contudo, uma questão se impõe: AFIM DE EVITAR “O ESCÁRNIO OFENSIVO QUE ALIMENTA A VIOLÊNCIA”, DEVERIA A FRANÇA TER IGNORADO TODA SUA HISTÓRIA DE LUTA PELA LIBERDADE E TER IMPOSTO CENSURA A REVISTA CHARLIE HEBDO?
Primeiro devemos lembrar que a França é um estado laico, isto é, nenhum cidadão sob seu regime deve ser coagido em seus atos ou em sua forma de pensar por qualquer que seja a religião, e que a religiosidade de cada um deve ser exercida ou não por cada um sem que seja coagido exteriormente a exercê-la ou não, mas sim apenas por sua consciência. Portanto, segundo este importante preceito da democracia moderna, ninguém é forçado a respeitar a crença alheia, embora seja proibido de manifestar sua opinião com violência ao outro; em outras palavras, apesar do islamismo proibir, por exemplo, que Maomé seja retratado por uma ilustração, isso não dá o direito de se impor esta regra a toda a França, ou seja, é apenas uma regra religiosa que diz respeito aos mulçumanos somente. Nesse sentido os cartunistas da Charlie Hebdo não fizeram nenhum crime, mesmo em suas charges mais ofensivas, pois seguiram o que o estado laico prega, sendo, portanto, sem sentido o próprio estado francês processá-los, e muito menos serem mortos por terroristas. Vale lembrar que em nosso país, de maioria católica, um pastor evangélico já desferiu chutes em uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, em plena rede nacional, e nem por isso católicos invadiram a rede de televisão de seu programa e o mataram. Contudo, penso que, por conter imagens pornográficas, a única restrição que poderia ser dada a tal publicação seria de ser mantida fora do alcance de pessoas menores de idade, mesma restrição dada a materiais pornográficos. O que amenizaria seu teor ofensivo para os mulçumanos, embora para as pessoas que invadiram a redação da revista francesa e mataram as dose pessoas em sua sede, com ofensa ou sem ofensa, elas iriam de uma forma ou de outra, cedo ou mais tarde, demonstrar todo o ódio que sentem pelo ocidente e por pessoas que pensam diferentes delas.



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