sexta-feira, 18 de março de 2016

CONTO: UMA NOITE NA CIDADE MORTA



UMA NOITE NA CIDADE MORTA

À NOITE, QUANDO AS IGREJAS fecham suas portas, e o silêncio e a escuridão inundam o lugar, um público bem diferente do dia passa a frequentá-las: são as almas dos mortos que deixam suas sepulturas para rezarem reunidas em macabras Missas dos Mortos. E se você entrar em uma igreja qualquer, poderá ouvir os mortos a cantar suas tenebrosas canções”.


Era o que nos contava os mais velhos quando nos reuníamos à beira de fogueiras para ouvirmos suas histórias de fantasmas que nos fazia arrepiar os pelos, e a dormimos com as luzes acesas durante nossas férias na casa de nossos avós.
E, passado tanto tempo, e ainda tomados pela curiosidade infantil, pulamos o muro do velho cemitério.
A noite ia alta com a lua cheia a clarear os túmulos em que andávamos a espreitar estátuas de anjos que pareciam nos fitar prestes a ganhar vida e voarem sobre a cidade morta. Líamos os nomes daqueles que jaziam sob a terra, em seu último descanso; olhávamos suas imagens com data de morte e ficávamos a imaginar suas vidas. E, após andarmos por alguns instantes por ruas ladeadas de túmulos, deparamo-nos, finalmente, com nosso destino: a pequena capela do antigo cemitério da Soledade, onde originou-se a lenda.
E estando abandonada há anos, não foi difícil penetrá-la. Eu e Karmel nos alojamos nela, nos protegendo do frio e das rajadas de vento.
— Então foi aqui que tudo começou?
— Sim, aqui que se originou a lenda — disse Karmel olhando o lugar.
— Não me admiro, é de dar calafrios!
Ele acendeu a lanterna do celular, clareando o rosto, e com a voz grave e trêmula, disse:
— Reza a lenda que uma velha senhora, após perder a noção do tempo, chegou bem mais cedo do costumeiro horário da missa da manhã — que eram rezadas todas as manhãs nessa pequena capela —, e após ir até o altar e benzer-se se surpreendeu ao ver que em lugar do público costumeiro, encontrou pessoas com fisionomias doentias e cadavéricas, descobrindo ao final, do modo mais assustador possível, tratar-se da macabra Missa dos Mortos.
Ao terminar, deu uma sinistra gargalhada, que ecoou pela pequena capela, que se transformou em risadas, e em uma dança debochada que logo foi silenciada por estranhos barulhos que pareciam vir de fora, do antigo cemitério.
— Será que acordamos os mortos?! — disse ele rindo.
Por uma fresta, ouvimos os estranhos ruídos:
Era o barulho do vento por entre os túmulos, a sacudir os galhos das árvores, que estavam alí há anos a nutrir-se de cadáveres, e a descrever sombras assustadoras; ouvíamos também o cair de seus frutos que soavam como passos distantes, ou como pedras atiradas sobre a velha capela.
— A noite será de inútil espera, pois nenhum fantasma iremos ver — disse eu a Karmel.
— Claro, ou acreditas em fantasmas? O pior é que minha bateria está pra acabar, não quero ficar aqui sem música.
— O que você está ouvindo?
— Pet Sematary, dos Ramones — disse Karmel verificando seu celular e pondo novamente seus fones de ouvidos.
— Nada mais sugestivo! — exclamei com risadas. — Então vamos tirar fotos do lugar e ir logo embora; já ganhamos a aposta.
— Não, faltam apenas duas horas para clarear o dia. E quer saber: teremos uma boa história para contar.
* * *
Já cochilávamos, quando passos minúsculos inundaram a pequena capela; passos invisíveis a se rastejar e se espalhar por todos os cantos, seguidos por guinchos assustadores. O que nos fez acordar com olhos arregalados... Vimos então que não eram apenas ratos, mas ratos enormes de cemitério, com seus grandes caninos que deviam triturar o que ainda restavam dos corpos em suas covas, e que, certamente, vinham se alimentando de cadáveres há séculos.
 Levantamos... foi quando um vulto negro entrou pela porta da antiga capela, levando-nos a nos escondermos nos escombros.
Karmel lembrou-se de contos assustadores que ouvira quando menino; de segredos blasfemos; de cultos subterrâneos sob antigos cemitérios; de entidades espectrais, cujos poderes eram exercidos sobre ratos, transformando-os em mensageiros do mundo subterrâneo dos mortos; roubando cadáveres para seus festins diabólicos em grandes tumbas subterrâneas.
O espectro foi até ao altar, benzeu-se, e virou-se em nossa direção, como se nos farejássemos, obrigando-nos a deitarmos no chão.
— E agora acreditas em fantasmas? — sussurrei.
— Não, mas não posso negar que este mendigo é de assustar! — disse ele em um tom nada convincente.
Foi quando Karmel sentiu algo a se rastejar por sob suas calças até seu pescoço: um maldito rato lhe encarava com suas enormes presas, que, aos poucos, fora seguido por dezenas de outros. E embora não escondesse o nojo por tais criaturas, Karmel se mantinha impassível, sem mexer nenhum músculo, pois havia descoberto, naquele instante, que temia mais mendigos do que qualquer animal vivo.
Os ratos farejavam seu queixo, lambiam seus lábios, seus olhos... Suas caldas enfiavam-se em sua boca, seus longos bigodes roçavam suas narinas, mas ele continuava impassível. Até que todo seu rosto fora tomado por um monte monstruoso dessas criaturas, que se contorciam e se embolavam como um grande bolo de vermes. Foi quando levantou-se, subitamente, fugindo aos gritos.
Corremos por entre sepulturas; cruzávamos mausoléus; pulávamos túmulos infantis, até que, subitamente, fomos engolidos por um velho túmulo, caindo por sobre centenas de ossos humanos.
O lugar era profundo e escorregadio. Ao escalarmos, escorregávamos sempre para o mesmo lugar, afundando cada vez mais entre as centenas de ossos humanos que se acumulavam há anos. Foi quando novamente ouvimos o guinchar que vinha de uma cavidade abaixo: eram os ratos que vinham ao nosso encontro. Com os celulares iluminamos a cova, verificando um túnel adjacente a um de seus lados, que dava para passar um homem; imediatamente o penetramos.
O ar ali era fétido e irrespirável, agachados, gatinhávamos sobre sua superfície úmida, com torrões de areias pútridas a cair sobre nossas cabeças. Cansados, por caminhar por inúmeros minutos, paramos para descansar, acreditando tê-los despistados. Iluminamos o túnel a nossa frente, verificando que era forrado por ossos humanos e restos de roupas rasgadas. O túnel era quente e úmido, parecia não ter fim; foi quando um terrível som estridente se juntou ao de nossas respirações ofegantes; iluminamos atrás de nós e vimos dezenas de olhos famintos que brilhavam contra a luz: os ratos eram agora milhares, que vinham em busca de seu alimento preferido: carne humana.
Gatinhamos o mais rápido que podíamos, até o túnel se tornar tão estreito que passamos a nos arrastar feito vermes, nos atolando cada vez mais no líquido espesso e pútrido que há anos era produzido por milhares de corpos em decomposição.
Ao chegarmos ao fim do mesmo, os ratos logo nos alcançaram, roendo nossos sapatos com ferocidade. E estando eles prontos a devorarem nossos pés, algo de miraculoso aconteceu naquele instante: uma luz inundou o ambiente, e mãos puseram-se a levantar-nos:
— Malditos ratos! Criaturas dos infernos! Vamos, subam logo.
Tínhamos alcançado uma cova rasa, que fora aberta, e mãos fortes nos havia salvado de nosso destino trágico.
O homem, que se assemelhava a um mendigo, parecia ser o mesmo que com sua capa preta havia penetrado na pequena capela algumas horas antes. Ele nos pediu cigarro, dizendo-nos que há décadas não fumava. E após explicarmos o porquê de todo nosso infortúnio, ele se pôs surpreendentemente a falar:
— Então vamos, a Missa já está para começar.

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