terça-feira, 26 de dezembro de 2023

INICIAÇÃO (de Marco Buro)



INICIAÇÃO (de Marco Buro)

A minha primeira iniciação, como ser encantado, começou quando minha avó apagou a lamparina antes do dia ser dia e o escuro me fazia medo. Vó Marculina cutucou minha costela que tava deitada na rede e falou, pertinho da minha orelha, dando uma ordem que eu nem pensei em deixar de cumprir.

— Tu já deve ter uns dez anos e antes de pensar em mulher, tu vai iniciar teu ser... Entra nessa vereda do igarapé Grande antes que o dia te perceba, aprende sete sons na floresta... sete barulhos de bichos ou das coisas do mato... e chega aqui antes da lua iluminar o caminho da volta. Presta atenção, também, nos silêncios que vão deixar, separadinhos, os barulhos do teu aprendizado.

Eu conhecia um pouco a picada do Igarapé Grande mas eu não tinha entendido, de todo, os mando da vó Marculina. Muita coisa que ela falava não cabia na minha cabeça, no meu entendimento. Eu só pensava que eu não ia dá conta de fazer nada do que ela tinha me pedido... tudo que ela falava pra mim, era grande demais. Eu, gito demais pra tamanha façanha. Levantei rápido da rede e esqueci de calçar a sandália e vestir uma camisa... Já tava entrando no caminho do Igarapé Grande, por trás da nossa tapera, quando me assustei com a presença da minha vó no escuro…

— Vai! corre Jupiara! corre que os mistérios do mundo não esperam por ninguém. Mas, não esquece de voltar! A floresta não tem começo, meio ou fim! Minha vó me entregou um coió com água fresca e uma cuia cheia de chá quente de Preciosa que eu engoli em três goles rápidos.

Não falei nada pra minha vó Marculina, não abri a boca com medo de chorar e mostrar o menino frágil que eu era. Com muito medo, sumi, mergulhei no escuro do dia... que ainda nem era dia.

 

Trecho do conto "Caboclo falador"

Marco Buro, 24/12/2023

Foto: Marco Buro, 2018 - Ourém PA.

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